Arte,

O sequestrador de almas

As obras de Dalton Paula restituem a dignidade e a subjetividade de figuras silenciadas pela arte e pela história

27nov2020 | Edição #40 dez.2020

Dalton Paula é um poeta da visualidade. Nascido em Brasília, ele hoje vive em Goiânia. Em Goiás, assim como no resto do Brasil, durante longo tempo, manifestações da cultura afro-brasileira não faziam parte das imagens oficiais. Por isso tenderam a permanecer invisíveis em suas histórias, tecnologias e personagens. A representação dominante foi sempre a de um país branco, em geral europeu, masculino e exoticamente negro ou mestiço. Por isso, para Dalton, fazer arte é, a um só tempo, ato político e poético. Na sua obra explode um Brasil pretensamente invisível, apagado nas suas narrativas e culturas que, na longa duração, ressoam matrizes africanas.

Em entrevista para o Contemporary Art, o artista explicou: “Minha história pessoal e experiência como um homem negro invade meu trabalho, de maneira direta e indireta”. Com efeito, em sua obra, o universo das religiões e práticas afro-brasileiras ganha imenso impacto e densidade. Dalton transita com desembaraço por pintura, instalação, performance, objetos votivos e utilitário, fotografia, vídeo, sempre sem perder seu potencial expressivo. Por isso cada obra restitui uma nova experiência, ao mesmo tempo poética e pessoal. A maior parte de seu trabalho é marcada por sua interpretação crítica e humana da história e dos eventos cotidianos. Traz elementos religiosos que vêm dos cultos afro-brasileiros e da religião dos orixás e faz uso de seu próprio corpo e da imagem de outros corpos, insinuando a violência mas sobretudo a enraizada cultura negra, que aparecem de forma lírica em objetos de uso cotidiano e espiritual e em retratos que trazem pessoas negras sempre orgulhosas e com suas almas finalmente restituídas.

Arte, para Dalton Paula, é um processo de silenciamento e de cura, de descoberta de sujeitos até então (supostamente) anônimos e que ganham com a tinta e a tela novas identidades. Sua primeira série artística levou o nome de “Retrato silenciado” e trazia várias figuras sempre negras. Nela, o artista dialogava com a voga das antigas fotografias populares e colorizadas, para produzir obras tocantes, com uma ampla gama de personagens e relações: fotos de matrimônios, de casais — homens e mulheres,

A descoberta de novos textos de Machado de Assis

Para Dalton, arte é um processo de silenciamento e de cura, de descoberta de sujeitos até então anônimos mulheres com mulheres e homens com homens — famílias e membros da igreja. Tais retratos eram, por sua vez, aplicados por sobre suportes pouco usuais, como as enciclopédias. É como se o vasto saber contido nessas obras — que pretendem armazenar todo o conhecimento humano — não desse conta desses protagonistas, por elas abandonados.

Para Dalton, arte é um processo de silenciamento e de cura, de descoberta de sujeitos até então anônimos

Esse seria apenas o começo. Em 2017, Dalton teve seu trabalho comissionado para a exposição Histórias afro-atlânticas (Masp, 2018). O artista realizou então dois retratos de personagens que (quase) desapareceram da história nacional e, consequentemente, da imaginação dos brasileiros: Zeferina e João de Deus. Dois líderes baianos rebeldes: uma quilombola e um líder de insurreição. O certo é que Dalton simplesmente “sequestrou suas almas e corpos”! As imagens eram tão belas e fortes que foram logo transformadas, pelo público e pela crítica, numa espécie de cartão-postal da exposição. Os dois aparecem com uma expressão digna, alinhados e elegantes, com seus narizes proeminentes, numa clara inversão dos estereótipos raciais a partir do escancaramento dos mesmos.

Para a galeria nova-iorquina Alexander and Bonin o artista apresentou 24 retratos, baseados em personagens reais, mas jamais apresentados visualmente. Cada um dos protagonistas de Dalton conta uma história diferente, tão particular quanto universal. Mais do que isso, cada retrato carrega sua dignidade: roupas caprichadas, cabelos cor de ouro, olhares expressivos, narizes protuberantes, cicatrizes e marcas do tempo, bocas fortes, cores de pele cuidadosamente detalhadas. O objetivo de Dalton nunca foi chegar a um retrato realista, mas dar lugar ao desejo e ao espaço da subjetividade, muitas vezes negados a esses vários personagens invisibilizados.

Nos retratos de Dalton, várias camadas se acumulam como se a tinta trouxesse consigo a própria pátina do tempo. Os retratos evocam imaginários coletivos; tópicas daquelas fotos colorizadas, que costumavam restituir o desejo das pessoas que queriam se ver imortalizadas por esses “retratos troféus”, feitos para figurarem nas salas de estar. Em plena Manhattan, organizou-se uma verdadeira procissão de plantadores agrícolas e trabalhadores das cidades; pessoas escravizadas e livres; quilombolas e comerciantes; líderes religiosos e marinheiros. A base comum era a narrativa histórica, mas a realidade era feita de imaginação. Como um arqueólogo, Dalton procurou por traços, pistas e detalhes dessas que são histórias interrompidas. O resultado é uma pinacoteca de fantasmas que jamais estiveram tão vivos. Um mergulho no tempo dos antepassados.

Machado de Assis

Para tanto, o artista teve que viver junto da alma de seus protagonistas, morar com eles e criar intimidade para depois sequestrá-los. E foi exatamente isso que fez com o mago Machado de Assis, que não tem nada de desconhecido e que foi capa da edição de novembro da Quatro Cinco Um. Ao contrário, ele faz parte do cânone literário brasileiro, é um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras e foi, até por isso, branqueado por esse perverso processo nacional em que a fama torna mais clara a cor da pele. Isso a despeito de, como funcionário público, ter sistematicamente defendido casos envolvendo negros e africanos, e de ter escrito o conto “Pai contra mãe”, um dos retratos mais severos do sistema escravocrata.

Já Dalton “roubou” a alma de Machado. Muito negro, mas com as rugas destacadas em branco, olhar desafiante por entre um pincez-nez elegante, roupa alinhada, ele encara firme o seu observador. Com seu rosto altivo e inquisidor, esse novo Machado ostenta seu nariz proeminente, quase laranja, marca registrada do artista. O que mais se destaca, porém, é o cabelo cor de ouro do protagonista, o qual, revolto, rouba a cena. Tudo por sob um fundo azul-claro, que evoca afetivamente as fotos colorizadas que, muitas vezes, servem para que famílias negras comprovem seu direito à memória. Machado definitivamente entrou para a galeria de Dalton Paula, um intérprete do Brasil que se comporta como um sequestrador de fantasmas e almas.

Quem escreveu esse texto

Lilia Moritz Schwarcz

É professora titular da USP e autora de O espetáculo das raças (Companhia das Letras).

Matéria publicada na edição impressa #40 dez.2020 em novembro de 2020.