Laut, Liberdade e Autoritarismo,

A culpa é da internet?

Efeitos do ambiente digital em como as pessoas formam suas opiniões são multifacetados e precisam ser pensados para além do filtro das redes

01set2024 • Atualizado em: 30ago2024 | Edição #85
Ilustração de Isadora Bertholdo

Dave é um cidadão médio americano vivendo em Nova Jersey. Passa horas da sua vida em congestionamentos e mantém um ritual de toda sexta­-feira tomar umas cervejas lendo livros da biblioteca do seu bairro. Ele vem de uma família apoiadora do Partido Democrata, mas ao longo da vida desenvolveu visões mais próximas às do Partido Republicano e votou em Donald Trump em 2016. Ele se informa por uma rádio local, por um site de direita chamado The Daily Caller e pelo x (ex-Twitter). É assim que Chris Bail apresenta o primeiro personagem do seu livro Breaking the Social Media Prism, publicado em 2021, ainda sem tradução para o português.

“Estaria Dave preso em uma câmara de eco em que suas visões de mundo são apenas reforçadas pelo que ele vê no mundo digital e isso estaria tornando­-o mais radical em suas opiniões?”, Bail questiona. O autor conduziu um experimento em que expôs cidadãos americanos como Dave a visões opostas às suas em redes sociais durante um período limitado de tempo. As conclusões são surpreendentes: “Expor pessoas a visões do outro lado não fez com que os participantes se tornassem mais moderados”. Dave, ao contrário, desenvolveu visões mais conservadoras. Ao ser exposto a histórias de imigrantes, sua reação não foi de empatia, mas de questionar se aqueles seriam imigrantes reais ou uma conspiração democrata.

A indagação de Bail alimenta uma discussão quase onipresente nas análises políticas e de conjuntura, na literatura sobre novos tipos de populismo e extremismo radical e sua atuação na “morte das democracias”: o papel da internet e das redes. Em que medida a culpa seria da internet ou das mídias sociais?

No mundo off-line, as opções por convívio e exposição a pontos de vista divergentes já eram evitados

Algumas das hipóteses mais proeminentes sobre uma suposta culpa da internet estão nos argumentos dos best-sellers de Eli Pariser (O filtro invisível, 2012) e Cass Sunstein (#Republic, 2017). No primeiro, Pariser coloca de pé a noção de “bolhas” ou “filtros invisíveis”. Em suma, associa o funcionamento das plataformas digitais e de seus mecanismos de recomendação e personalização com a constituição de bolhas nas quais só chegam aos usuários conteúdos alinhados às suas visões, diminuindo o contato das pessoas com pontos de vista diferentes.

Sunstein agrega a ideia das “câmaras de eco”, referindo-se à construção de ambientes online que desprivilegiam as descobertas por acaso e minam as capacidades de estabelecimento de um repertório comum necessário ao debate democrático. Seriam espaços onde ouvimos coisas muito parecidas com o que falamos.

Tais ideias ganharam muita força no debate público. Das mesas de bar às cortes, elas têm alimentado discussões acaloradas, entendimentos jurisprudenciais e argumentações políticas sobre o poder das redes. Mas não lhes falta questionamento.

Sem contexto

Bail não é o primeiro a propor uma complexificação dos efeitos da comunicação digital. Seu argumento se conecta com uma interessante formulação popularizada pela antropóloga danah boyd, do “colapso de contextos”. Em suma, a ideia da autora é que a internet mutila o contexto no qual as pessoas se expressam e onde circulam conteúdos. Isso afetaria tanto a emissão — já que as pessoas passam a ter uma noção menos precisa da audiência para quem falam — quanto a recepção de mensagens, uma vez que isso abre espaço para que conteúdos inesperados passem a povoar as nossas bolhas.

Autores como Axel Bruns questionam a existência generalizada dessas bolhas argumentando que boa parte das pessoas compõem sua cesta informativa de maneira diversa, o que acaba expondo elas a uma variedade de informações. A maior parte compõe sua dieta de mídia com uma miríade de fontes e plataformas, o que pode minimizar o efeito bolha. Isso faria com que grupos completamente isolados em suas próprias opiniões fossem uma exceção.

Uma outra linha argumentativa que questiona o aumento do isolamento de opiniões em ambientes digitais vai buscar demonstrar como, no mundo off-line, opções por convívio e exposição a pontos de vista divergentes já eram evitados. O próprio Bruns argumenta que o uso reiterado do argumento sobre bolhas informativas acaba desviando a atenção da real causa do problema.

Em Networked Propaganda, livro referência sobre as eleições de 2016 nos Estados Unidos, Yochai Benkler, Robert Faris e Hal Roberts aprofundam a ideia de que a internet é parte da história, mas interage com outros personagens. Ao analisar o que chamam de crise epistêmica, afirmam que ela também tem raízes importantes na política e na mídia pré­-digital. Argumentam que é um problema dos “facebooks”, mas também das “Fox News” e de como tudo isso se conecta e interage com partidos, marqueteiros e suas ideias.

Extremismos

Então internet e extremismos não têm relação? Mesmo entre os críticos da causalidade, a afirmação ingênua de que a internet não tem nada a ver com extremismos, radicalização antidemocrática ou com as dificuldades no debate público não encontra eco. A questão é como pensar essa relação entre tecnologia, mídia e sociedade de maneira complexa, fugindo de uma visão tecnocêntrica e entendendo que os efeitos muitas vezes se dão de forma indireta e cumulativa.

Um dos pontos centrais é que o ambiente digital permite que as pessoas passem a se informar de maneiras muito diferentes. Uma pesquisa sobre o consumo de mídia digital dos brasileiros feita pelo Aláfia Lab em 2023 mostrou que as grandes empresas de mídia ainda ocupam lugar central no que as pessoas consomem. Por outro lado, ao observar na minúcia o que é consumido dentro das redes, também apontou que há uma série de novas fontes de informação que encontraram audiências por causa do digital. Para além disso, a sobreposição entre a) as escolhas e gostos pessoais; b) a estrutura social, com suas desigualdades regionais, de gênero, raça, entre outras; e c) as estruturas das plataformas, que incentivam ou limitam o acesso a determinados conteúdos, criam maneiras personalizadas de acessar informações, o que desafia a construção de espaços comuns.

Essa fragmentação na maneira que as pessoas se informam alimenta uma cisão no modo como os cidadãos interpretam determinados fatos sociais, inclusive o que é credibilidade de uma fonte, como já apontaram seguidas pesquisas do InternetLab sobre consumo de informação em aplicativos de mensagens. E mais: cada rede cumpre diferentes funções, tem diferentes afinidades com conteúdos e formas de disseminação na população, montando um complexo mosaico multiplataforma.

Essa fragmentação do consumo de informação afeta como as pessoas formam sua visão de mundo, inclusive suas percepções sobre as opiniões do outro. Um dos argumentos de Bail é que esse ambiente digital acaba por distorcer a percepção sobre aqueles que discordam de nós. Ele ressalta que as pessoas que costumam ser mais ativas nas redes sociais — e em quase qualquer espaço — são aquelas que têm posições políticas mais distantes do centro. Isso faz com que posicionamentos políticos extremos sejam mais barulhentos e mais visíveis nas redes. Desta maneira, argumenta, pessoas que discordam dessas opiniões passam a se identificar com o campo político oposto — e não com visões mais moderadas, que são menos postadas e engajam menos.

Desarmar a bomba da radicalização não passa só por mostrar conteúdos diferentes

Os efeitos do ambiente digital, e especialmente das grandes plataformas, na maneira como as pessoas formam suas visões de mundo são multifacetados e precisam ser pensados muito além de um suposto efeito direto das plataformas na exposição a pontos de vista divergentes. Perto de tais formulações, o “filtro bolha” torna-se um recorte pouco representativo do tamanho do problema. Na verdade, as ideias do colapso de contextos, da importância das raízes políticas e do comportamento das mídias, a fragmentação das fontes de informação e o ambiente multiplataforma e a dissonância cognitiva na percepção do outro somam-se aos problemas diagnosticados pelo senso comum da bolha.

A questão que se coloca é o que pode ser feito para que essa nova realidade digital funcione em prol da construção de um espaço comum e não contra ele. Como mostra o experimento de Bail no início do texto, simplesmente furar a bolha pode não dar certo — assim como não tem funcionado a simples confrontação de opiniões com fatos e checagens.

Esse diagnóstico aponta que uma agenda efetiva de desradicalização de extremismos na sociedade democrática passa por múltiplas iniciativas voltadas à esfera digital. Algoritmos de personalização precisam ser operados com transparência e com medidas de mitigação de riscos a direitos? É lógico. Mas é preciso que haja políticas para garantir uma mídia plural, democrática, independente e sustentável. Faz sentido pressionar plataformas para que ajam contra conteúdos extremos e violentos que ali circulam? Sim, mas também são necessárias ferramentas de design que empoderem usuários com contexto e possibilitem corrigir visões sobre o outro campo ideológico.

Ao transcender a causalidade direta, temos evidências de que desarmar a bomba da radicalização antidemocrática não passa só por mostrar conteúdos diferentes ou por remover o que for problemático, mas também abrir um leque de alternativas para lidar com um novo e desafiador contexto de mídia, de formação de visão de mundo e de comunicação política.

Editoria especial em parceria com o Laut

LAUT – Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo realiza desde 2020, em parceria com a Quatro Cinco Um, uma cobertura especial de livros sobre ameaças à democracia e aos direitos humanos.

Quem escreveu esse texto

Nina Santos

É diretora do Aláfia Lab e pesquisadora do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital.

Francisco Brito Cruz

Diretor executivo e cofundador do InternetLab, é advogado e autor de Novo jogo, velhas regras: democracia e direito na era da nova propaganda politica e das fake news (Letramento).

Matéria publicada na edição impressa #85 em setembro de 2024. Com o título “A culpa é da internet?”