Cinema, Literatura infantojuvenil,
Para que a história não se repita
Longa de animação mostra que não basta saber que o diário de Anne Frank existe, é preciso recordar a essência de sua mensagem
01out2021 | Edição #50Um raio marca o céu de Amsterdam. Atinge o diário de Anne Frank, exposto em um museu. A descarga elétrica queima o nanquim, libertando das páginas uma garota ruiva. É Kitty — amiga imaginária de Anne.
Kitty desperta com uma dúvida, que serve de título para o filme que ela estrela: Onde está Anne Frank?. O longa de animação, dirigido pelo israelense Ari Folman (Valsa com Bashir), tenta responder a essa pergunta. No meio-tempo, parece indagar: por que, em pleno 2021, ainda precisamos falar sobre Anne? O filme estreou em julho na França, durante o Festival de Cannes. Não há previsão para chegar ao Brasil.
A menina Anne Frank vivia em Amsterdam durante a Segunda Guerra Mundial. Teve de se esconder dos nazistas, que perseguiam judeus como ela e sua família. Ocultou-se por um tempo nos quartos secretos de uma casa. Em 1944, ela foi capturada e enviada para um campo de concentração, onde morreu. No total, o Holocausto vitimou 6 milhões de judeus, além de pessoas com deficiência, homossexuais e roma, os chamados ciganos, entre outros grupos marginalizados.
O pai de Anne, único sobrevivente da família, descobriu o diário dela e publicou o texto em 1947, depois da guerra. A honestidade e a candura da garota, descrevendo uma coisa tão tenebrosa quanto o Holocausto, encantaram leitores já naquela época. O livro é, desde então, um dos clássicos do século 20. O diário é a pedra angular da Fundação Anne Frank, que cuida do seu legado e se empenha em divulgar a história do Holocausto — para que ele não se repita. Diversas edições foram publicadas até nossos dias, incluindo uma versão em quadrinhos, obra também de Ari Folman. Mas, de alguma maneira, pareceu insuficiente.
A arte do filme ajuda a enxergar a dor de uma garota perseguida durante a guerra
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“Há sempre essa questão sobre por que devemos ler sobre o Holocausto, tanto tempo depois de seu fim”, diz Yves Kugelmann, membro do conselho da Fundação Anne Frank. “Esperava que já tivéssemos aprendido a lição, mas não é o caso. Ainda há racismo e negação do Holocausto. Por isso, é importante contarmos essa história.” O comentário ecoa no contexto brasileiro, sob um governo que já repetiu mensagens nazistas. Daí o papel do novo filme, Onde está Anne Frank?. Foi um dos modos que a fundação encontrou, diz Kugelmann, para atualizar a história, sensibilizar mais pessoas. De novo: para que a história não se repita.
Essa não é a primeira adaptação do diário de Anne. Em 1955, menos de uma década depois da publicação do livro, estreou uma peça na Broadway contando a história da garota. A produção foi premiada com o prestigioso Tony, além de um Pulitzer.
O texto da peça serviu, por sua vez, de base para um filme de 1959. De novo, um sucesso. O longa levou três estatuetas no Oscar, incluindo a de melhor atriz coadjuvante para Shelley Winters — que doou o prêmio ao museu Anne Frank. Segundo os críticos, é uma das melhores adaptações do diário no cinema até hoje.
Mas os livros, os palcos e as telas contam sempre a mesma história. Continua sendo forte, é claro. Um soco no estômago. O que não quer dizer que não possa ser repensada, reformulada, principalmente na tentativa de sensibilizar novos públicos. É o que parece ter inspirado a Fundação Anne Frank a lançar Onde está Anne Frank?, com uma nova história.
No filme que acaba de sair, a protagonista desta vez não é Anne, e sim Kitty — a amiga imaginária para quem ela escrevia o diário. Kitty se materializa do nanquim ativado pelo raio. Acorda no museu dedicado a Anne, décadas depois. Ela não sabe, a princípio, que sua amiga morreu. Assim, caminha por Amsterdam procurando respostas.
Cena da animação "Onde está Anne Frank?" (Divulgação)
Pesadelo
Ari Folman intercala passado e presente no filme. Conta ao mesmo tempo a história de Anne e a aventura de Kitty, que vê hordas de turistas visitando o museu dedicado a Anne, falando sobre o diário. Vê, também, que tudo leva o nome da amiga. Há uma ponte Anne Frank. Um teatro Anne Frank. Uma escola Anne Frank. São lugares batizados em homenagem a Anne. Aos olhos de Kitty, tudo parece um pesadelo.
Um dos trunfos do filme é justamente este: Folman anima um mundo em que o nome de Anne está em todos os lugares, mas também não está em lugar algum. Não basta saber que o diário existe, o diretor — filho de sobreviventes do Holocausto — parece dizer. É preciso recordar a essência da mensagem de Anne.
O projeto foi encomendado pela Fundação Anne Frank. “Queríamos, sem comprometer a história original, usar o gênero da animação para atingir as novas gerações. Para que as pessoas pudessem visualizar melhor a história”, diz Kugelmann. Demorou mais de uma década para que a ideia saísse do papel.
A arte de Onde está Anne Frank? se presta bem a esse papel, ao ajudar os espectadores a enxergar a dor de uma garota perseguida durante a guerra, inventando uma amiga, escrevendo em seu diário. Os nazistas não aparecem como pessoas no desenho, mas como figuras sombrias de rosto branco como máscara mortuária. São assustadores. Monstros capazes de colocar uma menina em um campo de concentração.
Conselheiro da Fundação Anne Frank sobre a polêmica no Brasil: ‘Às vezes a gente pensa que já superou essa discussão’
Kitty tem acesso a esses dois mundos. Nas suas memórias, vê o nazismo. No presente, vê um mundo em que o nome de Anne foi esvaziado. Isso faz sentido, em especial quando a garota imaginária encontra os refugiados que vivem nas ruas de Amsterdam. O povo enche a boca para falar do diário de Anne — ao mesmo tempo, passa na rua ignorando a miséria de tantas pessoas que foram perseguidas nos países de origem.
Com talvez um didatismo excessivo, fruto de sua natureza pedagógica, o filme diz que Anne nunca quis ser idolatrada. Que o importante não é o diário em si, como artefato histórico, e sim o conteúdo do texto. Em determinado momento, Kitty ameaça destruir o diário se os refugiados forem deportados da cidade.
O filme Onde está Anne Frank? ainda não chegou ao grande público. Tem circulado em festivais, como os de Cannes, de Jerusalém, de Toronto e de Zurique. Os críticos, no meio-tempo, vêm reagindo de modo positivo. Na plataforma Rotten Tomatoes, que agrega críticas, o longa tem uma boa nota de 70%. No jornal britânico The Guardian, Peter Bradshaw elogiou em especial o fato de que Folman reinventou a mitologia de Anne em vez de reciclá-la.
Um ponto que parece incomodar parte da audiência, por enquanto, é que o enredo dá muitas voltas. Pode acabar confundindo, indo e voltando no tempo e misturando real com imaginário. Por outro lado, é possível ver o dinamismo do filme como uma de suas qualidades. Pode fazer mais sentido para um público jovem, acostumado com narrativas velozes, digeridas às pressas na tela de redes sociais como Instagram e TikTok.
Cena da animação "Onde está Anne Frank?" (Divulgação)
Amadurecimento
A mensagem do filme — de que ainda é preciso falar sobre Anne Frank — deveria retumbar no Brasil. O país vive uma escalada de grupos neonazistas. Em parte, dizem especialistas, motivada pelo discurso sectário de Jair Bolsonaro. O lema “Brasil acima de tudo” ecoa o nazista “Alemanha acima de tudo”. E Roberto Alvim, ex-secretário da Cultura, parafraseou Joseph Goebbels, ministro da Propaganda nazista.
Um outro episódio reforça quão frágil é a posição de Anne no Brasil. Pais de alunos da escola Móbile, em São Paulo, enviaram uma carta protestando contra a direção. Reclamaram que seus filhos, de doze anos, estavam lendo a versão em quadrinhos do diário. O problema, para eles, não era a violência do Holocausto. Era o fato de que Anne descrevia a descoberta de sua própria vagina e de sua sexualidade.
Kugelmann, conselheiro da Fundação Anne Frank, diz que soube da polêmica brasileira em torno da graphic novel. “Às vezes a gente pensa que já superou esse tipo de discussão”, ele diz, com um tom que mostra cansaço. “Outros assuntos deveriam ter mais importância. Mas é isso. Nada mais me surpreende.”
O pai de Anne tinha cortado as passagens de cunho mais sexual quando editou o diário. “Mas era um tempo diferente”, observa Kugelmann. O livro saiu também, a princípio, sem as críticas de Anne à sua mãe. A própria Kitty comenta isso no filme Onde está Anne Frank?, falando sobre a censura inicial do texto. As versões mais recentes — caso da graphic novel — incluem as partes que tinham sido inicialmente omitidas. A versão em hq, questionada pelos pais, foi incluída no PNLD (Programa Nacional do Livro e do Material Didático) em 2018. A editora Record vendeu os livros ao governo, que os distribuiu para escolas públicas.
Uma das razões pelas quais o livro funciona tão bem em contextos educativos, diz Kugelmann, é que Anne escreve na linguagem das crianças. Assim, pode às vezes ter mais impacto do que um livro didático, de tom seco. Anne não fala sobre datas ou geografias. Ela fala sobre o que vê e sente em seu esconderijo.
Nesse sentido, o segredo do diário talvez esteja justamente nos detalhes que os pais queriam censurar em São Paulo. É um texto de amadurecimento escrito por uma garota que — como as outras — queria se conhecer. “Anne não era um gênio, não era um anjo caído do céu”, Kugelmann diz. Ela era uma menina.
Este texto foi feito com o apoio do Itaú Social
Matéria publicada na edição impressa #50 em agosto de 2021.
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