A cobertura especial d’A Feira do Livro, que acontece de 14 a 22 de junho, é apresentada pelo Ministério da Cultura e pela Petrobras
MINISTÉRIO DA CULTURA E PETROBRAS APRESENTAM

A FEIRA DO LIVRO 2025,
Quarta edição d’A Feira do Livro celebra, ao longo de nove dias, a literatura e a liberdade
Reunindo milhares de leitores no espaço público, festival literário paulistano entrou para o calendário oficial da cidade e celebrou 40 anos de democracia com mais de 250 atividades gratuitas
22jun2025Debates importantes, encontros com grandes autores e novos palcos marcaram a quarta edição d’A Feira do Livro, que se firmou no calendário da cidade. O festival literário paulistano, gratuito e a céu aberto, aconteceu em clima de festa entre os dias 14 e 22 de junho, na praça Charles Miller, em São Paulo.
Com mais de 175 debates, 43 oficinas, além de lançamentos, sessões de autógrafos, clubes de leitura, atividades de formação de professores, apresentações musicais e até jogo de futebol entre escritores — todos gratuitos e abertos ao público, com direito a tradução em libras e simultânea, no caso de mesas com autores internacionais —‚ o evento se consolidou na vida literária da cidade, com leitores lotando a praça todos os dias para conhecer e comprar livros dos 151 expositores que levaram suas produções editoriais à praça.

Além dos dois palcos da programação oficial — Palco Petrobras e Auditório Armando Nogueira —, a quarta edição d’A Feira do Livro teve sua estrutura reforçada com o novo Espaço Rebentos, com curadoria voltada especialmente para crianças e jovens. A área dedicada aos pequenos leitores recebeu grandes autores, ilustradores e músicos, em conversas sobre literatura, ecologia, diversidade e muito mais, em uma programação tão variada quanto a dedicada aos adultos.
A programação foi complementada com conversas literárias, lançamentos e oficinas nos Tablados Literários — três palcos menores, com programação organizada pelos expositores e parceiros do festival: Espaço Motiva Tablado Literário, Tablado Literário Mário de Andrade e Tablado Literário das Bancadas. Já a Tenda das Oficinas recebeu oficinas e outras atividades manuais para o público geral durante os nove dias.
Calendário oficial
Mais Lidas
Durante os nove dias de evento, A Feira do Livro celebrou sua entrada no calendário oficial da cidade de São Paulo. A Lei 18.274/2025 foi sancionada na terça-feira (17) pelo prefeito Ricardo Nunes (MDB) e determina que o festival literário será sempre realizado no feriado de Corpus Christi e dias próximos. O projeto de lei, de autoria das vereadoras Renata Falzoni (PSB), Marina Bragante (Rede) e Keit Lima (PSOL), já tinha sido aprovado na Câmara Municipal em 28 de maio e dependia da medida do prefeito para entrar em vigor.

Segundo a nova lei municipal, o festival literário paulistano passa a fazer parte da agenda de eventos da cidade “com o objetivo de promover evento cultural composto por feira de livros com bibliodiversidade de expositores, debates e mesas literárias com nomes consagrados e expoentes da literatura, oficinas educativas e lúdicas sobre a cultura do livro e a leitura, promovendo o desenvolvimento econômico e social do mercado editorial, em cooperação com os órgãos competentes”.
Para selar esse compromisso da cidade com A Feira, as vereadoras Falzoni e Bragante fizeram uma visita ao festival literário na quinta (19). “Quando a cidade abraça um evento desses que é gratuito, que ocupa um espaço público descoberto e de fácil acesso, ela estimula as pessoas a caminhar, a pedalar, a trazer as crianças”, disse Falzoni à Quatro Cinco Um. “É inacreditável o quanto A Feira está consolidada em quatro anos.”
Defesa da democracia
Neste ano, um tema predominante n’A Feira foi o aniversário de quarenta anos da redemocratização do Brasil – em 1985, o Congresso elegeu de forma indireta Tancredo Neves presidente da República. No entanto, o político não chegou a tomar posse, e José Sarney foi o primeiro presidente civil do país após 21 anos de ditadura civil-militar. O evento organizou mesas que procuraram contextualizar esse momento político com discussões que partiram dos livros para discutir meio ambiente, história, divulgação científica, cultura afro-brasileira, cultura indígena, alimentação, cultura do livro, teologia, jornalismo, educação, luta antirracista, relações afetivas, empreendedorismo social, entre outros assuntos.
No primeiro dia, sábado (14), o jornalista Eugênio Bucci e o historiador Carlos Fico lançaram um alerta na mesa 40 anos de democracia, que relembrou as quatro décadas do fim da ditadura militar no Brasil: em um momento em que alguns dos acusados pela mais recente tentativa de golpe no país são confrontados em rede nacional, não estamos livres da ameaça de novas rupturas democráticas. “Por algum motivo, acabamos caindo num lugar que pensa a democracia como se ela tivesse caído do céu. Não, a democracia é um trabalho árduo. É difícil erguê-la e é difícil mantê-la. Ela precisa de dedicação e de muita gente na sua linha de frente”, alertou Bucci.
O historiador Fernando Rosas participou da mesa O fascismo que fala português. Ele e o jornalista carioca Pedro Doria traçaram paralelos entre os movimentos autoritários nos dois países, no presente e no passado, e apontaram que a crise da democracia atual só será respondida quando houver uma resposta ao ideário do “cada um por si” promovido pela extrema direita, e quando as instituições políticas forem refundadas conforme os desafios de hoje, não do século 20. A conversa apontou como o maior desafio atual a frustração com a falta de respostas a necessidades básicas, como saúde, educação e emprego, especialmente entre homens, o que os torna alvo fácil para um ideário voltado ao passado.

Ainda no primeiro dia, a mesa Encontro com Marilena Chaui reuniu a filósofa, uma das maiores atrações de público, em conversa com o jornalista Fernando de Barros e Silva, apresentador do podcast Foro de Teresina. Ela afirmou: “Considero que neoliberalismo é totalitário”. Falando sobre O que é ideologia, seu volume da clássica coleção Primeiros Passos relançado este ano com o título Ideologia: uma introdução pela Boitempo, a professora explicou que a marca do totalitarismo é tornar indiferenciadas todas as esferas da existência humana — a casa, a escola, a igreja, o Estado. “Tudo assume uma forma e uma organização idêntica, que é da empresa, e isso culmina na ideia do empresário de si mesmo”, explicou. “Por isso se fala em gestor, não em governante.”

A versão ao vivo do podcast Foro de Teresina foi um dos pontos altos do sábado (21) n’A Feira do Livro. O público disputou o espaço do Palco Petrobras e da praça Charles Miller para assistir aos jornalistas Fernando de Barros e Silva e Ana Clara Costa e ao cientista político Celso Rocha de Barros, na mesa mais cheia do festival literário até o momento. O Foro na Feira contou com dois blocos — o primeiro sobre as eleições de 2026 no Brasil e o segundo sobre o governo de Donald Trump nos Estados Unidos — e uma versão adaptada do quadro “Kinder Ovo”. O público e os convidados também cantaram parabéns para Ana Clara, aniversariante do dia.
Já a mesa Democracia em negociação, com mediação da jornalista Maria Cristina Fernandes, reuniu o jurista Rafael Mafei e o cientista político Leonardo Weller para falar sobre relações entre os poderes e situações de abalo das instituições, como os impeachments de Fernando Collor e Dilma Rousseff e a tentativa de golpe por Jair Bolsonaro e seus apoiadores. “Minha hipótese é que o golpe era um plano B. O plano A era a deterioração da democracia sem a ruptura”, afirmou Weller.
Uma conversa esclarecedora sobre a evolução do crime organizado no Brasil reuniu um público que extrapolou o espaço do Tablado Literário Mário de Andrade na tarde de sábado (21) na mesa Poder paralelo? O Brasil e o crime organizado n’A Feira do Livro. A jornalista Cecília Olliveira, uma das fundadoras do site The Intercept Brasil, e o jornalista e pesquisador Bruno Paes Manso falaram sobre as muitas teias que uniram crime, política e religião nas últimas décadas.
Questionada pela mediadora, a jornalista Thais Bilenky, Olliveira falou sobre o que faz alguns policiais se tornarem milicianos. “Ao contrário do que se pensa, não vale a pena em termos de dinheiro, mas [vale] em honra, respeito, distinção”, contou a autora do recém-lançado Como nasce um miliciano (Bazar do Tempo). Segundo ela, milicianos têm mais dinheiro, poder, conexões políticas e são mais poderosos do que quem comanda o tráfico. “O miliciano está no restaurante que você está, circulando nos mesmos lugares, e você só não sabe quem eles são.”
Autor de livros como A fé e o fuzil: crime e religião no Brasil do século 21 (Todavia, 2023), Paes Manso falou sobre como o crime organizado vem atuando em diferentes áreas. “Há vinte anos, a ideia de crime aqui no Brasil era um menino com um fuzil. Hoje o crime organizado se internacionalizou e o dinheiro que circula entre facções e milícias alimenta outras frentes, como o crime ambiental, a lavagem de dinheiro com carros de luxo, o setor imobiliário”, disse.
Na mesa O discreto charme da magistocracia, que lotou o Tablado Literário Mário de Andrade na tarde de domingo (22), o professor de direito constitucional Conrado Hübner Mendes criticou o que chamou de “narrativa heroica” que se criou de que o Supremo Tribunal Federal salvou a democracia brasileira depois dos anos Bolsonaro. “O STF é um jogador, como muitos outros. Claro que ele está num papel importante, mas ele também está se atrapalhando, está se tornando cada vez mais frágil. Ele, sozinho, não salva democracia nenhuma”, afirmou Hübner em conversa com o jornalista Eduardo Sombini.
As pesquisadoras do Laut (Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo) Mariana Celano de Souza Amaral, Luciana Silva Reis e Ana Silva Rosa discutiram na mesa A lei da bala, do boi e da Bíblia como três dos principais eixos representativos do novo conservadorismo brasileiro, os grupos “da bala, do boi e da Bíblia”, construíram nos últimos anos uma aliança que tem em sua base uma crescente homogeneidade no discurso.
Coautoras de A lei da bala, do boi e da Bíblia: cultura democrática em crise na disputa por direitos (Tinta-da-China Brasil, 2024), Amaral, Reis e Rosa apontaram que esse ativismo coordenado vem se sobrepondo a divergências internas no campo da direita extremista, que defende pautas restritivas de direitos.

Em uma conversa que girou em torno dos silêncios impostos pela violência da ditadura civil-militar no Brasil e como a literatura tenta dar conta desses temas espinhosos, a socióloga e escritora Ana Cristina Braga Martes trouxe o assunto para um contexto muito contemporâneo. “Uma coisa que fiquei pensando é como a gente pode deixar a bandeira da liberdade de expressão na mão de pessoas que não têm nenhum compromisso com ela. Essa bandeira é nossa. Como podemos deixar essa bandeira na mão de pessoas de direita?”, questionou a autora do romance Sobre o que não falamos (Editora 34, 2023), que deu nome à mesa compartilhada com Ana Kiffer e Cadão Volpato, mediada por Eugênio Bucci. Os três escritores publicaram recentemente livros que retratam a ditadura e debatem as representações literárias do autoritarismo e da resistência ao regime.
A advogada Mércia Albuquerque, que defendeu centenas de perseguidos durante a ditadura civil-militar brasileira, é uma figura pouco lembrada, mas central para a resistência democrática. Na mesa Lady Tempestade, a dramaturga Silvia Gomez, autora da peça Lady Tempestade, cujo texto dramatúrgico saiu pela editora Cobogó, e o jornalista Samarone Lima, autor de Zé (Mazza, 1998), biografia do militante mineiro José Carlos Novais da Mata Machado, conversaram sobre Mércia com mediação de Iara Biderman, editora da Quatro Cinco Um.
Loucos por livros
A Feira do Livro recebeu inúmeras conversas sobre várias das etapas do objeto livro, assim como mesas que giraram em torno de literatura. Ao contrário do que se poderia imaginar sobre apaixonados por livros, Jorge Carrión e Afonso Cruz, convidados da mesa O vício dos livros, mediada por Noemi Jaffe, contaram não ter muita reverência pelo objeto em si.
“O que me interessa dos livros são as ideias. Esse fetichismo, essa adoração ao livro como um objeto capitalista, não me interessa, me deixa nervoso. Me interessa poder manchar com o café que estou tomando, poder marcar e anotar com lápis”, disse Carrión, que contou que sempre prefere edições baratas de bolso e que não entende pessoas que compram edições de colecionador que não podem ser lidas, que não podem ser tiradas da embalagem para não perder seu valor. “Todos os livros da minha casa são baratos e estão muito usados. Eu amo os livros, o que não amo é a especulação a partir dos livros.”

Já a edição de livros foi um dos temas da mesa Para Gostar de Ler, que recebeu o criador das famosas séries Vaga-Lume e Para Gostar de Ler, Jiro Takahashi, e a coordenadora da Lote 42, Cecilia Arbolave. Eles discutiram como tornar o livro impresso um objeto de interesse em um mundo inundado por distrações. Na mesa, mediada pelo editor da Quatro Cinco Um Vitor Pamplona, os dois defenderam que a resposta a esse desafio passa pelo lúdico: seja na literatura infantil, fazendo eventualmente parcerias com games, seja na adulta, em que esse elemento ainda sofre muito preconceito.
Em seguida, Arbolave organizou uma visita guiada pelas tendas de expositores com os olhos voltados para aspectos gráficos criativos e inovadores nos livros. “A produção gráfica nada mais é do que a ciência de traduzir um arquivo digital e materializá-lo num livro impresso. Isso envolve escolhas de design, formatos, papéis”, disse, acrescentando que escolher bem significa fazer livros em que o conteúdo e a forma funcionem como um bom conjunto.

A mesa Entre nós reuniu duas jovens autoras nacionais: a paulistana Aline Bei, autora de O peso do pássaro morto, Coreografia do pequeno adeus e Uma delicada coleção de ausências, este último seu lançamento mais recente pela Companhia das Letras, e a escritora e tradutora potiguar Bruna Dantas Lobato, que falou sobre sua estreia como romancista com Horas azuis (Companhia das Letras, 2025). Em 2024, ela venceu o International Booker Prize pela tradução de A palavra que resta, de Stênio Gardel. Após a mesa mediada pela jornalista Paula Jacob, Bei ficou três horas e meia recebendo admiradores. “Foi uma das filas mais longas de autógrafos que eu já assinei na minha trajetória como escritora”, comentou.
Em uma conversa sobre a paixão que compartilham pela língua, pela literatura e pela cultura da Rússia, na mesa Alfabeto russo, a linguista argentina Marina Berri e o professor de literatura e cultura russa da USP Bruno Gomide defenderam no sábado (14) que o momento atual de guerra com a Ucrânia, em que a Rússia praticamente cortou suas trocas culturais com boa parte do Ocidente, deve ser encarado como uma oportunidade para uma “realfabetização” do mundo na cultura russa. O encontro foi mediado pela pesquisadora de língua e cultura russa Marina Darmaros.
O jornalista e escritor Carlos Marcelo, por sua vez, defendeu que todo livro é, em última instância, um jogo. Em O escutador (Impressões de Minas, 2025), que deu nome à mesa d’A Feira, ele leva essa metáfora ao extremo com um romance que simula ser dois — a capa traz o nome de um autor enquanto a sobrecapa exibe outro, e notas de rodapé assinadas pela “editora” interferem diretamente na narrativa principal, provocando desconfiança no leitor.
Já na mesa Infinita, que ganhou o mesmo nome do romance de Camila Maccari publicado em 2024 pela Autêntica Contemporânea, a autora trata da experiência de uma protagonista gorda. Em mãezinha (Dublinense, 2025), Izabella Cristo se volta a uma mulher que dá à luz a partir da sua própria vivência como mãe e médica em uma UTI neonatal. Nesse debate mediado por Silvana Tavano, as autoras discutiram como o olhar, seja o nosso ou o dos outros, forma e deforma o corpo, a ponto de provocar uma cisão entre nossa identidade e a forma orgânica que nos abriga.
Já o Encontro com Beatriz Bracher foi uma conversa sobre literatura e história. A escritora afirmou que não pretendia escrever a favor ou contra nada ao se lançar na empreitada de publicar uma trilogia de romances sobre a Guerra do Paraguai (1864-70). Mas espera que quem leia os livros “passe a ter horror à guerra, e passe a não ver só o grande, veja o pequeno. Irã, Israel, Gaza, Ucrânia, essas guerras todas, tem um monte de gente passando por isso duzentos anos depois [da Guerra do Paraguai]. Esquecemos que tem gente nas guerras”, disse em conversa com o escritor Joca Reiners Terron.
Uma conversa sobre a coragem, principalmente sobre a coragem de escrever, mas também sobre conviver com os momentos em que essa força falta, animou o público da mesa Mulheres ventania, que reuniu as escritoras Ryane Leão, autora de Ninguém pode parar uma mulher ventania (Planeta, 2025) e Daniela Arrais, autora de Para todas as mulheres que não têm coragem (BestSeller, 2024). “Nós glorificamos a coragem, mas não o processo que foi chegar a ela”, disse Leão. Arrais, que faz sua estreia na literatura, contou como escreve desde a infância e durante muito tempo disfarçou essa vontade atuando como jornalista. “Todo mundo que escreve não quer ficar na gaveta, a gente quer chegar ao outro.”
A mesa Bestiários reuniu a escritora colombiana María Ospina Pizano e a poeta paulistana Sofia Mariutti em uma conversa mediada por Patrícia Ditolvo. “Para mim, com as histórias desses animais, o que me interessou foi pensar na impermanência da casa. Por isso o título do meu livro tem essa ideia de que nossas fantasias humanas da permanência da casa, de sua materialidade, de que é nossa propriedade, todas essas lógicas capitalistas contemporâneas são muito limitadas”, afirmou Pizano sobre Só um pouco aqui (Instante, 2025, tradução de Silvia Massimini Felix), no qual tece quatro histórias narradas por animais: duas cachorras que se conhecem após serem abandonadas; uma besoura; uma bebê porca-espinho órfã e uma saíra-escarlate migratória.
“Os animais vieram até mim nessa forma de sonho”, contou Mariutti, que publicou Abrir a boca da cobra (Círculo de Poemas) em 2023. “Sempre achei que não era capaz de criar mundos ficcionais. Até que um dia, durante a pandemia, vivendo no interior, comecei a entender que nesses sonhos eu imaginava mundos, criava coisas que não criava acordada, e entendi que isso era matéria poética.”

A mesa Encontro com Pedro Mairal, que foi mediada por Roberta Martinelli, encerrou A Feira do Livro. O autor de A uruguaia (Todavia, 2018, tradução de Heloisa Jahn) falou que a literatura não é matar elefantes na África como fez Ernest Hemingway, mas sim prestar atenção à vida que acontece ao seu redor o tempo todo. O escritor argentino afirmou que o mais importante para a escrita é ter um radar sensorial capaz de traduzir o mundo em palavras. “É aí que aparece a vida no texto”, disse. A palavra foi, inclusive, o que o salvou na vida quando, aos dezoito anos, desistiu do curso de medicina. “Encontrei na literatura uma maneira de viver com minhas perguntas, minhas incertezas, suportar a ideia de não saber quem sou.”
Clássicos
Livros clássicos e temas ligados à juventude também foram discutidos nos nove dias d’A Feira. Como na mesa Feliz aniversário, Machado de Assis, que aconteceu no último sábado (21) para comemorar os 186 anos do grande autor brasileiro, em que Hélio de Seixas Guimarães falou sobre o desafio, colocado hoje para os estudos machadianos, que é entender a experiência de um homem de ascendência africana e europeia vivendo em um Rio de Janeiro luso-afro-brasileiro. Especialista na obra do autor, o professor da USP falou na conversa mediada por Yasmin Santos sobre como foi organizar a coleção dos 26 trabalhos de Machado, lançada pela Todavia em março. “O fascínio pelo Machado, e a história das leituras feitas da obra dele mostra isso, não é só uma questão individual, mas, coletivamente, como as mudanças das leituras vão se transformando ao longo do tempo. Mudam os sentidos tanto da figura do autor quanto da obra dele”, disse.
Dalton Trevisan foi outro autor brasileiro homenageado. A mesa O centenário do invisível: Dalton Trevisan por outros olhos reuniu os escritores Noemi Jaffe, João Anzanello Carrascoza e Carlos Marcelo, mediados por Rogério Faria Tavares, em um debate sobre o escritor, que morreu em dezembro passado aos 99 anos.
Outro clássico revisitado n’A Feira foi Mrs Dalloway, de Virginia Woolf, na mesa de nome homônimo do romance. Pesquisadora e tradutora de diversos escritos da autora britânica, entre os quais quatro diários e o próprio Mrs Dalloway (Nós), Ana Carolina Mesquita conversou com a jornalista e mediadora de clubes de leitura Beth Leites, no Auditório Armando Nogueira, sobre a vasta produção literária da escritora, que ainda se mantém atual.
Publicado há exatos cem anos, o romance abarca várias das críticas de Woolf à sociedade vitoriana, como as restrições impostas pelos papéis sociais, analisou Mesquita. Por meio de Clarissa, protagonista do romance, a autora celebra a relativa liberdade da mulher na época: “Ela [Clarissa] é um epítome de uma mulher que depois de muitos séculos pôde sair sem um acompanhante. A própria Virginia, quando era criança, não pôde fazer isso”.
Exílios e identidades
O genocídio dos palestinos foi outro tema bastante presente nas mesas d’A Feira deste ano, que ainda acabou sendo palco de uma manifestação pró-Palestina. No primeiro domingo do evento (15), na mesa Gaza está em toda parte, a jornalista e escritora portuguesa Alexandra Lucas Coelho denunciou a Europa e o jornalismo como alguns dos cúmplices do massacre em curso na Faixa de Gaza, em uma das mesas mais aplaudidas d’A Feira 2025, que teve mediação de Eduardo Sterzi.

Coelho, que acaba de lançar um compilado de textos sobre o genocídio palestino perpetrado por Israel, intitulado Gaza está em toda parte (Bazar do Tempo), foi implacável em suas críticas à nova guerra que mobiliza a região desde 7 de outubro de 2023, mas suas observações mais contundentes foram dirigidas a duas entidades das quais é íntima: a Europa, continente em que nasceu, e o jornalismo, profissão que exerceu durante a maior parte de sua trajetória e motivo pelo qual se aproximou da causa palestina em primeiro lugar.
Antes da mesa, a escritora havia participado de uma manifestação pró-Palestina e muitos dos participantes foram assistir à sua fala, que aconteceu no Auditório Armando Nogueira, no Museu do Futebol. O ato pedia ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) que rompesse as relações do Brasil com Israel, a quem acusam de genocídio do povo palestino. O trajeto do protesto, iniciado pela manhã na praça Roosevelt, no centro de São Paulo, foi encerrado em frente à praça Charles Miller, no Pacaembu.
O plano era que o trajeto terminasse na praça Cinquentenário de Israel, no bairro de Higienópolis, mas após negociação com a Polícia Militar a rota foi desviada para as proximidades da praça Charles Miller. Depois do fim do protesto, intitulado Basta de Genocídio na Palestina, um grupo de pouco mais de vinte manifestantes circulou n’A Feira do Livro carregando bandeiras palestinas e cartazes contra Israel. Eles entoaram dizeres como “chega de chacina, PM na favela e Israel na Palestina” e “Palestina livre do rio ao mar”.
No mesmo tema, o Tablado Literário das Bancadas fechou o dia com uma convidada internacional: a escritora e ativista cultural sul-africana Zukiswa Wanner, em conversa com Daniel Martins de Araújo, da editora Periferias, para lançar Amar, casar, matar e uma reedição de Relatos da vida palestina sob estado de apartheid, publicado originalmente em 2023, no qual compara o regime de apartheid sul-africano com o israelense em relação aos palestinos.

Na sexta (20), o Encontro com Lina Meruane, que teve mediação da colunista da Quatro Cinco Um Bianca Tavolari, foi palco de reflexões incisivas da autora de Tornar-se Palestina (Relicário, tradução de Mariana Sanchez) sobre o genocídio em Gaza. “Todo o projeto colonial sionista consistiu em apagar não apenas palavras, mas palavras importantes como ‘Palestina’ e ‘palestinos’. Fez desaparecer as cidades palestinas, as casas palestinas, a história palestina, os símbolos palestinos, a bandeira palestina e os palestinos, ontem e, sobretudo, hoje.” Para ela, “há uma conexão muito clara do modo como o autoritarismo opera, o que faz com que a linguagem seja tão importante para ditaduras e governos coloniais e genocidas”.
Lançado originalmente em 2019 no Brasil, o livro acaba de ganhar uma edição ampliada, com prefácio do escritor Milton Hatoum e um terceiro ensaio. “Para mim esse livro não é só um livro, é um projeto de escrita muito afetivo”, contou Meruane, que resgata na obra a história dos seus avós paternos na Cisjordânia e o processo de imigração da família para o Chile. Ela agradeceu a calorosa acolhida dos leitores brasileiros, que fizeram do livro um sucesso de público.
Na mesa, que contou com tradução simultânea de Lucien Beraha e Ramon de Barros, Meruane também abordou a memória da ditadura chilena, tema de seu mais recente livro, Sinais de nós (Relicário, 2025). Nesse breve relato, a autora narra memórias de infância de uma menina que estuda em um colégio de classe alta em Santiago nos anos seguintes ao golpe militar que derrubou o presidente Salvador Allende, em 1973. “Sinto que toda a minha busca foi menos nostálgica ou sentimental e muito mais política, mas também é verdade que o pessoal é político.”
A autora chilena já havia participado de uma mesa na quinta (19) na companhia do autor espanhol Jorge Carrión. Na mesa Membranas e nervos, mediada por Rodrigo Casarin, os dois discutiram os conflitos no Oriente Médio e a ascensão do discurso contra imigrantes nos Estados Unidos e contra turistas na Europa. “A radicalidade dessas fronteiras nos lembra do privilégio que temos como observadores do mundo, mas também da responsabilidade de contar tudo que temos a possibilidade de ver”, disse a chilena.

Outra conversa que teve a Palestina como um dos tópicos foi Você deu em pagamento o meu país, que reuniu dois poetas: o sírio-palestino Ghayath Almadhoun e o maranhense Josoaldo Lima Rêgo. Almadhoun, filho de mãe síria e pai palestino, nasceu num campo de refugiados em Damasco, capital da Síria. Os avós de Lima Rêgo são do Ceará, os pais do Piauí, e ele nasceu no Maranhão, “um estado de transição, metade Amazônia, metade Nordeste”, como ele disse.
No Auditório Armando Nogueira, eles conversaram com a jornalista e historiadora Paula Carvalho sobre uma poesia em trânsito, que está no exílio e que é marcada por violências. “Uma coisa central na violência do Brasil é o racismo. Marca nosso modo de vida, nossa arquitetura, nosso imaginário”, disse Lima Rêgo, que além de poeta é geógrafo.
Para Almadhoun, a violência é um dado da história da humanidade. “Um pedaço da violência é a guerra. A guerra faz parte da gente e a arte reflete nossa experiência.”
A literatura e a imigração também foram tratadas na mesa Eu vim de lá, com o escritor Oscar Nakasato e a artista, fotógrafa e cineasta Cassiana Der Haroutiounian, mediada pelo cineasta Otavio Cury. “Ao ser imigrante, você deixa muito da sua identidade para trás. Quem sai sempre carrega um trauma”, afirmou ela, que, descendente de armênios, relembrou outro genocídio dos quais seus ancestrais foram alvo: o de 1915 pelo Império Turco-Otomano.
Der Haroutiounian acaba de reunir no livro Uma ilha chamada Armênia (Tabla, tradução de Catherine Chahinian) fotografias que ela tirou do país ao longo de quinze anos. Já Nakasato, autor dos romances Nihonjin e Ojiichan (Fósforo), ambos sobre as vivências da comunidade nipo-brasileira à qual pertence, disse que a experiência do imigrante é trágica em certa medida, um entrelugar que leva os sujeitos a não se sentirem pertencentes nem à sua cultura de origem, nem à de destino.
Nakasato ainda participou na terça (17) de uma versão ao vivo do Clube de Leitura Japan House São Paulo + Quatro Cinco Um, criado em 2018 e que se mantém como um encontro virtual desde a pandemia. Nessa edição especial, o escritor paranaense falou com Natasha Barzaghi Geenen, diretora cultural da JHSP, e Paulo Werneck, diretor-geral d’A Feira, sobre o livro O país das neves (publicado no Brasil pela Estação Liberdade em tradução de Neide Hissae Nagae), romance do Nobel de Literatura Yasunari Kawabata.
Outra mesa que tratou de identidades e de estereótipos nocivos, mais especificamente dentro do Brasil, foi a Só sei que foi assim, que reuniu o editor da Quatro Cinco Um Amauri Arrais e o pesquisador Octávio Santiago, autor do recém-lançado Só sei que foi assim (Autêntica). O jornalista chamou a atenção para o quanto o estereótipo do nordestino como indolente, feio e desqualificado, em vez de ser demolido, apenas ganhou mais camadas de preconceito com o passar das décadas. O problema, assim, não é que esse estereótipo seja anacrônico, concordou Santiago. É que, nesse quesito, “o Brasil da época ainda é o Brasil de hoje”.
“A gente vê atualização em diversas pautas importantes”, disse ele, dando como exemplo o cuidado do audiovisual com representações de gênero, sexualidade e nacionalidade, entre outros. “Mas em relação à população nordestina, o olhar torto persiste, e ele não é por acaso. Nós, nordestinos, estamos presos a uma narrativa que foi construída há cem anos e que o país parece não estar disposto a superar.”
Ligações afro-atlânticas
As relações entre África, América e Europa foram realizadas em algumas das mesas do festival literário paulistano. Dentre elas, a que abriu a programação d’A Feira: 50 anos de liberdade, com o historiador português Fernando Rosas, o cantor, compositor e poeta Mário Lúcio Sousa, de Cabo Verde, e a escritora portuguesa Lídia Jorge. Eles defenderam o estudo da História para combater a extrema direita, criticaram o desejo de retorno ao passado colonial por grupos radicais conservadores portugueses e abordaram também o fascismo do passado e do presente, a colonização portuguesa no continente africano e a ascensão da extrema direita na Europa e no mundo.

Mário Lúcio Sousa também participou de outra mesa, Conexão afro-atlântica, no dia seguinte, no domingo (15), na qual ele se juntou ao poeta paulista Cuti e o mediador Paulo Werneck, diretor-geral d’A Feira. Os dois conversaram sobre seus livros mais recentes publicados no Brasil: a antologia poética Ritmo humanegrítico (Companhia das Letras, 2024), de autoria de um dos fundadores dos Cadernos Negros, e o recém-lançado O livro que me escreveu (Solisluna), do autor, cantor, compositor e político cabo-verdiano.
Os dois convidados debateram o conceito de “literatura negra”, mostrando que não há um consenso sobre o termo. Se na África a definição não faz muito sentido, pois toda literatura feita no continente é negra, no Brasil ela pode ser importante para demarcar uma identidade política de grupos historicamente oprimidos e invisibilizados.
O tema também foi discutido no Encontro com Marilene Felinto, em conversa com a jornalista Luciana Araújo Marques. Na mesa, a escritora pernambucana expressou seu incômodo com eventos literários, rankings do mercado editorial e escritores-celebridades, falou de como a percepção das desigualdades marca sua escrita e comentou a categorização “literatura negra”.
A mesa Racismo e antirracismo nas escolas reuniu a educadora Iza Cortada, o artista e educador Moacir Simplício e a jornalista Raquel Santos, mediados pela escritora Tati Bernardi, para falarem sobre a importância da luta antirracista dentro dos muros das escolas — das salas de aula ao pátio, passando pelo corpo docente e pelo projeto pedagógico. O antirracismo nas escolas demanda também atenção em outros espaços, principalmente dentro de casa, onde começa o letramento racial, segundo Santos. “Se eu não tiver vivência com pessoas pretas, na escola vai ser mero enriquecimento de currículo. Ser antirracista é um estilo de vida, não uma matéria da escola.”
Já a mesa Novas páginas começou discutindo as possibilidades de se organizar uma educação antirracista em sua plenitude. Não é só falar sobre racismo duas vezes no ano, no Dia dos Povos Indígenas, em abril, e no Dia da Consciência Negra, em novembro. Foi com essa definição que a professora Lavínia Rocha, autora do recém-lançado O que você pensa quando eu falo África? (Yellowfante), abriu uma conversa sobre a relação entre negritude, literatura e sala de aula com a também escritora e professora Andressa Marques, que acaba de estrear na literatura com o romance A construção (Nós). A mediação foi da jornalista e historiadora Paula Carvalho.
Para a escritora Cidinha da Silva, é preciso mais diálogo geracional entre os mais jovens e os nomes cujo trabalho foi crucial para as conquistas em termos de direitos humanos e de direitos políticos de grupos subalternizados no Brasil. Seu novo livro, Só bato em cachorro grande, do meu tamanho ou maior (Rosa dos Ventos, 2025), com lançamento previsto para 30 de junho, busca combater esse problema ao compartilhar tudo o que a autora aprendeu em seus quase quarenta anos de convivência com Sueli Carneiro. “Temos poucas pontes geracionais, bem menos do que precisamos e merecemos”, afirmou durante a mesa A obra de Sueli Carneiro como método pedagógico, mediada por Bel Santos Mayer, no domingo (22).

As consequências históricas da escravidão e do comércio de escravizados e a necessidade urgente e permanente de buscar formas de reparação foram o tema da conversa entre a historiadora e professora Luciana da Cruz Brito e a jornalista e escritora Bianca Santana, com mediação da tradutora e editora Fernanda Sousa, na mesa Reparação: memória e reconhecimento, na manhã de domingo (22). O papo foi motivado pelo lançamento do livro de mesmo título, publicado pela Fósforo, que é resultado de um seminário organizado por Brito junto ao Instituto Ibirapitanga.
Santana havia participado antes da mesa Quem limpa?, conversando com o repórter Thiago Pechini, da Folha de S.Paulo. O encontro teve como tema seu primeiro livro infantil, Quem limpa? (Companhia das Letrinhas, 2025), em parceria com Ana Cardoso, no qual traz para os pequenos uma reflexão bem-humorada sobre o trabalho doméstico.
Meio ambiente
Ainda no tom político, mas em outra chave — a do meio ambiente —, Drauzio Varella e Ricardo Cardim trouxeram no sábado (14) o encantamento da floresta e defenderam a importância de preservar a biodiversidade na mesa Do rio Negro ao Tietê, que encerrou o primeiro dia d’A Feira do Livro. Para Varella, a estratégia para manter a floresta em pé é atrair universidades para lá, criar centros de pesquisa.

Na mesa Comida comum, a nutricionista e pensadora da comida Neide Rigo, referência em Plantas Alimentícias Não Convencionais (PANCs), contou como dedicou parte de sua trajetória à pesquisa do cultivo e uso culinário desses vegetais, presentes nas ruas das cidades, mas desconhecidos da população. A autora de Comida comum, publicado pela editora Ubu em 2024, não quer, no entanto, que as pessoas substituam sua alimentação por PANCs ou que comam tudo o que encontram nas ruas.
Sua intenção é mais simples: mostrar que é possível ter uma alimentação mais biodiversa. “Independentemente do que se vai fazer com esse conhecimento, é importante que observemos as plantas que existem mesmo em uma cidade como São Paulo, com tanto cinza”, afirmou. “Só temos a ganhar.”
Outro destaque foi a mesa Homenagem a Dom Phillips, que aconteceu na quarta (18). Mediada pelo cineasta Otavio Cury, Alessandra Sampaio e Tom Phillips emocionaram o Auditório Armando Nogueira ao celebrarem o legado do jornalista britânico assassinado em 2022 no Vale do Javari junto do indigenista Bruno Pereira. “Esse livro é muito além de um livro”, afirmou a viúva de Dom sobre Como salvar a Amazônia (Companhia das Letras, 2025), obra póstuma que reúne trechos escritos por Dom e foi completada por colegas jornalistas.

“Esse livro, a última mensagem do Dom, ele colocou o coração nesse projeto, e é uma mensagem muito bonita, coletiva, de que a gente tem que participar de alguma forma”, afirmou Sampaio, que ainda emendou com uma nota de esperança: “A semente, por mais que eles tenham tentado calar o Dom e o Bruno, está plantada e espalhada”.
Ao comentar a atmosfera de ameaça que ainda paira sobre defensores do meio ambiente na Amazônia e os retrocessos patrocinados pelo Congresso e pelo próprio governo Lula, Tom fez referência a uma frase de Beto Marubo, liderança do Vale do Javari. “O Beto tem falado muito isso nos últimos três anos, se o Dom e o Bruno voltassem para o Javari hoje, eles seriam assassinados de novo. Infelizmente é a mais pura verdade.”
Literatura travesti
Uma língua que não se ensina em nenhum lugar, mas que se aprende nas ruas e que está em constante evolução. O bajubá ou pajubá, linguagem de resistência de travestis para, entre outras coisas, se proteger da violência e da perseguição policial, divertiu o público na noite de sexta (20), no Encontro com Amara Moira e o colunista da Quatro Cinco Um Renan Quinalha.

“Sempre quis ser escritora e quando comecei minha transição, onze anos atrás, queria colocar esse mundo que eu estava vivendo em palavras, convidar pessoas trans e travestis a imaginarem que a literatura é nossa”, disse a autora de Neca: romance em bajubá (Companhias das Letras, 2024).
Outra mesa que tratou da literatura das travestis aconteceu mais cedo no mesmo dia, no Tablado Literário Mário de Andrade, para homenagear Claudia Wonder e Brenda Lee, que reuniu a dramaturga Fernanda Maia e o cineasta Dácio Pinheiro. Maia é o nome por trás da peça Brenda Lee e o palácio das princesas (Ercolano, 2024), e Pinheiro é autor do livro Flor do asfalto (Ercolano, 2025), que compilou entrevistas com Wonder. Os convidados conversaram sobre a vida e a obra das artistas, seu legado e a importância da luta travesti. “Somos o sonho vivo das nossas ‘transcestrais’. Mas ainda somos empurradas o tempo todo para a marginalização”, disse a mediadora da mesa, Verónica Valenttino.
Desigualdades e cidades
As desigualdades nas nossas cidades e na sociedade brasileira foram alvo de vários debates ao longo d’A Feira. No Encontro com Ruth Wilson Gilmore, a geógrafa e ativista antiprisional estadunidense falou que a punição nos sistemas neoliberais sustenta o capitalismo racial e, por isso, a conquista de uma verdadeira abolição começa na luta contra o encarceramento. Ela conversou com a feminista negra antipunitivista Juliana Borges, colunista da Quatro Cinco Um, sobre a lógica sistêmica do racismo, que leva ao abandono organizado de populações negras, pobres e periféricas, e como a violência organizada (de forças policiais ou de milícias) é usada para excluir ainda mais essas populações sob pretextos como “guerra às drogas”. As atuais medidas do governo Trump contra conquistas antirracistas e a ascensão da extrema direita no mundo também foram temas abordados na mesa.

Outro debate que tratou do tema foi o que reuniu os economistas Mariana Almeida e Pedro Fernando Nery, que tiveram a difícil tarefa de falar sobre um dos problemas mais persistentes — e complexos — do Brasil: a desigualdade. Na mesa 40 anos de democracia: desigualdades, com mediação do jornalista Rafael Cariello, eles discutiram dificuldades para implantar e comunicar políticas públicas, avanços dos últimos anos e distorções quase invisíveis, como o fato de que pessoas de classe média recebem isenções no imposto de renda que são maiores que os benefícios do Bolsa Família.

Enquanto isso, a mesa De Marte à favela tratou da necessidade de soluções multifacetadas para a pobreza que estejam sempre se adaptando e incentivem a participação das próprias pessoas atingidas. A conversa aconteceu com a jornalista e âncora da GloboNews Aline Midlej, mediada pela jornalista Eliane Trindade. “A pobreza não tem solução definitiva. Quem disser que tem está mentindo. Porque é algo que está sempre mudando, que precisa de soluções que se adaptem sempre”, disse Midlej, comentando o trabalho da ONG Gerando Falcões apresentado no livro De Marte à favela: como a exploração espacial inspirou um dos maiores projetos de combate à pobreza do país (Planeta, 2024). “Nesses dois anos [de escrita], eu entendi o quanto o problema é complexo. E não tem solução simples para problemas complexos.”
A mesa Pensando bem, com mediação de Iara Biderman, reuniu as escritoras Mayra Cotta e Milly Lacombe, que debateram a necessidade do alcance coletivo da luta feminista. “Se a gente não for colocar todo mundo para dentro, juntas, juntos e juntes, não vai funcionar”, disse Lacombe. “O feminismo não pode ser instrumento para melhorar a vida de algumas poucas mulheres, dentro do discurso do empoderamento, do privilégio, de ocupar o espaço que hoje é ocupado pelos homens, sem transformar”, afirmou Cotta.
Ambas concordaram que é impossível dissociar o feminismo de palavras como “revolução” e “luta de classes”. Lacombe citou, por exemplo, o uso do termo “inclusão” como uma terminologia que não dá conta de transformar a realidade. “A gente quer incluir nessa merda ou queremos mudar isso? Temos que falar revolução sem vergonha nenhuma, falar aborto sem vergonha nenhuma, mas a gente tem uma esquerda que não consegue fazer essas coisas. Mas a gente vai chegar lá.”
Já a mesa Por que gritamos começou com uma provocação: “A quem serve sua calma? Porque se serve para engolir sapo e aguentar relacionamentos abusivos, você não precisa de calma, e sim de um belo grito”. Foi o que perguntou a autora baiana Elisama Santos, que conversou com a jornalista Tatiana Vasconcellos sobre seu novo livro, Ensaios de despedida (Record), e assuntos que orbitam a trama, como maternidade, trabalho do cuidado e desigualdade de gênero.
Já Estrada para lugar nenhum trouxe Paris Marx, autor de Estrada para lugar nenhum (Ubu, 2024, tradução de Humberto do Amaral), uma crítica à visão das empresas de tecnologia sobre as soluções para a mobilidade urbana. Ele conversou com Bianca Tavolari, colunista da Quatro Cinco Um, sobre o futuro dos transportes urbanos que as empresas de tecnologia querem oferecer, os mitos da inteligência artificial e como as soluções reais aos problemas urbanos e ecológicos devem ser buscadas nos movimentos coletivos e nas políticas públicas. “O Vale do Silício é um lugar de homens brancos milionários que fingem ajudar a todos, mas só favorecem a si mesmos”, disse o jornalista canadense.
Crônica, distopias e suspense
A mesa Viagem no país da crônica serviu histórias saborosas sobre o gênero, contadas pelos cronistas Humberto Werneck e Luís Henrique Pellanda. “Muita gente diz que a crônica é um gênero tipicamente brasileiro, eu mesmo incorri nesse erro ao dar o título para uma antologia que fiz. Ela veio da França, trazida em meados do século 19, mas se adaptou muito bem ao Brasil. A comparação que eu faço é com o futebol, que chegou com o Charles Miller. A crônica se deu muito bem com uma certa informalidade do brasileiro, que é, por vezes, abusiva”, disse Werneck. Pellanda lembrou uma definição de Machado de Assis de que a crônica “se assemelhava à conversa de duas vizinhas que fofocavam sobre o tempo, sobre a vida do morador da casa em frente. Tinha essa associação com a fofoca, a conversa que se metia na vida pública e alheia”.

A crônica também foi o tema da mesa Um milhão de ruas, com Fabrício Corsaletti e Ricardo Terto, que discutiram a capacidade desse gênero de se intrometer na vida do leitor a ponto de fazer alguém perder a parada do ônibus. Terto destacou a beleza de “escrever algo que de certa forma vence o tempo capturado”. “Sinceramente, 90% dos romancistas brasileiros não chegam aos pés dos melhores cronistas brasileiros”, exaltou Corsaletti.
Werneck e Corsaletti se encontraram em uma mesa no Tablado Literário Mário de Andrade também para falar de Viagem no país da crônica, livro que o autor mineiro está lançando pela Tinta-da-China Brasil, selo editorial da Associação Quatro Cinco Um. Os dois discutiram as indefinições do gênero, destacando sua proximidade com o leitor, o tom subjetivo e o olhar sobre o cotidiano. A mesa no Espaço Motiva Tablado Literário foi mediada por Ana Lima Cecilio, curadora da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip).

A literatura policial foi tema de uma das mesas mais disputadas desta edição d’A Feira: Na cena do crime, que marcou o encontro dos escritores Raphael Montes, de Uma família feliz (Companhia das Letras, 2024) e Jantar secreto (Companhia das Letras, 2016), e Edyr Augusto, de Pssica (Boitempo, 2015). Com mediação de Roberta Martinelli, eles também falaram sobre a presença desse gênero no Brasil de hoje e as recentes adaptações televisivas e cinematográficas de livros que escreveram. “O filme é uma leitura possível do livro”, disse Montes, para quem “falar de literatura policial é falar de violência, e falar de violência é falar da sociedade”. O escritor, roteirista e autor de novelas carioca recebeu uma das maiores filas de autógrafos do festival.
O Encontro com Ignácio de Loyola Brandão reuniu o escritor paulista de 89 anos e a jornalista Iara Biderman em uma conversa para celebrar os sessenta anos de literatura do autor, relembrando o início da carreira, refletindo sobre presente e futuro e fazendo aquilo que mais sabe: contar histórias. Ele anunciou que faria algo inédito na carreira: “Nunca ninguém, nem minha mulher, leu nada meu antes de publicar, mas hoje vou ler aqui”, anunciou ele, que leu um trecho ainda não divulgado de seu próximo livro, Risco de queda, no qual trata da velhice.
Disposto e bem-humorado, o imortal da Academia Brasileira de Letras desfiou casos, da infância em Araraquara (SP) aos muitos projetos que diz ainda querer realizar, além de abordar a atualidade de Não verás país nenhum (Global, 1981), que se passa em um cenário distópico descrito pelo autor como um futuro de isolamento, mortes e máscaras. “Portanto, eu previ a Covid. Pura imaginação e loucura”, brincou.
Ainda no âmbito dos romances distópicos, a mesa Do vulcão ao plástico realizou o encontro entre a escritora gaúcha Veronica Stigger e o autor brasiliense Vinícius Portella. Os dois discutiram como uma das maiores erupções vulcânicas da história ou uma montanha de lixo do tamanho da França flutuando no Oceano Pacífico se tornaram temas para sua ficção. Os dois falaram como suas pesquisas acadêmicas se misturam a seus processos criativos, na mesa mediada por Maria Carvalhosa. Stigger também explorou sua relação com São Paulo, cidade que adotou há 24 anos e que permeia sua literatura, na mesa Palavra expressa, com Leticia Costa. “Minha escrita, os textos pelos quais estou pensando, eles passam muito por essa experiência de estar na rua”, disse ela.
Poesia e música
Um dos momentos mais emocionantes d’A Feira foi a homenagem afetiva ao poeta Antonio Cicero, morto em 2024. Com a participação do compositor, cantor e poeta paraense Arthur Nogueira, da poeta e editora Alice Sant’Anna, da cantora e compositora Marina Lima, irmã de Cicero e sua principal parceira, e mediação da poeta Bruna Beber, a mesa Homenagem a Antonio Cicero lotou o Palco Petrobras, com o público se aglomerando em pé nas laterais da tenda. Os convidados deram voz às palavras do próprio Cicero, lendo cada um cinco poemas que escolheram da coletânea Fullgás: poesia reunida, que acaba de ser lançada pela Companhia das Letras. Marina escolheu começar com o poema que, segundo ela, deu início à longa parceria entre os irmãos, “Canção da alma caiada”, quando ela estava com dezesseis anos e ele com 26, e moravam nos Estados Unidos.

O poeta Leonardo Fróes participou de duas mesas nesta edição d’A Feira. Na primeira, intitulada Encontro com Leonardo Fróes e que aconteceu no sábado (21) no Palco Petrobras, o poeta emocionou o público ao recitar seus poemas e compartilhar sua visão sobre a natureza e a escrita, ao lado de Schneider Carpeggiani. No domingo (22), a mesa A arte de plantar, no Auditório Armando Nogueira, ao lado de Tarso de Melo, na qual abordou o momento que alterou sua vida: sua mudança definitiva para Secretário, em Petrópolis (RJ), após abandonar um trabalho concorrido em uma editora nos anos 70, quando passou a viver mais perto da natureza. “Tive o privilégio de poder me dar essa vida, de deixar de ser o profissional que fui, para traduzir dezenas de livros e pagar esse luxo que é poder viver em contato com a natureza”, disse ele, que acabou por se tornar um importante tradutor literário.

A poesia também marcou uma edição especial do podcast 451 MHz, com apresentação da colunista do programa Bruna Beber, que conduziu uma conversa com a poeta e tradutora Marília Garcia sobre seu novo livro, Pensar com as mãos (WMF Martins Fontes). Foi a primeira vez que o podcast foi gravado ao vivo com participação de plateia. Garcia contou que é ouvinte assídua do programa e falou sobre a origem de sua nova publicação, uma encomenda para a coleção Errar Melhor, dirigida pelo escritor Joca Reiners Terron, com textos dedicados a pensar a escrita.
A mesa que abriu toda a programação d’A Feira também estava diretamente ligada à música: o Ensemble Fundação Theatro Municipal (FTM) começou a programação dos nove dias do evento ao som de Adoniran Barbosa, Rita Lee, Luiz Gonzaga e outros artistas brasileiros.
O papo Alexandrinos heroicos reuniu os poetas Glauco Mattoso e Paulo Henriques Britto, com mediação de Fernando Luna. Eles conversaram sobre como o soneto ganhou um papel central em suas obras pelas beiradas. Mattoso explicou que métrica e rima foram fundamentais para seu trabalho depois de perder a visão, em 1995. Já para Britto, o interesse veio da percepção de que, para fazer o verso livre, antes teria que dominar a forma clássica. Os dois trataram ainda do papel do humor, em sua faceta mais obscena e escatológica, dentro de suas produções. “Hoje eu me considero um pós-maldito”, encerrou Mattoso.
A mesa Lugares onde não estou reuniu Paloma Vidal e Laura Liuzzi, duas poetas que encontraram na maternidade um ponto de contato entre seus trabalhos, muito diferentes entre si. Elas tiveram filhos na mesma época, mas enquanto Paloma relata o cotidiano familiar no livro que dá nome à mesa, Liuzzi não fala diretamente da experiência — ao contrário, tentou produzir seu Poema do desaparecimento (Círculo de Poemas, 2024) a partir da perspectiva da filosofia externalista, que entende a consciência como algo que não está centrado no cérebro, mas sim em elementos externos. “A gente se encontra nesse movimento para fora. Você [Paloma] consegue anotar tudo, parece um documentário do cotidiano, e eu estou tentando desaparecer”, comparou Liuzzi.
Uma homenagem aos quarenta anos de carreira literária de Edimilson de Almeida Pereira foi feita no Auditório Armando Nogueira no primeiro domingo (15) d’A Feira. Desde seu primeiro livro, Dormundo (D’Lira, 1985), o autor e professor mineiro diz que hoje vê sua obra não como uma preocupação em desvendar caminhos, mas como um ponto “numa teia muito maior que nos move”. “Aprendi a ler poemas de que não gosto, poetas que não aprecio. É dessa diferenciação que vem esse caminho”, afirmou em conversa com a crítica literária Cristiane Tavares. “Procuro essa errância que me dá direito a experimentar as outras máscaras que os outros são”, disse.
Diários, crises, perdas, o cotidiano e tudo que pode alimentar a poesia permearam a conversa durante a mesa Antes de dar nomes ao mundo, que reuniu a escritora carioca Adriana Lisboa e a poeta paulistana Júlia de Carvalho Hansen, com mediação da crítica literária Luciana Araujo Marques.
Memória e autoficção
Relatos de memórias foram temas de algumas mesas d’A Feira. No papo Cartas aos filhos, Marcelo Rubens Paiva e Martha Nowill, autores que misturam relatos pessoais e o cenário político, falaram das semelhanças de seus livros, de paternidade, de maternidade e dos limites éticos da literatura. Amigos de longa data e pais de primeira viagem, os escritores leram trechos dos seus romances recém-lançados. Coisas importantes também serão esquecidas (Companhia das Letras), estreia de Nowill na literatura, mistura diário e ensaio ao contar a experiência da atriz de se descobrir grávida aos quarenta anos em meio ao isolamento. O novo agora (Alfaguara), de Rubens Paiva, completa uma trilogia iniciada com Feliz ano velho (1982) e que teve continuidade em Ainda estou aqui (2015), adaptado ao cinema por Walter Salles, que deu ao Brasil seu primeiro Oscar.

Em O primeiro leitor, o editor paulista e fundador da Companhia das Letras Luiz Schwarcz reviu suas mais de quatro décadas de trabalho com livros em uma conversa com o jornalista, editor e escritor Paulo Roberto Pires, colunista da Quatro Cinco Um. Na ocasião, Schwarcz admitiu que penou ao deixar o posto de editor para assumir o de escritor em seu livro de memórias recém-lançado, O primeiro leitor. “Faço exatamente tudo que um autor inseguro faz”, disse. Também falou de sua trajetória antes da Companhia das Letras e comentou as maneiras como busca adaptar a empreitada aos novos ventos sem abandonar sua premissa básica: trazer ao público livros de qualidade, mas com conteúdo acessível.
Já os ritmos do Xingu foram ouvidos na mesa O dono da palavra, com Yamaluí Kuikuro Mehinaku, que entoou um canto de proteção e boa saúde no início e no fim da conversa com a escritora Rita Carelli. Yamaluí falou sobre Dono das palavras: a história do meu avô (Todavia, 2024), biografia de seu avô Nahu Kuikuro, um dos primeiros indígenas do Alto Xingu a aprender português. “Esperei muito o branco contar a história dele, mas ninguém contou”, disse o autor.
“Os índios precisam que os brancos ouçam e respeitem a nossa história”, afirmou Yamaluí, que fez ainda um alerta sobre os efeitos das mudanças climáticas, que já estão alterando a vida no Xingu. “O mato está acabando, o rio está secando. A situação no momento está muito preocupante. Uma equipe da Fiocruz que fez pesquisa no rio Culuene descobriu que alguns peixes estão contaminados. As fazendas estão se aproximando do nosso território, o veneno que eles jogam na soja a chuva leva para o rio. Outra coisa que preocupa é a venda de madeira ilegal.”

Já o ator, diretor e escritor Lázaro Ramos e o teólogo Ronilso Pacheco conversaram na mesa Na nossa pele, uma das mais cheias desta edição d’A Feira, com mediação da jornalista e escritora Adriana Ferreira Silva. Ramos, que lançou recentemente Na nossa pele: continuando a conversa, sequência de seu best-seller Na minha pele, ambos publicados pela Objetiva, disse acreditar profundamente na arte e no seu poder de abrir portas. Mas, prosseguiu, ela não é capaz de transformar a realidade sozinha. Assim, se é verdade que a arte vem conseguindo chamar a atenção para questões raciais fundamentais, como a representatividade, ela também lida com um mundo que parece querer pôr a emancipação negra o tempo inteiro em xeque.
A memória é tema do romance Misericórdia (Autêntica Contemporânea, 2024), de uma das maiores escritoras portuguesas da atualidade, Lídia Jorge. Na mesa Diante da lembrança, ela narrou como o processo de luto pela perda de sua mãe desembocou no seu livro, que ela definiu como “uma espécie de triunfo sobre a morte”, em outras palavras, “a ideia de que haja o que houver além de nós, enquanto alguém falar por nós, nós existimos”. “Isso me deu força para escrever em muito pouco tempo este livro, era como se ela ainda não tivesse desaparecido”, afirmou em conversa mediada pela escritora e professora Luana Chnaiderman de Almeida. “É por isso que este livro tem este tom, que não é melancólico, é um tom de combate.”
O envelhecimento também é tema de um estudo realizado pela historiadora Mary Del Priore, com seu Uma história da velhice no Brasil (Vestígio), que acaba de ser lançado. Na mesa Envelhecer no Brasil, que teve mediação de Tatiana Vasconcellos e lotou o Auditório Armando Nogueira com gente de todas as idades, a historiadora criticou o que chamou de eufemismos obscenos para descrever essa fase da vida. “Acho obsceno essas palavras que hoje são utilizadas para descrever esse momento da vida da gente, que pode ser muito pleno, mas também é cheio de sofrimentos, a começar pelas pessoas que perdemos nessa idade. Envelhescência, feliz idade, acho tudo isso uma grande bobagem.”

A autoficção foi assunto de algumas mesas, como A boba da corte, na qual a escritora Tati Bernardi, ao lado da jornalista Aline Midlej, riu e arrancou risadas ao narrar alguns dos episódios de seu livro mais recente, A boba da corte (Fósforo, 2025). Durante a conversa, ela discutiu as críticas à sua incursão pela autoficção, refletiu sobre os códigos que regem o comportamento da elite paulistana e contou como a escrita foi o lugar de pertencimento que ela criou para si. “Eu celebro quando minha vida está cagada, porque sei que vou ter o que escrever”, disse.
Outra mesa que arrancou risadas do público foi Cair do cavalo, com o humorista e ator francês Panayotis Pascot e Beatriz Muylaert, editora executiva da Quatro Cinco Um. “Muita gente fala de coragem em autoficção, de como falar de uma história a partir de coisas da nossa própria vida embarca pessoas, leva gente junto nesse barco, mas eu não acho isso. Acho que é um pouco de covardia contar as coisas cada um no seu cantinho. É mais fácil escrever que enfrentar as coisas na vida”, afirmou o autor de Da próxima vez que você cair do cavalo (Ercolano, 2025, tradução de Francesca Angiolillo), um franco relato autobiográfico no qual Pascot tenta organizar as reflexões e sentimentos dos dias que se seguiram ao anúncio de que seu pai, com quem mantinha relação distante, em breve morreria.
Em Encontro com Eduardo Giannetti, não foi na condição de economista, mas na de estudioso da filosofia, que ele participou d’A Feira no sábado (21) para discutir seu livro mais recente, sobre a busca pela vida eterna, com o jornalista Márvio dos Anjos. Lançado pela Companhia das Letras, Imortalidades destrincha os caminhos que os seres humanos teriam encontrado para lidar com o anseio da perenidade ao longo da história. Os mais óbvios desses seriam, é claro, a ciência e a religião. O problema é quando essas alternativas acabam por eclipsar o assombro diante da existência, disse o ensaísta. “A má ciência silencia o mistério [da vida], assim como a má religião o empobrece.”
Crítica cultural, arte e mais
O trabalho da crítica cultural foi tema do encontro entre Paulo Roberto Pires, Bianca Tavolari, Juliana Borges e Renan Quinalha, colunistas da Quatro Cinco Um, que teve mediação da editora executiva da revista, Beatriz Muylaert. Na conversa, um dos consensos a que chegaram é que o papel do crítico literário não é dizer se um livro é bom ou ruim — por mais que ele possa objetivamente ser —, mas dialogar com a obra para refletir sobre o mundo em que ela está inserida.

A arte foi tema da mesa Domingo no parque, em que foi discutido o catálogo da exposição mais recente de Renata Lucas, que ocupou a Pina Estação até o mês passado e não é como outras publicações do gênero. Além de trazer fotografias e informações sobre as obras que ela de fato expôs no local e de outras, centrais na sua trajetória artística, foram incluídos diversos projetos que a artista jamais realizou. Essa divergência entre “livro e documento, projeto e obra”, nas palavras do diretor da Pinacoteca de São Paulo, Jochen Volz, serviu de ponto de partida para uma conversa entre ele, Lucas e a curadora da mostra na Pina Estação, Pollyana Quintella.
A mesa Adolescência debateu, a partir do sucesso da série Adolescência (Netflix, 2025), como as tecnologias e as redes sociais estão afetando a população mais jovem. Com mediação da jornalista Luka Franca, a professora Lola Aronovich, a advogada e presidente do Instituto Liberta Luciana Temer e a escritora Juliana Borges, colunista da Quatro Cinco Um, debateram os riscos que o ambiente digital oferece para crianças e adolescentes e o que pode ser feito para proteger meninos e meninas. Na série inglesa, um garoto de treze anos é acusado de assassinar uma colega de classe, e a investigação revela seu envolvimento com comunidades digitais misóginas. “Depois da série, comecei a achar que meu trabalho era muito ingênuo. Não tem família boa e escola boa que deem conta. A gente tem que falar de regulação, de classificação etária, de retomar o controle dessa historia”, afirmou Temer.

O matemático Marcelo Viana colocou a disciplina ao rés do chão e divertiu o público na mesa Da contagem nos dedos à inteligência artificial, com mediação do jornalista Eduardo Sombini. Diretor-geral do Instituto de Matemática Pura e Aplicada (IMPA), com sede no Rio de Janeiro, Viana afirmou não acreditar que a matemática seja para gênios. “Fazer o conhecimento matemático chegar a toda a sociedade é questão de justiça”, disse o autor de Histórias da matemática: da contagem nos dedos à inteligência artificial, lançado em 2024 pela Tinta-da-China Brasil, selo editorial da Associação Quatro Cinco Um.
Viana narrou anedotas saborosas para mostrar que a matemática pode estar no cotidiano de forma bastante direta e defendeu que o Estado precisa assumir sua responsabilidade na educação. “Assim como aceitamos hoje em dia, em sociedades civilizadas, que o Estado tem a obrigação de alfabetizar seus cidadãos, eu coloco no mesmo nível a alfabetização matemática, para que as pessoas possam utilizar esse conhecimento no dia a dia. Isso está sendo privado à nossa sociedade.”
Futebol
O esporte encerrou a noite do sábado (21) com uma divertida conversa entre o escritor Mario Prata e o cineasta Ugo Giorgetti na mesa Pelo buraco da fechadura. Os dois compartilharam histórias engraçadas envolvendo sua paixão pelo futebol e o ofício de cronista. O olhar bem-humorado para episódios curiosos e detalhes muitas vezes considerados desimportantes está sempre presente nos escritos dos autores, de romances como O drible da vaca (Record, 2021), em que Prata mistura pesquisa histórica e inventividade, para contar sua versão da origem do futebol, a volumes de crônicas propriamente ditas, como faz no seu Pelo buraco da fechadura (Geração Editorial, 2023), que deu nome à mesa, ou Era uma vez o futebol (Imprimatur, 2025), que traz crônicas e contos de Giorgetti sobre o esporte, que durante o encontro ele chamou de “grande arte popular brasileira”.
O futebol ainda compareceu no domingo (22), último dia d’A Feira, com duas partidas com autores no estádio da Mercado Livre Arena Pacaembu. Em vez de grandes craques, o evento levou para o gramado jogadoras e jogadores menos acostumados às chuteiras — mas nem por isso o que se viu em campo deixou de ser emocionante.

Em uma partida feminina e outra masculina, escritoras, escritores, editores, jornalistas e outros convidados do festival literário paulistano levaram para o estádio, aberto ao público, o clima de confraternização em torno dos livros que marcou o evento. Tanto a partida feminina quanto a masculina terminaram empatadas em 2 a 2, com recuperações empolgantes do time que estava atrás no placar e boas risadas para quem estava dentro e fora de campo.
Espaço Rebentos
O novo palco voltado especialmente para o público infantojuvenil, o Espaço Rebentos, reuniu uma série de atividades para os pequenos com curadoria de Juliana Vettore e Jaqueline Silva. No total, houve onze debates, sete conversas, dois lançamentos, sete oficinas e cinco apresentações musicais. A área dedicada aos pequenos leitores recebeu grandes autores, ilustradores e músicos, em conversas sobre literatura, ecologia, diversidade e muito mais, em uma programação tão variada quanto a dedicada aos adultos.

Até a divisão entre literatura infantojuvenil e literatura para adultos foi misturada, com a presença de autores mais conhecidos por escrever para os leitores grandes, mas que também têm se aventurado em obras para os pequenos. Pedro Bandeira, Silvana Rando, Edimilson de Almeida Pereira, André Del Fuego, Cidinha da Silva, Bela Gil, Daniel Kondo, Augusto Massi, Renato Moriconi, Lalau e Laurabeatriz, Lúcia Hiratsuka, Janaína Tokitaka, Barbatuques, Fera Neném, entre outros, marcaram presença na programação.
Tablados Literários
O Espaço Motiva Tablado Literário, Tablado Literário Mário de Andrade e Tablado Literário das Bancadas foram palco de 36 atividades, de debates entre escritores, pesquisadores, tradutores e pensadores, passando por lançamentos de livros dos mais variados gêneros, até saraus de poesia e oficinas para crianças.
Entre os temas discutidos estavam política com o advogado Conrado Hübner Mendes, a jornalista Natalia Viana e o filósofo Vladimir Safatle; crônica com Humberto Werneck e Fabrício Corsaletti; literatura com Maria Adelaide Amaral, Andréa Del Fuego e Caetano Romão; saúde mental com a psicanalista Vera Iaconelli (que participou de duas conversas: Análise e Muito além da psiquiatria, com Juliana Belo Diniz); alimentação e natureza com Neide Rigo e Ricardo Cardim; o papel da fé no Brasil de hoje com Anna Virginia Balloussier e Marcelo Leite; a literatura indígena com Olívio Jekupé e Kerexu Mirim, assim como ambientalismo, arquitetura, educação, escrita criativa, ficção científica, literatura de cordel, literatura LGBTQIA+, poesia, quilombos, tradução e assuntos ligados ao mundo dos livros.

Os tablados também receberam convidados internacionais, como o escritor e compositor cabo-verdiano Mário Lúcio Sousa, a escritora sul-africana Zukiswa Wanner, o poeta sírio-palestino Ghayath Almadhoun e o escritor espanhol Jorge Carrión.
Oficinas
A Tenda das Oficinas atraiu um público cativo nos nove dias de evento. Ali, leitores de todas as idades puderam aprender, criar e experimentar práticas que giram em torno do universo do livro, da leitura e das artes gráficas. A programação gratuita reuniu artistas, coletivos, designers e instituições parceiras, que compartilharam seus saberes em oficinas de encadernação, impressão, ilustração, bordado, carimbos e tipografia.
151 expositores
Dezenas de editores e livreiros que participaram d’A Feira do Livro 2025 se reuniram no último dia do festival para um momento histórico: uma foto conjunta na arquibancada do Pacaembu. Para o clique — acompanhado de muitas tomadas de vídeo — eles levaram exemplares de livros expostos nas tendas e bancadas do festival, que nesta edição contou com a participação de 151 expositores.
A quarta edição d’A Feira do Livro 2025 aconteceu de 14 a 22 de junho, na praça Charles Miller, no Pacaembu. Realizado pela Associação Quatro Cinco Um, pela Maré Produções e pelo Ministério da Cultura, o festival literário paulistano, a céu aberto e gratuito, reúne mais de duzentos autores e autoras do Brasil e do exterior em uma programação com mais de 250 atividades, entre debates, oficinas, contações de histórias e encontros literários. Confira a programação e outras notícias do festival.
A Feira do Livro 2025 · 14 — 22 jun. Praça Charles Miller, Pacaembu
A Feira do Livro é uma realização do Ministério da Cultura, por meio da Lei Rouanet – Incentivo a Projetos Culturais, Associação Quatro Cinco Um, organização sem fins lucrativos dedicada à difusão do livro e da leitura no Brasil, Maré Produções, empresa especializada em exposições e feiras culturais, e em parceria com a Prefeitura de São Paulo.
Porque você leu A FEIRA DO LIVRO 2025
Fazer literatura é prestar atenção na vida ao redor, diz Pedro Mairal
Autor argentino contou como encontrou na palavra uma identidade que lhe permitiu suportar a ideia de não saber quem é
JUNHO, 2025