Laut, Liberdade e Autoritarismo,
Desradicalizar as Forças Armadas
Superar o acomodacionismo das relações do poder político com as instituições militares é tarefa de todo campo democrático
01ago2024 • Atualizado em: 06ago2024 | Edição #84Em março deste ano, o ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes, retirou o sigilo de 27 depoimentos que foram colhidos no inquérito que apura a tentativa de golpe para impedir a posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Desses, dezenove eram de oficiais do Exército e da Marinha no serviço ativo, na reserva e reformados. A lista de depoentes militares incluía um ex-presidente da República, dois ex-ministros da Defesa, um ex-comandante da Marinha, dois ex-comandantes do Exército e um ex-comandante da Aeronáutica. Pela primeira vez desde o início da Nova República, oficiais da cúpula das forças armadas tiveram que responder à justiça sobre possível envolvimento em uma tentativa de golpe de Estado.
Desde a publicação do best-seller Como as democracias morrem (Zahar, 2018), de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, disseminou-se a ideia de que a era dos golpes de Estado com tanques nas ruas havia ficado no passado e a erosão democrática ocorreria de forma mais furtiva no século 21. Porém, no caso brasileiro, as forças armadas estão imersas em um processo de radicalização política desde os anos 2010, tendo como marco importante a crise política que antecedeu a deposição da presidenta Dilma Rousseff.
As manifestações contra o governo, iniciadas em junho de 2013, serviram como um movimento catalizador de um campo político autodenominado “patriota”. No interior desse campo, havia muita “gente esquisita” — como bem registrou Angela Alonso em seu Treze: a política de rua de Lula a Dilma (Companhia das Letras, 2023) — entre as quais um grupo que pedia uma intervenção militar. Em 2015, esse grupo que defendia uma pauta claramente antidemocrática encontrou um totem: o general Hamilton Mourão, então comandante militar do Sul, que fez duras críticas à presidenta. Desde então, um boneco inflável do general começou a ser exibido nas manifestações a favor do impeachment que ocorriam na Esplanada dos Ministérios, em Brasília.
Enquanto Mourão e Heleno participavam do debate público, Villas Bôas atuava nos bastidores
Durante o processo que levou à deposição de Dilma, em 2016, outro general ganhou os holofotes: Eduardo Villas Bôas. Ele assumiu o comando do Exército no conturbado segundo mandato da petista e adotou um comportamento ambíguo que lhe permitiu agradar e fortalecer o campo radical autoritário que estava se organizando naquela época e, ao mesmo tempo, tranquilizar o campo democrático. Os acenos ao campo autoritário foram feitos em um primeiro momento de forma sorrateira, por exemplo, quando o general dizia publicamente que pautava suas ações pelo artigo 142 da Constituição. À época, ele não deixava claro que estava se ancorando na interpretação esdrúxula do artigo do jurista Ives Gandra Martins, que atribui um papel tutelar às Forças Armadas como mediadoras de conflitos entre os três poderes.
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Enquanto figuras como o general Mourão e o general Heleno, que atuava como comentarista na TV Bandeirantes, participavam do debate público expressando opiniões controversas que alimentavam o campo radical autoritário, o general Villas Bôas atuava de maneira discreta nos bastidores, estimulando uma maior participação do Exército no debate de temas por ele considerados nacionais. No longo depoimento que deu a Celso Castro, publicado no livro General Villas Bôas: conversa com o comandante (Editora FGV, 2021), o general afirmou que estabeleceu como meta que o Exército voltasse a ser “ouvido com naturalidade”, e estimulou os generais que estavam sob seu comando a ocuparem os espaços de comunicação em suas áreas ou setores de atividade, estreitando laços com a mídia. O Centro de Comunicação Social do Exército desempenhou um papel central na estratégia do comandante e as redes sociais da corporação funcionaram a todo vapor a partir de 2015.
É preciso entender e enfrentar o crescente extremismo político no país para proteger a democracia brasileira
A meta do general foi plenamente atingida, “o grande mudo”, como os militares costumam se referir à corporação, voltou a falar e pautar a imprensa. O bom relacionamento entre o Exército e a mídia foi o que permitiu, na visão de Villas Bôas, que as declarações públicas de Mourão não tivessem maiores consequências. Além da mídia, a classe política também colaborou com a estratégia do comandante do Exército de minimizar atos de insubordinação, como os do próprio Mourão, já que antes dele outro general havia sido poupado. Em dezembro de 2014, o general Sérgio Etchegoyen assinou uma dura nota de repúdio chamando o relatório da Comissão da Verdade de leviano. Isso não prejudicou sua indicação para o cargo de chefe do Estado-Maior do Exército, o segundo posto mais importante da instituição, no segundo mandato de Dilma. Pelo contrário, as críticas de Etchegoyen à Comissão da Verdade e ao governo o aproximaram do então vice-presidente Michel Temer e o cacifaram para assumir o Gabinete de Segurança Institucional, assim que Temer assumiu a presidência em 2016.
Influenciadores digitais
A lassidão disciplinar do Ministério da Defesa nos casos de Etchegoyen e Mourão contribuiu para que Villas Bôas se sentisse cada vez mais à vontade para agir politicamente. Em 3 de abril de 2018, o general protagonizou um episódio onde, em suas palavras, agiu “no limite da responsabilidade institucional” e, dessa vez, secundado por todo o alto comando do Exército. Às vésperas do julgamento de um pedido de habeas corpus para o presidente Lula, Villas Bôas postou duas declarações no X (antigo Twitter) criticando a impunidade e assegurando que o Exército compartilhava os mesmos anseios de todo “cidadão de bem”. A atitude do general foi a senha para que oficiais da ativa começassem a se comportar como influenciadores digitais.
Marcelo Godoy em “Soldados influenciadores: os guerreiros digitais do bolsonarismo e os tuítes de Villas Bôas”, publicado na coletânea Os militares e a crise brasileira (Alameda, 2021), organizada por João Roberto Martins Filho, contabilizou 3.427 tuítes políticos de militares da ativa de 3 de abril de 2018 a 15 de abril de 2020. Entre os tuiteiros havia 35 oficiais generais, sendo 31 do Exército, dois da Força Aérea e dois da Marinha. Produziu-se assim um ambiente de politização das forças armadas que marcou as eleições presidenciais de 2018 e todo o governo de Jair Bolsonaro.
A onda militarista que elegeu um capitão e um general de Exército, ambos de extrema direita e com histórico de insubordinação militar, nutriu-se da política de acomodação que orientou o relacionamento entre o poder político e as Forças Armadas na Nova República. Esta acomodação preservou espaços de autonomia militar e não foi capaz de restringir o envolvimento das corporações em assuntos que guardam relação direta com a defesa nacional. É importante enfatizar que a prática de empregar as forças em atividades não militares no país está enraizada em nossa cultura política e é um dos nós mais difíceis de desatarmos nas relações civil-militares. O que a literatura sobre esse tema nos ensina é que quanto maior, mais estreito e rotineiro for o contato das Forças Armadas com autoridades, partidos, movimentos sociais, comunidades vulneráveis, maior é o risco de se envolverem com questões políticas e tentarem influenciá-las.
A carreira dos oficiais generais que assumiram postos políticos importantes no governo Bolsonaro transcorreu no período que vai da abertura política à instauração da Nova República. No entanto, as missões que lhes foram atribuídas pelo poder político por várias décadas estavam voltadas majoritariamente para o front doméstico, como as operações de garantia da lei e da ordem — que tinham como objeto a violência urbana, greves policiais, garantia de votação e apuração e a realização de grandes eventos. A militarização dessas atividades consolidou no imaginário militar a crença de que eles são mais competentes, comprometidos e honestos que as outras agências com as quais colaboram no Brasil, como as polícias, os governos estaduais e municipais e as organizações não governamentais.
E mesmo as missões executadas fora do território nacional, como as missões de paz, acabaram por reforçar nos militares brasileiros a crença de que eles eram mais competentes que os civis e moralmente superiores. Nem mesmo a gestão desastrosa do general Eduardo Pazuello à frente do Ministério da Saúde durante a pandemia ou o envolvimento de generais em um esquema de desvio de joias foram capazes de abalar essas certezas.
Arcabouço institucional
Desradicalizar e democratizar uma arena como a das Forças Armadas brasileiras, que têm as características que foram apresentadas até aqui, não é algo trivial. No entanto, é um esforço no qual todo o campo democrático precisa se engajar nos próximos anos. Superar o acomodacionismo que se estabeleceu nas relações do poder político com as instituições militares é processo longo, mas algumas décadas de democracia permitiram a criação de um arcabouço institucional que não deve ser subestimado e precisa funcionar a contento. Os três poderes da República já possuem instrumentos que podem assegurar um efetivo controle civil sobre as forças armadas, como o Ministério da Defesa, as comissões permanentes de Defesa Nacional nas duas casas legislativas, o Tribunal de Contas da União e o Ministério Público. Todos esses órgãos devem ser instados a cumprir seu papel na supervisão das atividades militares, em particular a pasta da Defesa, que precisa ser ocupado por funcionários públicos civis de carreira.
Já a adequação efetiva das Forças Armadas ao que está preconizado na nossa Constituição, que garantirá de fato a democratização dos assuntos de defesa nacional no Brasil, exige o envolvimento de outros órgãos, além daqueles que têm responsabilidade direta no monitoramento das atividades militares. Só seremos uma democracia plena quando nossas Forças Armadas espelharem o pluralismo político e a diversidade étnica e de gênero que compõem a população brasileira, por isso os ministérios das Mulheres, da Igualdade Racial, dos Direitos Humanos e dos Povos Originários precisam cobrar das Forças Armadas isonomia no acesso à carreira militar e respeito às diferenças dentro da instituição.
Os três poderes possuem instrumentos que podem assegurar controle civil sobre as Forças Armadas
Isonomia é uma palavra-chave e um potente mecanismo para começarmos a reverter a percepção cristalizada na caserna de que os militares são moralmente superiores aos civis e devem tutelar a República. Deve haver isonomia para o funcionalismo público civil e militar no que concerne ao regime previdenciário, ao serviço de saúde, subsídio à moradia e sistema educacional, por exemplo.
É essencial ainda que a cidadania se aproprie da discussão sobre defesa nacional e o processo de revisão dos documentos normativos da área é o espaço para que isso aconteça. A revisão dos documentos de defesa deve ser precedida de um amplo debate com a sociedade, nos moldes de uma Conferência Nacional, como as que ocorrem nos outros ministérios.
Estas são apenas algumas propostas que não esgotam o assunto — nos limitamos aqui a listar os esforços que podem ser feitos a partir de um arcabouço institucional que já existe e precisa ser utilizado —, mas que dependem de vontade política e engajamento popular para se transformarem em políticas públicas duradouras em direção a uma democracia mais sólida.
Editoria especial em parceria com o Laut
O LAUT – Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo realiza desde 2020, em parceria com a Quatro Cinco Um, uma cobertura especial de livros sobre ameaças à democracia e aos direitos humanos.
Matéria publicada na edição impressa #84 em agosto de 2024.
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