

Crítica Cultural,
Elogio da sombra
Ao refletir sobre suas trajetórias, Jiro Takahashi e Luiz Schwarcz escrevem capítulos essenciais na história da edição de livros no Brasil
19jun2025 • Atualizado em: 18jun2025 | Edição #95É improvável, quase impossível, que as escolhas de um leitor formado a partir dos anos 70, como é o caso deste que vos digita, não tenham passado antes pelas mesas de Jiro Takahashi e Luiz Schwarcz. Das coleções Para Gostar de Ler e Vaga-lume, publicadas pela Ática, até a descoberta de escritores como Milton Hatoum e Bernardo Carvalho, cujas obras são inseparáveis da Companhia das Letras, páginas importantes das últimas cinco décadas trazem a marca, nem sempre evidente, destes dois “homens da sombra”, a feliz expressão que François Dosse usa para definir os que se dedicam à inexata ciência de botar livros no mundo.
Se o Brasil tem um vigoroso campo de estudos acadêmicos sobre edição, falta às nossas estantes uma tradição de livros que contem essas histórias para o “leitor comum”, aquele que, segundo Virginia Woolf, “lê por prazer, não para transmitir conhecimentos ou corrigir opiniões alheias”. Pois entender a época e a cabeça de quem decide o que se publica é entender melhor como e por que lemos o que lemos, observar os caminhos acidentados de sucessos e fracassos, os mecanismos da consagração e do esquecimento. Essas histórias da vida entre os livros são, como argumenta Luiz Schwarcz, uma história coletiva.
Takahashi e Schwarcz iluminam pontos cegos da penumbra em que se dá o trabalho editorial

O volume da série Editando o Editor dedicado a Jiro Takahashi e O primeiro leitor, de Luiz Schwarcz, iluminam pontos cegos da penumbra em que se dá o trabalho editorial. Em objetivo e forma, são muito diferentes. Takahashi tem sua trajetória fixada no 11º volume da coleção de história oral iniciada em 1989 pela professora Jerusa Pires Ferreira, que vem documentando, na transcrição de detalhados depoimentos, as trajetórias de referências como Jorge Zahar, Jacó Guinsburg e Ênio Silveira.
Já Schwarcz se dedica ao que chama de “ensaio de memória”, alternando capítulos reflexivos sobre o trabalho editorial e perfis de personagens marcantes dos pontos de vista afetivo e profissional. Os dois domínios, aliás, se misturam desde sempre nesta atividade, como dão testemunho sua relação com quem chama de “pais editoriais” — além de Zahar e Caio Graco Prado, o poeta José Paulo Paes e Paulo Francis — e escritores com quem conviveu intimamente, como José Saramago, Amós Oz e Jô Soares.
Planejamento
Takahashi nasceu em 1947. Queria ser médico, estudou direito e começou a vida como datilógrafo num “curso de madureza” que passou a produzir apostilas e virou uma força editorial, a editora Ática. Ao longo da vida publicou livro didático, ficção literária e comercial, inventou coleções e formatos, viveu a grande fase da Nova Fronteira, fundou a Estação Liberdade — em plena atividade com outros sócios — e segue ativíssimo como professor e consultor editorial.
Schwarcz é de 1956. Fez administração com a cabeça em sociologia. Entrou na edição pela porta do setor de planejamento, mas logo seria o braço direito de Caio Graco Prado na fase áurea da Brasiliense. De lá saiu, em 1986, para criar a Companhia das Letras, hoje um grupo editorial que tem a Penguin como sócia majoritária e Schwarcz como CEO. (A essa altura é importante observar que dois de meus livros estão publicados por casas incorporadas à Companhia.)
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Se restam poucas dúvidas de que a vida de um editor é feita de planejamento e trabalho duro, os primeiros anos da carreira de ambos dão razão a Schwarcz quando ele menciona “a influência do acaso e de outras pessoas” na profissão. Afinal, mesmo com a existência de cursos universitários de editoração em alto nível, a atividade guarda fortes marcas do que ele chama de “loteria de encontros” — encontros entre diferentes gerações de profissionais, com sócios mais ou menos previsíveis, com autores consagrados que chancelam o estreante, com estreantes que se tornam companheiros de viagem.
Compromisso político
Ambos também tiveram em comum, nos anos de formação, o compromisso político. Aos vinte anos, Takahashi militava na clandestinidade e, como só agora revela, dividiu com amigos sua primeira experiência de publicação, a editora Rosa Blindada, “adolescente e empolgada”, que imprimia “trechos de Marx, Rosa Luxemburgo, Trótski”. Na edição profissional, Takahashi, que foi aluno de Florestan Fernandes, teve que se haver com apreensões frequentes, nos anos 70, de títulos das coleções Ensaios e Grandes Cientistas Sociais. O catálogo de uma editora é, para ele, um espelho que reflete a sociedade. Porém, em determinados momentos, deve ser resultado da ação de um martelo e do apoio de um tijolo, da demolição de valores e padrões de gosto. “Livro não vai fazer revolução, mas pode gradativamente preparar uma mudança de postura, de pensamento, de ideias”, afirma.
Na década de 80, a mobilização explícita da Brasiliense na campanha de redemocratização ensinaria a Schwarcz como, na prática, as ideias de mudança poderiam ser ainda mais complexas e interessantes do que nos livros que cultivava. Na casa fundada por Caio Prado Jr., as dimensões literária e comercial caminhavam junto às convicções ideológicas. A Primeiros Passos, coleção de livrinhos introdutórios a temas como ideologia, dialética e indústria cultural, se tornou best-seller num país que se reconstruía politicamente e abriria caminho para outras séries explorando momentos de mudança social (Tudo é História), biografias (Encanto Radical), transgressões literárias e comportamentais (Cantadas Literárias) e uma explosiva mistura de Dashiell Hammett e Waly Salomão, o Circo de Letras.
Nas eleições presidenciais de 2018 e de 2022, a Companhia das Letras formalizaria apoio a Fernando Haddad e Lula em enfrentamento à extrema direita, cujo projeto obscurantista contou com o entusiasmo inconfesso, nas duas ocasiões, de importantes empresários do mercado editorial.
Ambos são ainda assombrados pelo que Schwarcz chama de “o mito do editor norte-americano”, personagem mercurial e “superinterventor” que por sua ação direta nos originais eventualmente assumiria ares de coautor. Assim o era Max Perkins, também citado por Takahashi, responsável pelo Scott Fitzgerald tal qual o conhecemos e pelo mínimo de ordem nos originais caóticos de Thomas Wolfe. Gordon Lish também entraria para história pela versão, controversa, de que a brevidade proverbial de Raymond Carver se devia mais à sua tesoura do que ao estilo “natural” do autor de Short Cuts. Takahashi conta ter aprendido com Carlos Drummond de Andrade que, mesmo diante de um gigante, o editor “não pode não falar”; Schwarcz anota que João Gilberto Noll era “refratário a mudanças” e “estava certo” de se portar assim, na mesma medida em que Rubem Fonseca aceitava “com felicidade” os “palpites editoriais”.
Fragmentos
Estes fragmentos de história editorial, sempre vista a partir de São Paulo, onde os dois autores atuam, ganha a meu ver um sentido mais ambicioso, na melhor acepção do termo, em O primeiro leitor, título que para mim, com tudo o que implica, é ótima definição desse ofício. Autor de ficção infantojuvenil (Minha vida de goleiro e Em busca do thesouro da juventude), contos (Discurso sobre o capim e Linguagem de sinais) e de um forte ensaio pessoal (O ar que me falta: história de uma curta infância e de uma longa depressão), Schwarcz estabelece aqui um diálogo com editores que também se dedicaram ao ensaísmo sobre a profissão.
O italiano Roberto Calasso, mítico editor da Adelphi de quem foi amigo, é citado com seu A marca do editor, e penso ainda no catalão Jorge Herralde, fundador da Anagrama e autor de O otimismo da vontade, ou em A sabedoria do editor, de Hubert Nyssen, editor belga que criou na França a Actes Sud.
A fortuna crítica da profissão é, nos melhores momentos destes livros, uma reflexão que vai além do anedótico, ainda que atrelada e embolada com a experiência imediata. É tateando, como no melhor ensaísmo, que se desenham as habilidades, responsabilidades e questões da profissão que, em seus grandes momentos, é a antítese de qualquer ortodoxia.
Em O primeiro leitor se desenvolve a ideia de que o livro físico é a metáfora por excelência do livro como conceito. Para Schwarcz, páginas arejadas, com entrelinhamento generoso, são, mais do que princípios estéticos, uma declaração de princípios, um convite para que o leitor ocupe, física e simbolicamente, os espaços em branco. Uma página pesada, “muito opressora, absoluta, é, mais que feia, inapropriada, pois de modo indireto significa que a propriedade do livro, durante e após a leitura, não é compartilhada”, escreve. “O manuseio do livro, os grifos e anotações, além das dobras nos cantos das páginas, são mementos dessa disputa e da afirmação da posse por parte do leitor”, compara ele, que reivindica para o editor uma presença efêmera, nestes espaços em branco que pertencem a quem lê.
Os editores confirmam, na prática, a necessidade de redefinir perpetuamente os parâmetros da profissão
O Brasil em que Jiro Takahashi e Luiz Schwarcz nasceram e se desenvolveram como editores já não existe. Entre as décadas de 80 e os 2020, um gosto médio se impôs, o consumo se massificou e o público leitor não necessariamente aumentou. Na economia da atenção, instável pela volatilidade das telas, as seletas de grandes cronistas do Para Gostar de Ler ou a ficção juvenil da Vaga-lume não têm o mesmo apelo. E parece de todo improvável que a lista de mais vendidos acolhesse, por exemplo, Tudo que é sólido desmancha no ar, o sofisticado ensaio de Marshall Berman sobre o capitalismo que foi um dos primeiros sucessos da Companhia das Letras.
Os dois editores reconhecem a mudança. Para Takahashi, o público de então “compunha-se majoritariamente por amantes de livros” e o de hoje, sugere, requer outro tipo de atenção. Schwarcz observa que “leitores de classes menos privilegiadas movimentam as vendas, as feiras e os festivais” em razão de melhor distribuição de renda e “ações de formação de bibliotecas e entrega de livros para a população mais pobre”. Percebeu elitismo dentro e fora de sua editora quando, alinhado com as práticas editoriais de grandes grupos, decidiu publicar livros “comerciais” em selos específicos: “foi um exercício que serviu para que entendêssemos o quanto tínhamos que aprender com quem não costuma frequentar os círculos da, assim chamada, alta literatura”.
Se ambos são inconclusivos, até porque não pretendem avaliar as injunções de mercado como o fez outro editor, André Schiffrin, em O negócio dos livros e O dinheiro e as palavras, também terminam por confirmar, na prática, a necessidade de redefinir perpetuamente os parâmetros da profissão. “O rótulo ‘eclético’”, diz Jiro Takahashi, “não me diminui nem me valoriza”.
Matéria publicada na edição impressa #95 em junho de 2025. Com o título “Elogio da sombra”
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