Desigualdades,

O que significa ser pobre?

O Brasil gasta muito pouco com os programas de redução da pobreza, que funcionam bem e precisam de expansão

01abr2022 | Edição #56

Em 1640 o Theatrum Botanicum apresentou uma lista ampla do herbário medicinal conhecido no norte da Europa, separou as ervas medicinais em tribos e incluiu nelas alguns fungos que eram usados como antibiótico. Novidade? Não. Trabalho impressionante, mas foi uma compilação de conhecimentos estabelecidos muito antes, que por sinal já circulavam na Europa. Quando Granada, atualmente parte da Espanha, caiu em 1492, herbários inteiros escritos em árabe foram queimados. Parte deles era dedicada a medicamentos e, ao que parece, continham informações sobre antibióticos, pois esse era um conhecimento razoavelmente bem difundido no Magreb. Cavaleiros sarracenos, por exemplo, usavam um fungo que nascia no couro das selas de seus cavalos para tratar seus ferimentos. O fungo era Penicillium notatum, membro de um gênero de fungos que hoje tem nome familiar. Núbios do Sudão usaram tetraciclina, uma substância antibiótica, no ano 350 da era moderna. Está preservada em seus ossos, dizem arqueólogos. A origem dessa tetraciclina é um mistério. Talvez tenha sido deliberadamente produzida em cervejas medicinais.

Novidade? Também não. Em 1991 um homem foi encontrado congelado em uma montanha do Tirol italiano. Quando morreu, 5.300 anos antes, tinha roupas de frio e carregava uma bolsa com comida, uma faca, um machado, um arco, flechas bem elaboradas, além de algo que parecia ser um pequeno amuleto mal trabalhado que ninguém sabia dizer exatamente o que era. Descobriu-se depois que não era um amuleto, mas a bétula de um fungo da madeira, com propriedades antibióticas. Tudo indica que ele levava na bolsa um medicamento.

Imagine viver com 14,50 reais por dia. Comprar uma moto usada? Trinta anos de poupança. Geladeira? Seis anos de poupança

As escolas ensinam que em 1928 Alexander Fleming foi o “pai da penicilina”. Seja lá o que significa ser “pai da penicilina”, em geral se insinua que de algum modo Fleming foi seu descobridor. Porém seu mérito verdadeiro não foi a descoberta, mas o esforço para produzi-la de forma pura. Um esforço que tinha paralelos com outros pesquisadores tentando — e conseguindo — purificar outros antibióticos.

O que essa história toda tem a ver com pobreza? Muito. O desenvolvimento de antibióticos teve resultados impressionantes nos padrões de morbidade e mortalidade humanos. Infecções que com frequência eram uma sentença de morte passaram a ser doenças de menor importância. O impacto foi tão grande que se sentiu até na demografia, com a população aumentando depois que a morte diminuiu os tributos que cobrava sobre as crianças. Antibióticos baratos são hoje uma forma importante de evitar a mortalidade infantil.

Remédios baratos para quem?

Na discussão sobre a viabilidade orçamentária e política do combate à pobreza ajuda muito compreender antes o que significa uma pessoa ser pobre. Ajuda também saber a importância imensa que os serviços públicos têm para as pessoas pobres, embora isso geralmente não seja computado nas linhas de pobreza. Tema que é particularmente importante em um país com muita gente de renda baixa.

Faça as contas. A linha utilizada pelo Banco Mundial para monitorar a extrema pobreza global é de 1,90 dólar por dia por pessoa em dólares internacionais com Paridade de Poder de Compra (PPC$), o que equivale, em valores de 2020, a cerca de 5 reais por dia por pessoa. Uma dose de um antibiótico barato, como a penicilina, custa 14 reais. Um tratamento típico para uma infecção branda envolve duas doses, 28 reais. Isso significa que uma mãe pobre que tenha que comprar o medicamento para cuidar de sua filha doente terá que passar cinco ou mais dias sem comer. Essa é a linha que balizou e seguiu como referência para a entrada no Bolsa Família até seu término, em 2021.

A linha de pobreza internacional considerada típica de países de renda média-alta como o Brasil é de ppc$ 5,50, isto é, 14,50 reais por dia por pessoa. Nesse caso, seriam “só” dois dias sem comer. O que torna isso mais dramático é que esses dois dias são o mundo real de quase um em cada cinco brasileiros. Mundo real, mesmo com a máquina de assistência em funcionamento. Quem acha que essa máquina já é suficiente ou mesmo que é grande demais vai entender melhor o que isso significa na prática se pular apenas o almoço e o jantar de amanhã e reler este texto mais tarde.

Viver na pobreza é viver sob uma pressão imensa. É uma população que depende muito de políticas públicas

Todo mundo quer mandar seus filhos à escola. Mesmo as pessoas que vivem na pobreza de ppc$ 5,50 ou 14,50 reais por dia. Um caderno, um lápis e uma caneta custam um dia sem comer. Um livro didático de matemática, barato, dois dias sem comer. O mesmo para português, ciências, história e geografia. É uma semana sem comer se esse material tiver que ser comprado. Aliás, é bem pior do que isso. A linha de pobreza assume que o valor é suficiente para todas as despesas de uma pessoa, não só as com alimentação. Isso inclui energia elétrica, gás, transporte para o trabalho e escola, saúde, educação, comunicações, higiene, lazer, habitação e o que mais for preciso para viver.

Com serviços públicos gratuitos a vida de qualquer família pobre já é dura. Sem esses serviços, é inviável. E não está errado dizer o mesmo de famílias que não são pobres, mas vivem perto da linha de pobreza. É preciso um nível de renda muito alto para que uma família possa prescindir de serviços públicos gratuitos ou subsidiados e não enfrentar insuficiência em outras dimensões da vida. Índices de pobreza multidimensional apontam insuficiência mesmo entre os 40% mais ricos, algo que dificilmente seria classificado como pobreza de renda.

Cada dia na vida de uma família no 1% mais rico compra pelo menos um mês da vida de uma família pobre. A mensalidade de uma escola privada barata em uma metrópole, 1.000 reais, compra quase dois meses e meio de todo o consumo de uma pessoa pobre — e isso para a linha mais alta, de 14,50 reais. Cinco meses para a mensalidade de uma escola mais cara, um ano para a de uma escola de elite.

Viver com 14,50 reais por dia

Outra forma de ver isso é pensar no que os pobres não conseguem comprar. Imagine o que é viver com 14,50 reais por dia. O local onde dá para morar, a comida que dá para comer, o lazer possível. Sob essa pressão é difícil não gastar tudo imediatamente. Porém, imagine ainda poupar 5% disso todos os dias. Dá 264 reais por ano. Comprar motocicleta com dez anos de uso para trabalhar como motoboy? Impossível: trinta anos de poupança. Uma geladeira nova, para uma alimentação saudável da família? Seis anos de toda a poupança. Uma máquina lavadora de roupas, que combina higiene à maior possibilidade de emprego regular? Mais seis anos de toda a poupança. Um tablet básico para o filho acompanhar escola à distância em um mundo digital? Um ano e meio da poupança.

Viver na pobreza é viver sob uma pressão imensa. É viver em uma situação sobre a qual as pessoas pobres têm pouco controle e capacidade de reversão. Um quinto do país ainda vive dessa forma. É uma população que depende da assistência e dos serviços públicos. Toda discussão sobre limitar a expansão ou mesmo reduzir essas políticas é uma disputa por autorizar a permanência desse estado das coisas ou, pior, agravá-lo. É preciso uma boa dose de insensibilidade para achar esse nível de pobreza algo moralmente tolerável.

Quem acha a pobreza inaceitável tem que entender que o combate à pobreza precisa melhorar. O Brasil gasta muito pouco com isso. Nossos programas de redução da pobreza funcionam muito bem e ainda precisam de expansão. Mesmo quando erram, eles geralmente erram pouco. Metade da população brasileira vive com menos de 30 reais por dia e em algum momento pode oscilar para dentro e para fora da pobreza. Um erro de focalização que não ultrapasse essa metade mais pobre não é grave. No entanto, um erro de focalização que deixe de fora pessoas muito pobres é importante. Por isso é melhor errar para mais que para menos.

Quem escreveu esse texto

Marcelo Medeiros

Escreveu O que faz os ricos ricos: O outro lado da desigualdade brasileira (Hucitec).

Matéria publicada na edição impressa #56 em fevereiro de 2022.