Infantojuvenil,
O mestre do rascunho
Expoente da ilustração de livros pra crianças, Odilon Moraes fez do minimalismo a sua marca
29out2018 | Edição #16 out.2018“Ficou louco, Augusto? Isso aqui é o meu rascunho.”
Corria o ano de 2004 e Odilon Moraes terminava de assinar um contrato para a publicação de seu novo livro. Em uma das salas da editora Cosac Naify, na Vila Buarque, centro de São Paulo, o autor e ilustrador estava acompanhado do então presidente da empresa, o editor Augusto Massi, que aguardava as últimas rubricas para fazer uma proposta. Ao ouvi-la, o tom de meditação na voz de Odilon desapareceu.
Massi queria escanear o boneco da obra e utilizá-lo como arte final. No jargão do mundo do livro, boneco é uma espécie de rascunho — naquele caso específico, feito com folhas dobradas ao meio, unidas por fita adesiva, traços a lápis, pingos de tinta fora de lugar, um rasgo ou outro pelos cantos. O ilustrador, formado em arquitetura na USP, via naqueles papéis um prédio feito de reboco e tijolos à mostra. Um embrião impublicável. Uma nuvem carregada que ainda choveria. Um vir a tornar-se.
“Não dá, preciso de dois meses para passar a limpo”, afirmou, já calculando o tempo para xerocar o material, reproduzi-lo na mesa de luz, usar a mesma aquarela em todas as páginas e deixar as folhas secando no chão de seu ateliê, no bairro de Perdizes.
Segundo Massi, o livro era daquele jeito mesmo: um banquinho e um violão
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Foi um argumento específico que mudou os rumos da história. Segundo Massi, o livro era daquele jeito mesmo: um banquinho e um violão. A música de João Gilberto deu um estalo na sala, fez Odilon viajar no tempo e aterrissar em uma tarde que passara, havia dois anos, na sede de outra editora, a Companhia das Letras, quando estava prestes a lançar o seu primeiro título autoral, A princesinha medrosa.
Na época, a casa se preparava para publicar, quase ao mesmo tempo, Vizinho, vizinha, assinado por Roger Mello, Graça Lima e Mariana Massarani. Enquanto Princesinha era mais contido, como se os desenhos sussurrassem, a história sobre os vizinhos da rua do Desassossego era colorida, espalhafatosa, solar. É como se publicássemos lado a lado Bossa Nova e Tropicália, comentou um dos editores.
A frase ficou na cabeça de Odilon. E, dois anos depois, ajudou a desmontar as suas defesas na Cosac. O boneco foi pouco depois escaneado e enviado para a gráfica. E, daqueles rascunhos sem muitos retoques, surgiria um de seus livros mais reconhecidos: Pedro e Lua. Ainda que a impressão do livro trouxesse uma cor especial, que brilhava no escuro, realçando os claros-escuros que marcam o trabalho de Odilon, a grande novidade foi a sacada de deixar os desenhos “inacabados”.
Estilo
“Foi um marco, porque publicar o boneco acabou se transformando em um estilo. Não era mais no processo de passar a limpo que eu me revelava ilustrador. Era antes”, me contou, com a voz sempre baixa, em uma padaria a poucas quadras de onde funcionava a Cosac Naify, extinta em 2015.
Catorze anos depois, seis de seus livros seguem a técnica. Em 2006, foi publicado, pela mesma Cosac, Ismália, com versos do poema homônimo de Alphonsus de Guimaraens. No ano passado, a Olho de Vidro lançou Rosa, que parte do conto A terceira margem do rio, de Guimarães Rosa.
Neste ano já são três: Olavo, que saiu pela Jujuba, além dos recém-lançados Lulu e o Urso (Pequena Zahar) e Casa de passarinho (Positivo).
Aos 52 anos, mais de trinta deles dedicados à ilustração, Odilon é filho de um juiz que trabalhou em diferentes cidades do interior de São Paulo, entre elas Ribeirão Preto, Nhandeara, Tanabi e São Carlos. A infância e a adolescência mais tranquilas voltaram à tona faz cinco anos, quando escolheu trocar a vida na capital por Valinhos (a cerca de 10 km de Campinas), onde vive atualmente com a mulher e os três filhos, de doze, nove e seis anos.
É do sótão da casa, uma mistura de ateliê e biblioteca, que brotam histórias como a da amizade entre o garoto e a tartaruga de Pedro e Lua, relançado neste ano pela Jujuba. Ou a do menino triste de Olavo, que recebe misteriosamente um presente. Ou a da garotinha que enche a mãe de perguntas enquanto ela trabalha, caso de Lulu e o Urso, feito em parceria com sua mulher, Carolina Moreyra.
Mas uma sinopse é pouco para resumir suas histórias. Vencedor de quatro prêmios Jabuti, Odilon Moraes é atualmente um dos principais nomes do livro ilustrado no país.
Odilon e alguns de seus colegas de geração foram responsáveis, nos últimos quinze anos, pelo forte desenvolvimento desse formato no Brasil, que tradicionalmente punha as ilustrações em condição subalterna ao texto. Além das questões artísticas ligadas ao livro ilustrado, também foi preciso agir politicamente: os ilustradores brasileiros, tendo Odilon como um de seus líderes, lutaram para ter reconhecido o status autoral de seu trabalho, tanto em termos de créditos como contratuais.
Em suas obras, texto e imagem nunca existem de forma isolada. Estão sempre ligados, em constante diálogo, forçando o leitor a observar a interação entre ambos para conseguir absorver a narrativa. São como letra e melodia de uma mesma canção.
Em Rosa, por exemplo, escrita e aquarela caminham paralelamente, mas em tempos diferentes. Em Olavo, a alegria do personagem triste fica sempre à espreita na forma de uma cor azul. Qualquer interferência pode afetar o ritmo da dança entre palavra e desenho, deixando a literatura manca.
Odilon e alguns de seus colegas de geração foram responsáveis pelo forte desenvolvimento do livro ilustrado no Brasil
O mesmo ocorre com textos de outros autores que ganham as cores de Odilon, caso dos contos do escritor mineiro Wander Piroli recentemente relançados pela editora Sesi-SP. Em O matador, um menino sonha em assassinar um passarinho em uma sequência visual verde que desemboca no vermelho sangue. Já em Os dois irmãos, as ilustrações surgem espelhadas, como se fossem os pontos de vista de cada um dos personagens.
Narrativa
“Quando os desenhos não são conflitantes com a história ou não criam uma narrativa, o ilustrador é prescindível. Se o livro depois muda de editora, ela pode escolher outro profissional para ilustrar. Mas, no livro ilustrado, isso é impossível. A obra se constitui na junção da palavra e da imagem. O texto ainda não é obra. O desenho também não”, teoriza Odilon.
Tanto os contos de Piroli quanto outro título recém-lançado pela Positivo — Bichos da noite, com versos de Mariana Ianelli — não utilizam os rascunhos de Odilon como ilustração final. Mas, mesmo passadas a limpo, as imagens mantêm as fronteiras incertas da aquarela, o lápis que emula o esboço, a alma de croqui feito em caderninho. “As pessoas logo identificam que são meus. Mas eu não tenho essa noção de que trabalho sempre igual”, diz.
“Porque é como se começasse do zero toda vez. Se vou molhar o papel antes de passar a tinta ou deixar seco, se vou usar nanquim ou lápis… Decido tudo na hora. Isso me angustia um pouco. O boneco serve também para aliviar a sensação de desamparo.”
Ao terminar essa frase, a fala de Odilon soa como um rascunho. Mas a sua imagem, os olhos por trás dos óculos redondos, têm a força de arte-final. O autor surge desse conflito. Como se fosse um livro ilustrado.
Odilon nas livrarias
Oito livros de Odilon Moraes — ou ilustrados por ele — estão sendo lançados em 2018, ou então voltam às prateleiras das livrarias:
Pedro e Lua
Jujuba, 48 págs., R$ 42
Olavo
Jujuba, 48 págs., R$ 42
Rosa
Olho de Vidro, 48 págs., R$ 49,90
Lulu e o urso, com Carolina Moreyra
Pequena Zahar, 48 págs., R$ 49,90
Casa de passarinho, de Ana Rosa Costa
Positivo, 40 págs., R$ 43,90
Bichos da noite, de Mariana Ianelli
Positivo, 40 págs., R$ 43,90
O Matador, de Wander Piroli
Sesi-sp Edições, 32 págs., R$ 36
Os dois irmãos, de Wander Piroli
Sesi-sp Edições, 32 págs., R$ 36
Matéria publicada na edição impressa #16 out.2018 em outubro de 2018.
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