Desigualdades,

Quantos pobres?

A dificuldade de alcançar uma definição consensual de pobreza não é justificativa para o imobilismo político

01fev2023 | Edição #66

No ano de 1946, cerca de metade da população do Brasil entre vinte e trinta anos era analfabeta. Dois terços dos homens nessa faixa etária trabalhavam na agricultura e na pecuária. Uma em cada dez crianças morria antes dos cinco anos na cidade do Recife, um resultado da combinação — que a palavra miséria sintetiza bem — de desnutrição e doenças. Nas zonas rurais, a situação era muito pior.

Nesse mesmo ano nasceu em Caetés, cidade pobre do agreste de Pernambuco, Luiz Inácio da Silva, o Lula. Entrou no movimento sindical cedo, foi preso, processado pela Lei de Segurança Nacional, fundou um partido político, elegeu-se deputado federal, participou do movimento para a redemocratização do país e tornou-se seu presidente. Foi extremamente popular. Preso novamente por motivos políticos, cumpriu exemplarmente as regras do jogo e voltou como favorito para ser presidente mais uma vez. Seus aliados e opositores concordam em um ponto: é uma história de vida impressionante.

O problema da fome

A fome era uma importante preocupação no primeiro mandato do presidente Lula, de tal maneira que, em seu discurso de posse em 2003, disse: “Num país que conta com tantas terras férteis e com tanta gente que quer trabalhar, não deveria haver razão alguma para se falar em fome. No entanto, milhões de brasileiros, no campo e na cidade, nas zonas rurais mais desamparadas e nas periferias urbanas, estão, neste momento, sem ter o que comer. Sobrevivem milagrosamente abaixo da linha da pobreza, quando não morrem de miséria, mendigando um pedaço de pão”. Mas esses milhões que sobrevivem abaixo da linha de pobreza são exatamente quantos? Quantas pessoas eram e são pobres no Brasil?

A resposta depende de uma série de fatores. Se a pobreza for multidimensional, a resposta é uma; se for apenas insuficiência de renda, pode ser outra. Também muda os resultados considerar as diferenças regionais de preços ou a maneira como o consumo das crianças deve ser tratado. E, claro, tudo depende do nível da linha de pobreza.

Não existe uma linha de pobreza consensual. A razão para isso é muito simples: não existe consenso sobre o que significa pobreza. Tampouco existe qualquer concordância generalizada de que a mesma linha de pobreza utilizada para a pesquisa deva ser utilizada para a orientação de políticas. O que existe são linhas usadas com maior frequência que outras, a depender dos objetivos.

O que as políticas de proteção social querem fazer é proteger uma pobreza que não necessariamente é a mesma usada nas definições de linhas de pobreza para pesquisa e monitoramento. Que linha utilizar e para que utilizar essa linha é uma decisão política. Não é uma decisão qualquer: o perfil dos pobres, a identificação das causas da pobreza e até os programas de combate à pobreza podem ser afetados pelas linhas.

As dimensões fazem diferença. Por exemplo, a quantidade de pessoas pobres medida por linhas multidimensionais é menor do que a medida por uma linha de renda de ppp$ 5,5 familiar per capita por dia. As ppp$ são unidades de Paridade de Poder de Compra, uma taxa de câmbio usada para comparações internacionais de capacidade de consumo. Além disso, os perfis de pobreza nessas linhas são bem diferentes: metade das pessoas pobres identificadas por um método multidimensional não seria classificada como pobre por insuficiência de renda.

As linhas de pobreza devem ser constantes ou elas devem mudar à medida que o país fica mais rico?

A regionalização das linhas também altera muita coisa: nos anos 90, havia mais pobres por uma linha nacional do que por uma regionalizada; nos anos 2010, mais pobres pela regionalizada do que pela nacional. O nível das linhas também muda a cena. Às portas de 2020, um quinto da população seria pobre a ppp$ 5,5 familiar per capita, mas menos de um décimo seria pobre por uma linha de ppp$ 1,9. Ou seja, uma diferença absoluta pequena em termos de renda entre duas linhas é suficiente para dobrar a proporção de pobres no país.

As linhas de pobreza devem ser constantes ou elas devem mudar à medida que o país vai se tornando mais rico? Não temos uma ideia clara de quantas pessoas eram pobres quando Lula nasceu, mas provavelmente era muita gente, pois sabemos que, no início da década de 80, dois terços da população brasileira era pobre considerando-se uma linha de ppp$ 5,5 familiar per capita ao dia. Usar uma linha ppp$ 1,9 fazia a proporção cair para um quarto da população. Em 2021, o Bolsa Família ainda usava a linha de ppp$ 1,9, mas o Banco Mundial recomendava uma linha de ppp$ 5,5 para o monitoramento da pobreza no Brasil, dada a sua renda média.

Não há um único método

Faz sentido dizer que a pobreza no agreste de Pernambuco era menor em 1946 do que é hoje simplesmente porque a renda média do Brasil nessa época também era menor e isso exige linhas de pobreza mais baixas? Qual é a linha certa para medir pobreza: a ppp$ 5,5, que seria usada no Brasil da década de 2020, ou a ppp$ 1,9, que tenderia a ser a usada nos anos 80? Crianças devem ser tratadas como pesando menos que adultos? Preços regionais importam? Renda é a única dimensão relevante? Para todas essas perguntas há respostas bem fundamentadas, mas que levam a diferentes direções. Não há metodologia certa, no sentido de única possível. Portanto, não existe uma resposta única para a pergunta “Quantas pessoas são pobres no Brasil?”.

Todavia, entre a impossibilidade de resposta única e o imobilismo político há uma distância muito grande. O que as políticas sociais geralmente buscam é proteger as pessoas mais pobres, em um sentido mais amplo e vago. Para esse propósito, a definição de uma linha única não é uma prioridade e pode até mesmo desviar os programas de seus objetivos iniciais. Afinal, as questões distributivas fundamentais que o Brasil enfrenta não estão assentadas nas diferenças entre pobres e extremamente pobres, e o uso irrefletido de linhas de pobreza pode desviar as políticas de seus verdadeiros objetivos.

Quem escreveu esse texto

Marcelo Medeiros

Escreveu O que faz os ricos ricos: O outro lado da desigualdade brasileira (Hucitec).

Matéria publicada na edição impressa #66 em dezembro de 2022.