
Flip, Literatura em língua francesa,
Sob outras lentes
O costa-marfinense GauZ’ chega ao país com De pé tá pago, etnologia da sociedade parisiense sob a perspectiva de seguranças de lojas populares
24jun2025 | Edição #95Passava um pouco das sete da noite de domingo, 25 de maio, quando o costa-marfinense GauZ’ adentrou o palco do Les SUBS, centro cultural às margens do rio Saône, em Lyon, para performar a penúltima leitura do festival Littérature Live, realizado na cidade francesa.
Com um roupão branco, braço levantado, palma da mão voltada à plateia, anunciou: “Essa é a cor menos discriminatória de toda a humanidade. A não ser por um acidente genético, todas as mãos são brancas. A partir de agora, quando eu levantar minha mão, vocês dizem ‘white label’”. GauZ’, então, repetiu duas vezes “White Label para beber/ e não mudar/ White Label para beber/ qual o sentido de mudar”, com a plateia iniciando os versos sempre que instada a fazê-lo.
Depois desse aquecimento, livre do roupão e usando um tapa-sexo de tecido estampado, GauZ’ leu “White label and blue note”. O texto, uma “meditação poética” sobre a experiência da escravidão transatlântica, foi inspirado pelo poema “Black label”, de Léon Gontran Damas (1912-1978), autor guianense que atuou no movimento artístico Negritude, ao lado de Léopold Sédar Senghor, Aimé Césaire e Paulette Nardal, nos anos 30, em Paris.
“E quem foi o primeiro homem negro a deixar de ser homem e começar a ser negro? O primeiro a compreender a nova fronteira das cores da pele? A descobrir que a sua o condenava agora a um inferno que ele ainda não era capaz de definir, mas cuja abjeção já sentia? […] Lamentamos, lamentamos e lamentamos em yorubá, fon, mina, congo, bacongo, akan, haúça, duala, diúla, bangala, lingala, baka, myene, fula, mandinga, wolof… África unida! Unidade africana no porão. E o traficante de escravos inventa a África”, diz GauZ’ na performance.
Invisíveis ao público em geral, os seguranças na França (assim como no Brasil) têm cor
“A África foi criada nos navios negreiros pelos brancos. Os escravos que partiram ao Brasil foram os primeiros africanos. Até então, éramos Igbo, Yoruba, Fon, Malenki, Mina… Até que um dia, chegam umas pessoas, te atacam, te colocam acorrentado no porão de um barco e dizem: ‘Vocês são escravos agora’. E todos se tornam africanos”, disse GauZ’, em conversa com esta repórter na tarde desse mesmo domingo, horas antes da performance no Littérature Live.
Organizado pela Villa Gillet — espaço dedicado à literatura contemporânea em Lyon —, o festival realizou neste ano uma parceria com a Festa Literária Internacional de Paraty como parte da Temporada Brasil–França, que incluiu a participação dos brasileiros Eliane Brum e Pedro Cesarino. Em contrapartida, o próprio GauZ’ estará em Paraty em julho, para uma conversa com o escritor e músico burundês Gaël Faye, autor de Pequeno país (Carambaia, 2023).
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Escritor, fotógrafo, jornalista, roteirista, diretor de documentários e, em breve, também músico — sua publicação mais recente, Les portes, ganhou uma versão em disco que será lançada em setembro —, Armand Patrick Gbaka-Brédé, o GauZ’, chega ao Brasil com uma década de atraso. “Mal posso esperar essa visita”, diz, sorrindo. “Infelizmente, vão me pedir para falar muito. Dizer coisas sobre mim. Queria somente ouvir os outros. Estou ansioso para ir ao Brasil e ver todos aqueles irmãos. Conhecer esse país inventado. Em De pé tá pago, escrevo sobre isso. Deus criou o homem, mas os portugueses criaram a mestiçagem.”
Lançado pela editora Ercolano, De pé tá pago, primeiro livro de GauZ’, foi premiado em 2014 com o Prix des Libraires Gibert Joseph. Em 2023, sua versão em inglês (Standing Heavy) apareceu na prestigiosa shortlist do International Booker Prize, projetando seu autor na vanguarda da literatura contemporânea.
Mas, mesmo na França, poucas editoras estavam dispostas a bancar essa “etnologia de Paris”, que GauZ’ se recusa a classificar como romance — “trata–se de uma nova literatura”. “Quando terminei [De pé tá pago], duvidava que os editores fossem compreender a estrutura de texto que escolhi, com fatos históricos e políticos representados em pequenas cenas cotidianas, compondo uma grande narrativa, como no cinema. Tanto que o deixei de lado e comecei a escrever outra coisa”, diz. “Mas as pessoas pressionaram para que eu publicasse. Segundo elas, a obra era genial. Decidi, então, mandar às três principais editoras francesas: Gallimard, Actes Sud e Le Seuil.”
‘Os africanos não são uma massa, como se diz na França. Somos afetados por coisas diferentes’
Da Gallimard, GauZ’ jamais recebeu notícias. “Achei que tinha mais chances de a Actes Sud entender o livro, pois eles têm sul no nome, mas a resposta foi: ‘As notas que você encaminhou são ótimas, agora escreva um romance’. Já na Le Seuil, o editor disse: ‘Cara, teu manuscrito é incrível, mas não tenho uma coleção de títulos africanos como a Gallimard para publicar seu livro’”, lembra GauZ’. “Veja bem, repliquei, a literatura não tem cor, e enviei um longo texto sobre a cor da literatura, lembrando de sul-americanos etc. O idiota me retornou pedindo autorização para transformar o artigo numa coluna. Respondi: ‘Foda-se!’.”
Talvez De pé tá pago continuasse guardado na pasta de um notebook, não fosse um amigo de GauZ’ tê-lo apresentado ao editor Benoît Virot, da Le Nouvel Attila (atualmente parte do grupo Seuil). Desde então, o costa-marfinense publicou outros quatro livros: Camarade papa (2018), que narra as experiências de um europeu na África e de um africano na França, com cem anos de diferença; Black Manoo (2020), sobre um junkie que deixa a cidade de Abidjan para viver em Belleville, mesmo bairro onde GauZ’ mora em Paris; Cocoaïans: Naissance d’une nation chocolat, crítica à cultura do cacau em seu país natal; e Les portes (2024), sobre os “sans papiers” (sem-papéis), como passaram a ser chamados os clandestinos na Europa.
Duas gerações
Em De pé tá pago, GauZ’ dá protagonismo aos seguranças que atuam em grifes famosas, desde a concorrida unidade da multimarcas de cosméticos Sephora, na avenida Champs Élysées, à popular varejista de roupas Camaïeu, a partir da experiência de duas gerações de costa-marfinenses.
A primeira, nos anos 60-80, vivencia o que o autor descreve como a “idade do bronze”, quando africanos e caribenhos eram bem-vindos à França. “Nessa época, os brancos precisavam de braços. Na verdade, o problema com os brancos é que eles sempre precisaram dos braços de uma força estrangeira, não é? Queria situar essa evolução, cuja perspectiva permanece a mesma ao longo do tempo”, explica.
A segunda geração é a do próprio GauZ’. São as pessoas que migraram para a Europa nos anos 1990-2000, cujo destino foi radicalmente alterado com os ataques às torres gêmeas, em Nova York, em 11 de setembro de 2001, quando teve início o que o escritor batizou de “idade do chumbo”.
Invisíveis ao público em geral, os seguranças na França (assim como no Brasil) têm cor. A poderosa cena que abre o livro descreve essa longa fila de dezenas de homens pretos, vestidos de preto, aguardando para receber orientações de seu novo empregador.
Aqueles que já têm alguma experiência na profissão sabem o que os aguarda nos próximos dias: ficar em pé o dia inteiro em uma loja, repetir a tediosa proeza do tédio, todos os dias, até receber o pagamento no final do mês. De pé, tá pago.
Um “olhar treinado”, segue GauZ’, identifica todas as nacionalidades reunidas nesse ambiente. Mas, se isso não for suficiente, basta acionar a audição:
Na boca de um africano, os sotaques presentes no francês são indícios de origem tão confiáveis quanto o cromossomo 21 excedente no diagnóstico da síndrome de Down ou um tumor maligno no diagnóstico de câncer. Os congoleses modulam, os camaroneses cantam, os senegaleses salmodiam, os marfinenses sincopam, os benineses e os togoleses oscilam, os malineses falam numa gíria de pretos…
Essa abertura, explica GauZ’, foi pensada para demonstrar que ele é “um grande observador”. “Como mais tarde faria cenas curtas e engraçadas, eu queria mostrar que sou um estilista da escrita. Uma vez dito isso, as pessoas te deixam em paz depois. Antes de se tornar Picasso, você começa a imitar Velázquez. Você domina a técnica para poder fazer o que quiser”, afirma.
GauZ’ é um multiartista para quem a literatura foi a primeira forma de expressão
A escolha também revela sua investida contra o viés ocidental de que pretos são todos iguais (outra mania tipicamente brasileira). “Comecei zombando de nós mesmos para dizer: ‘Olha, somos negros, é verdade, mas somos diferentes no estilo, na maneira de falar, mesmo que todos tenhamos mais ou menos o mesmo sonho naquele momento’”, explica GauZ’. “Os africanos não são uma massa, como se diz na França. Mesmo que haja uma base cultural comum, somos afetados por coisas diferentes.”
De pé tá pago alterna capítulos dedicados a desvelar a história dos personagens e outros, batizados com os nomes das lojas onde trabalham, em que seguranças anônimos descrevem frequentadores e vendedores em verbetes irônicos, a partir de características diversas. Na Sephora Champs-Élysées, por exemplo, vendedoras de perfumes são chamadas de “monis”:
MONI. Por ter de se banhar o dia inteiro em todas aquelas fragrâncias, toda aquela mistura de perfumes, a vendedora da Sephora acaba se tornando uma MONI: Mulher com Odor Não Identificado.
Em razão dessas observações, quando o livro saiu na França, houve quem o comparasse a uma “etnologia às avessas”. “Isso me deixou muito chateado”, diz GauZ’. “Durante séculos, eles têm visto as pessoas como formigas. Escrevem monografias sobre elas. Quando você olha para eles, consideram etnologia, mas às avessas, ou seja, no lugar errado. De cabeça para baixo. Que se fodam! Minha perspectiva é claramente etnológica. Uma etnologia sincera, franca, bem escrita e engraçada, que se aprofunda nos detalhes. Dou muita importância a isso porque as coisas mais poderosas estão nos detalhes.”
Outra crítica contundente está na desconstrução de estereótipos ligados ao continente africano, como os panos estampados, tema de um fervoroso discurso anticolonial de uma das personagens. “Não me importo que esses tecidos sejam usados como item de moda, mesmo que ridiculamente coloridos. Mas as pessoas precisam fazer escolhas estando bem-informadas”, diz GauZ’ — cujo estilo flerta com o punk, como demonstra o patch com o “A” do movimento anarquista costurado em sua jaqueta jeans.
“Se as pessoas querem se exibir em um ‘tecido africano’, precisam saber de onde ele vem, o que representa politicamente e a violência envolvida”, continua o escritor. “Nas línguas que falamos, existem as três cores primárias: vermelho, verde, azul, além de preto e branco. Cores excepcionais, como laranja, são designadas por frutas, flores, animais. Na floresta ou na savana, quase não há flores. Tudo é verde, escuro. O céu não é azul, pois está sempre cheio de nuvens. Minha avó, por exemplo, amava cores escuras. Para ela, o que aqui chamam de tons ‘alegres’, como o amarelo, eram difíceis de usar.”
Multiartista
Nascido em Abidjan e criado em vilas próximas à capital econômica e maior cidade da Costa do Marfim, GauZ’ é um multiartista para quem a literatura foi a primeira forma de expressão. “Comecei pelos clássicos: li Zola, García Lorca, Victor Hugo, Céline, Ahmadou Kourouma… Lia o que encontrava na biblioteca da escola, desde quadrinhos e fábulas infantis a obras adultas. Tinha a necessidade de ler tudo.”
Seus primeiros textos foram as cartas enviadas à mãe no período em que estudou num colégio interno. “No início, escrevia coisas como: ‘Querida mamãe, cheguei ao internato…’. Com o tempo, cansei. Entendi que aquilo não fazia sentido. Minha mãe é muito divertida, e eu amava fazê-la rir, então, passei a inventar histórias”, diz. “Aparentemente, elas faziam sucesso pois, quando eu ia para casa, até os vizinhos comentavam o conteúdo dessas cartas, que minha mãe lia em voz alta, para todo mundo. Eles morriam de rir.”
A fotografia, por sua vez, foi adotada sob a influência do pai, que tinha uma câmera fotográfica. “Meu próximo livro será de retratos de pessoas mais velhas em preto e branco. Ao contrário da Europa, onde se celebra a juventude, na África veneramos nossos velhos, mas nos esquecemos deles porque a expectativa de vida de alguns lugares não passa dos cinquenta anos”, afirma. “Por isso, viajei por diversas pequenas cidades para fotografar a velhice. O livro terá imagens, textos e uma narrativa sobre minha avó, primeira pessoa velha que conheci.”

Ao contrário de outros colegas de faculdade, GauZ’ optou por finalizar a graduação e o mestrado em bioquímica em Abidjan antes de se aventurar em Paris, onde se tornou um “indocumentado” três meses após aterrissar na capital francesa, em 1999. Da experiência de ser um “sem-papel” até conseguir sua permissão de residência, fez de tudo: foi telemarketing, segurança de shows de música eletrônica, entrevistador para a produção de um filme, roteirista, repórter fotográfico, babá, segurança de uma grife de perfume, jardineiro, fotógrafo de moda, diretor de curtas-metragens, entre outras muitas atividades.
Dividindo-se hoje entre Costa do Marfim, França “e a poltrona do avião”, ao mesmo tempo que grava a versão musical do livro Les portes, GauZ’ finaliza uma fantasia, a ser publicada no primeiro semestre de 2026, na qual duas meninas gêmeas, mestiças, tentam salvar o planeta de uma catástrofe ambiental. “Elas têm de lidar com o que chamo de ‘grande inversão’: o polo Norte se torna o polo Sul; países pobres se tornam ricos; neva em Dacar e faz sol na Groenlândia. Coisas assim. Já o próximo será sobre um escritor que viaja com o presidente da França e acredita que deve matá-lo.”
Sobre a facilidade de transitar por tantas expressões artísticas, GauZ’ afirma não ver nada de especial. “Não há equivalente para ‘arte’ em nossas línguas. Não precisamos inventar uma palavra quando estamos imersos nela”, diz. “Se a máscara aparece na praça da aldeia, há músicos tocando percussão. A máscara é música, é dança, é canto, é escultura e design de moda. Para mim, a máquina fotográfica e a caneta são apenas ferramentas. Quando estou tirando uma foto, sei que estou escrevendo. Quando estou escrevendo, sei que estou fazendo filmes. É mais ou menos assim que funciona minha relação com a arte.”
Matéria publicada na edição impressa #95 em junho de 2025. Com o título “Sob outras lentes”
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