Laut, Liberdade e Autoritarismo,

Vacinação em tempos de populismo

Uma campanha pelo direito à vida é fundamental para enfrentar a desinformação propagada pelo negacionismo bolsonarista

28jan2021 | Edição #42

Era um domingo de janeiro e acompanhávamos, olhos ansiosos, uma sessão extraordinária da Agência Nacional da Vigilância Sanitária (Anvisa), em que se autorizaria o uso emergencial das vacinas da Coronavac e da Astrazeneca contra a Covid-19, desenvolvidas em parcerias com o Instituto Butantan e a Fiocruz. A sessão consistiu na leitura dos votos, em que diretores da agência se sucederam explicando a importância das vacinas e o processo de sua análise, reiterando a gravidade do problema da pandemia de Covid-19 e a importância da ciência, indicando os efeitos deletérios do “negacionismo” e refutando a ideia de que há “tratamento precoce” contra a doença. O diretor Alex Campos manifestou apreço pelos questionamentos dirigidos à agência, que ele compatibilizou com a democracia e a ciência, mas também fez ver que suas ações foram pautadas por critérios técnicos e orientadas para a prestação de serviço público. Superada essa etapa, as atenções agora tendem a se voltar para a urgente campanha de vacinação, que tem sido uma política de superação de desigualdades e que ganhou especial importância com a constitucionalização da saúde pública, em 1988, como mostrou Natália Pires em sua resenha do livro Health as a human right: the politics and judicialisation of health in Brazil, de Otávio L. M. Ferraz. Mas ela pode enfrentar obstáculos importantes e sem precedentes.

Enquanto a sessão transcorria e mesmo depois que o governador de São Paulo, João Doria, deu início à vacinação no estado, o presidente, seus filhos, o pastor Marco Feliciano, o Ministério da Saúde, entre outros, tentavam emplacar nas mídias sociais a ideia de que há “tratamento precoce” para a doença. A sincronia sugere que, com a aprovação das vacinas, o populismo bolsonarista lançará mão de outras operações para sustentar sua contestação da imunização, mas seguirá falando de ciência. Segundo Sophia Rosenfeld, em seu Democracy and truth: a short history, isso não chega a ser surpreendente. Pelo contrário, sua proposta é pensar o populismo a partir do que agentes falam sobre o conhecimento e o que buscam validar como conhecimento. Seu argumento central é que as práticas populistas denotam um antipluralismo no campo das ideias (não só na política, na vida social, nos valores) e ganham forma pela circulação de teorias conspiratórias, centradas num episódio de alegado roubo ou fraude, tendo a simplicidade como um horizonte utópico. No universo em que populistas se movem, as coisas são mais simples do que parecem e estão ao alcance de todos; especialistas é que as complicam. O líder facilita a compreensão e a solução de problemas, inclusive técnicos, ao povo, entrando em confronto com outras instâncias de produção de verdade. Para validar suas afirmações, elege inimigos e apela ao senso comum, entendido como instância portadora de sensibilidades e entendimentos forjados pela experiência, que opera pela intuição e que o líder populista aciona, por exemplo, mediante analogias. 

Não se trata mais de terraplanismo, mas de narrativas plausíveis ao senso comum, simples e imediatas, com história no país. A bailarina da morte: a gripe espanhola no Brasil, recém-publicado livro de Lilia M. Schwarcz e Heloisa Starling, mostra que em 1918 o vírus viajou de navio ao Brasil e depois entre as províncias. A natureza do causador da gripe era desconhecida mesmo por cientistas, e as reações de políticos e da sociedade foram semelhantes às atuais: recusa da interrupção da vida cotidiana, negação da gravidade da doença e da necessidade de medidas quarentenárias, crença em soluções ao alcance das mãos, inclusive antimaláricos. Em 1918, porém, tais respostas não foram articuladas em redes globalmente conectadas, densas e frenéticas, para operar desinformação. Já no Brasil de hoje, a negação, vocalizada desde cima, ganha materialidade circulando por circuitos que conectam Whatsapp, canais no Youtube, Twitter, canais de televisão, pregações em igrejas. E, se não há um movimento antivacina no país, o presidente se empenha em articulá-lo. 

Negacionismo e inconsistências na condução da pandemia têm efeitos sobre a desigualdade, a começar pela gestão da vida, dado que a Covid-19 mata desproporcionalmente os mais pobres. Nesse contexto, afirmar o direito de todos à vacina é uma forma de assegurar o acesso dos mais afetados a ela, e a sua obrigatoriedade é um meio para constranger quem possa ter menor interesse em se imunizar a contribuir para a produção de proteção aos demais. A decisão do Supremo Tribunal Federal em ações que lhe pediram uma interpretação do termo “vacinação compulsória” vai nesse sentido. 

O Partido Democrático Trabalhista (PDT) pediu ao tribunal que esclarecesse o termo afirmando a obrigatoriedade do Estado de vacinar e dos indivíduos de se vacinarem; o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) pediu o afastamento da compulsoriedade em prol do direito à vida, à liberdade e à incolumidade, considerando uma alegada insegurança das vacinas. O presidente do tribunal, ministro Luiz Fux, conduziu os trabalhos considerando a urgência de decidir a matéria e cuidou de explicitar que lhes cabia fornecer segurança jurídica à sociedade dadas as disputas e a sua parte em uma política pública. Para caracterizar o contexto da decisão, os ministros falaram em “obscurantismo” e esclareceram que o termo “vacinação compulsória” significa “vacinação obrigatória”, que eles distinguiram, a seu turno, de “vacinação forçada”. O Estado não é obrigado a determiná-la, mas tem a liberdade de fazer isso. Se o fizer, significará que há obrigações aos indivíduos — de se vacinar, estando sujeito, caso escolha não se vacinar, a sanções como restrições à circulação por certos espaços — e obrigações ao próprio Estado, que deve dar acesso universal à vacina. O colegiado não negou, com isso, que se trata de bem escasso, nem se opôs à eleição de grupos para acesso prioritário a ele. Como Monica de Bolle argumentou, os benefícios da vacinação de uns aproveitam a todos, de algumas formas: pela diminuição da ocupação de leitos, a redução do tempo de internação, pelo desenvolvimento de imunidade coletiva. 

Para que todos sejam vacinados num contexto em que é necessária ampla adesão da população à imunização e o bolsonarismo, inclusive o presidente, age para que ela não aconteça, a campanha é uma peça fundamental. Ela deve ser pensada como um aspecto do direito à vida. Como a sessão da Anvisa deixou claro, deve enfrentar desinformação acerca da segurança das vacinas e de “tratamento precoce”, que o bolsonarismo propaga confundindo e diminuindo a adesão das pessoas. Também deve ser pensada como uma forma de correção da assimetria informacional em uma sociedade com pouca educação formal, marcada pela oralidade e pela desigualdade. Para tanto não poderemos contar com a inércia, nem com o que nós possamos considerar serem os interesses primordiais das pessoas. Mas poderemos contar com sensibilidade e entendimento comuns que ganharam forma ao longo de décadas de práticas bem sucedidas na esteira do Plano Nacional de Imunização (PNI), criado em 1973, em plena ditadura militar, como parte de esforços pela erradicação da pobreza e promoção do desenvolvimento. É irônico que autoritários no poder, nas ruas e nos condomínios hoje, os quais cultuam os militares da ditadura, não conheçam sequer isso. Em plena democracia e em meio a uma pandemia que já matou mais de 220 mil pessoas no Brasil, a campanha deve expressar mais que uma igualdade de destino, em que o pobre importa por portar doenças que põem os ricos em perigo. Trata-se de um direito de todos e da oportunidade de corrigir o mais importante erro de conta do nosso país, em que uns contam mais que outros. Narrativas populistas sobre o conhecimento, como são as negacionistas e diversionistas, só contribuem para aumentá-lo e nos ajudam a entender por que o bolsonarismo açula ao ataque a instituições técnicas, como as judiciais e a Anvisa, suas concorrentes em discursos de verdade.

Editoria especial em parceria com o Laut

LAUT – Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo realiza desde 2020, em parceria com a Quatro Cinco Um, uma cobertura especial de livros sobre ameaças à democracia e aos direitos humanos.

Quem escreveu esse texto

Renata Nagamine

É professora da UFBA.

Matéria publicada na edição impressa #42 em janeiro de 2021.