Cinema,
O grande artista do nosso tempo
O cineasta que não sorria marcou toda uma geração com imagens que não saem mais da nossa memória
13set2022 | Edição #61Godard se foi aos 91 anos e isso é mais ou menos como o curso natural da velhice, em que você vai perdendo coisas pelo caminho. Pessoas, bichos e coisas, assim como a memória. Minha geração (aquela nascida no final dos anos 1950) viveu os filmes de Godard de forma intensa. Ele foi o grande artista do nosso tempo, na companhia de outros grandes do cinema e da literatura que nós tivemos a felicidade de ver ainda vivos — e pulando. Godard era um artista do barulho, um iconoclasta, tão selvagem e paradoxal que servia de modelo para aquilo que nós queríamos ser, uma espécie de molde para uma individualidade sempre desafiadora.
Godard era um artista do barulho, um iconoclasta, tão selvagem e paradoxal que servia de modelo para aquilo que nós queríamos ser
Eu e meus amigos queríamos ser artistas, e nossa baliza era muito elevada. Godard ficava lá no alto, porque uma parte dos meus companheiros de geração na Escola de Comunicações e Artes da USP estudava cinema.
Outra parte podia não estudar cinema, mas era louca por filmes mesmo assim. E, como éramos chegados numa imagem, as diatribes que Godard aprontava nos seus filmes eram sempre motivos de inspiração. Era isso que a gente queria em matéria de imagem e som: um desafio, uma revolução permanente.
Vivíamos nos cineclubes, quando eles ainda existiam. E lá, nessas salas de cinema em geral precárias, com cara de lona de circo, Godard era um rei. Quando vimos Acossado pela primeira vez, saímos pela rua imitando o famoso gesto de Jean-Paul Belmondo, aquele de roçar o lábio inferior com a unha do polegar, uma paródia de Humphrey Bogart nos filmes noir. Bogart, aliás, estava no pôster que servia como único enfeite no apartamento de Godard nos tempos em que ele se mudou para Paris, depois de ter passado a infância e a juventude na Suíça. Ele que nascera em Paris, de pai médico, mãe bem-nascida e avô banqueiro.
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O Godard dos anos 1960 é o que ficaria para a (nossa) História. Da espuma do café que gira e toma a tela como se fosse uma galáxia em movimento no filme Duas ou três coisas que eu sei dela até a encenação maoísta com cara estudantil de A chinesa, o cineasta era capaz de se eternizar pelas imagens usando um palavrório sem fim, uma filosofia meio hipnotizante, às vezes sem pé nem cabeça, mas ainda assim aliciadora. E o conjunto não saía mais da nossa memória.
Rompimento com Truffaut
Godard nunca foi um artista do grande público, como por exemplo François Truffaut, o amigo com quem acabou brigando por carta ainda nos 1970, e com o qual nunca mais conversou. Eram dois bicudos. Quando Truffaut rodou A noite americana e comparou o cinema a um trem em movimento, Godard enviou-lhe algumas linhas malcriadas: “Você diz que filmes são como trens no meio da noite, mas quem pega esse trem, de que classe social, quem o conduz?”. Esse jeito inquisidor de tratar as questões artísticas e do espírito tinha muito a ver com seu temperamento.
Godard, tudo indica, sofreu o diabo por amor
Não me lembro de ter visto nenhum sorriso no rosto de Godard, mas agora que estamos pensando nele por conta da morte, me veio a lembrança um curta engraçado rodado por Agnés Varda para o filme Cleo das 5 às 7. Nele, o cineasta com cara de intelectual franco-suíço aparece ao lado da sua primeira mulher, Anna Karina, numa historinha de amor pelas ruas de Paris, à maneira dos anos loucos.
Godard, tudo indica, sofreu o diabo por amor. Anna Karina foi sua musa em muitos filmes — ela aparece, por exemplo, no incrível Pierrot le Fou, uma história movida por um certo anarquismo em estado bruto, e que deixou para a posteridade uma imagem maluca: a de um Belmondo terrorista, um marxista da linha Groucho com a cara pintada de azul.
A segunda mulher, Anne Wiazemsky, também foi uma lenda do cinema — ela que começou trabalhando com Robert Bresson, passou por Godard e ainda fez alguns trabalhos com Pasolini, isso tudo antes de virar uma escritora de talento, expresso principalmente na pequena memória que escreveu sobre seu tempo com Godard, Um ano depois.
Neste livrinho Godard aparece como um sujeito ciumento, paranóico e ranzinza, mas sem dúvida alguma apaixonado pela sua mulher e pelo seu tempo. Em maio de 1968, os dois saíram juntos pelas passeatas estudantis, nas quais o famoso Godard era cobrado por suas confusas posições políticas (se é que se pode cobrar alguma coisa de alguém que tenha vivido uma época tão confusa, na qual se queria tudo e nada).
A obra de Godard era uma afirmação da inquietude que deveria ser a divisa de qualquer artista
Um dos famosos slogans dos estudantes, por sinal, dizia respeito a ele: “A arte está morta, nem Godard poderá impedir”. Qualquer um que tenha visto um de seus filmes sabe que, apesar da forma avançada, incompreensível para as massas, a obra de Godard era uma afirmação da inquietude que deveria ser a divisa de qualquer artista.
A terceira mulher, Anne-Marie Miéville, Godard conheceu ainda em sua fase militante, quando queria fazer cinema coletivo nos moldes soviéticos de cineastas como Dziga Vertov, de O homem da câmera. Dziga Vertov era o nome desse grupo, que refletia um combate de Godard por um pensamento político mais sólido, de cara maoísta. Não deu muito certo, os trabalhos dessa época são bem chatos, mas a produtora formada pelo casal a partir dessa experiência deu origem a pelo menos um filme de primeira, todo ele conduzido como se fosse uma peça musical: Salve-se quem puder, de 1980.
Algumas cenas e sons desse filme ficariam na memória daquela minha geração, mais ou menos como o último suspiro de um ídolo. São passagens triviais: uma mulher pedalando por uma estrada, uma felação cômica (de tão mecânica), diálogos cruéis e tristonhos. Já Je vous salue, Marie, dirigido cinco anos depois, teve a audácia de recontar a história da Virgem de um ponto de vista pedestre. Igreja e Estados ficaram de cabelos em pé. Isso também era Godard.
Um happening na USP
De nossa parte, eu e meus companheiros de geração aprontamos um happening em modelo godardiano. Foi em 1981, na FAU (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP). Godard apareceu para falar no auditório e vestia o impermeável, o chapéu Fedora e os óculos escuros que a gente considerava naturais na sua figura. O Estadão anunciou sua presença, uma futura cineasta preparou um jantar para ele e, no final das contas, o artista acabou falando em português mesmo para uma plateia lotada, enquanto era traduzido simultaneamente em diversas outras línguas.
Eu fui esse Godard, e penso até que ele não teria achado ruim a intervenção que nós, surrealistas da USP, bolamos para aquele dia inesquecível. Só não tenho certeza de que ele teria achado graça da coisa toda, pois nunca o vimos sorrir nas imagens que ficaram gravadas em nossa memória.
Matéria publicada na edição impressa #61 em julho de 2022.