História,

Enquanto isso, no Palácio do Catete…

Como foi, no Rio de Janeiro, o 7 de novembro de 1917, dia em que a Rússia abalou o mundo

13nov2018 | Edição #7 nov.2017

Um homem aflito consumiu a ensolarada quarta-feira de 7 de novembro de 1917 numa romaria pelos jornais do Rio de Janeiro. O comerciante Maurício Werner perambulou de redação em redação desfiando sua história: era natural de Santa Catarina e filho de pais brasileiros. Herdara o sobrenome dos avós imigrantes alemães. Mas ele, Maurício, nascera no Brasil e vivia na então capital federal.

Ele mostrava aos jornalistas a carteira de identificação e o passaporte. Jurou que não empregava um único alemão. Seu estabelecimento era conhecido como Bar da Brahma, porém no papel se chamava A Franziskaner. Werner contou que não passava de inquilino do imóvel alugado à Companhia Cervejaria Brahma — esta, sim, administrada por alemães. Suplicou que divulgassem seus esclarecimentos. Como ele, dezenas de cidadãos agoniados peregrinavam pelos jornais para negar a nacionalidade alemã.

O desassossego de Maurício Werner principiara quatro dias antes, quando uma turba de manifestantes vandalizara o Bar da Brahma, na Galeria Cruzeiro. Destruíram móveis, quebraram louças e garrafas. Nem o piano escapou. Um freguês saiu às carreiras e esqueceu uma espada. O quebra-quebra castigou numerosas casas comerciais e instituições culturais vinculadas — ou assim pareciam aos olhos da multidão — a alemães.

A fúria irrompera no sábado, logo que se espalhou pela cidade a notícia do torpedeamento, por um submarino alemão, de mais dois navios mercantes brasileiros. O ataque ao Acari e ao Guaíba provocara a morte de dois foguistas. Para o povaréu, todo boche equivalia a um agente do Império Alemão. Devido a outras agressões no Atlântico, o Brasil declarara em 26 de outubro guerra ao país do imperador Guilherme 2º. Associara-se aos Aliados que batalhavam no conflito deflagrado em 1914 e que o porvir batizaria como Primeira Guerra Mundial.

No dia em que Maurício Werner acorreu aos matutinos e vespertinos, a coalizão que combatia os impérios Alemão e Austro-Húngaro começou a perder um componente, a Rússia. À noite, os revolucionários bolcheviques tomaram o Palácio de Inverno, na capital Petrogrado. Queriam que as tropas russas se retirassem da guerra. Corria o 25 de outubro, conforme o carcomido calendário juliano — 7 de novembro no gregoriano, em vigor no Brasil. Com a Revolução Russa, desabava a velha ordem. No Rio, no mesmo instante, o presidente Venceslau Brás reunia o Ministério no Palácio do Catete. Mais cedo, de madrugada, desabara um prédio na travessa Oliveira. Não houve vítimas.

Anarquistas e boêmios

Pouco antes de o prédio ruir, em sessão de insones, aberta dez minutos depois da meia-noite, a Câmara dos Deputados acolheu o pedido de estado de sítio encaminhado pelo presidente. A justificativa eram as exigências do estado de guerra. O deputado Maurício de Lacerda esculhambara o sítio como artifício para “censura à imprensa e encarceramento dos desafetos da situação”. O Senado frustrou o governo e não decidiu na quarta. Culpa — ou mérito — do senador Ruy Barbosa, que fustigava: “Para que essa urgência na votação de medida absolutamente dispensável neste momento?”.

A polícia não esperou o estado de sítio para agir. Antes do amanhecer, os jornais já circulavam informando a prisão do militante anarquista Pedro Matera, encrencado por difundir “panfletos insultuosos”. Noutras palavras, a favor da paz. Matera, como os bolcheviques, opunha-se ao que denunciava como “guerra imperialista”. Os censores haviam proibido a veiculação de certos artigos, ao menos nos diários Correio da Manhã, Jornal do Commercio e A Noite — mas este apoiava o “funcionamento patriótico” da censura.

O diplomata brasileiro José do Patrocínio Filho amargava a suspeita de que privara da intimidade de Mata Hari, fuzilada na França como espiã alemã

Jornais estimulavam a paranoia antigermânica e patrocinavam um esporte novo, a caça ao espião alemão. O inimigo ardiloso espreitaria onde menos se imaginasse. No dia 7, foi a vez do cáften Max Filho ir em cana — por alegada espionagem, não pelo crime de lenocínio. O boêmio apelidado Barão, um tipo careca, bigodudo e galhofeiro, penou na cadeia como “súdito alemão”.

A espionagem além-mar era o talk of the town, das tertúlias na Biblioteca Nacional, onde na véspera Afrânio Peixoto conferenciara sobre “Paixão e glória de Castro Alves”, às rodas nos cafés de arquitetura art déco e art nouveau. O diplomata brasileiro José do Patrocínio Filho, ex-adido do consulado em Amsterdam, amargava a prisão londrina de Brixton. Os ingleses desconfiavam que o rebento do ilustre abolicionista operasse em segredo para a inteligência alemã.

Mais do que saber se o brasileiro encarcerado se convertera em araponga, os curiosos se coçavam com um potin: procederia o rumor de que Patrocínio Filho privara da intimidade da dançarina holandesa celebrizada sob o nome Mata Hari? Três semanas antes, ela fora fuzilada na França, condenada como espiã a serviço da Alemanha. O diplomata, tido como fanfarrão, estaria mais enrascado se tivesse de fato compartilhado fronhas e lençóis com a sedutora senhora.

Os franceses, que nada tinham a ver com a controversa execução de Mata Hari, inspiravam a Belle Époque carioca. Para comprar chapéus, o bom gosto recomendava as lojas Magasin des Modes e Au Petit Paquin. Para vestidos e blusas, Maison Rouge. Tecidos? Au Louvre. Au Confortable e Le Mobilier eram casas de móveis. Nos mesmos periódicos em que as costureiras Madame Durand e Madame Nadine publicavam em francês os seus reclames, liam-se classificados com vagas para “menina, de nove a dez anos” trabalhar como “ama-seca” (babá); para “empregada branca” ou “criada de preferência de cor branca”; para moça “de cor”, em serviço doméstico.

No 7 de novembro de um século atrás no Rio, o matadouro Santa Cruz abateu 433 reses, 93 porcos e sete carneiros. O Restaurante Campestre, na rua dos Ourives, preparou seu prestigiado peru à brasileira. Os operários das fábricas de calçados retomaram o trabalho depois de uma greve. Deu coelho, carneiro, elefante e gato no jogo do bicho. O cemitério São Francisco Xavier contabilizou 22 enterros.

O Batalhão Patriótico Ruy Barbosa, formado por trabalhadores voluntários, exercitou-se das 19h às 22h na praça Mauá. Naquela noite, um despacho da agência noticiosa Havas chegou às redações com o alerta “agravou-se ainda mais a situação na Rússia”. Estava desatualizado, sem a novidade bombástica: àquela hora, a revolução já triunfara.

Quem escreveu esse texto

Mário Magalhães

Jornalista, escreveu Marighella, o guerrilheiro que incendiou o mundo (Companhia das Letras).

Matéria publicada na edição impressa #7 nov.2017 em junho de 2018.