A autora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie (Stephen Voss)

Literatura, Literatura Negra,

A hora da estrela

Apontado como ‘lançamento do ano’ por publicações internacionais, novo romance de Chimamanda Ngozi Adichie, A contagem dos sonhos, destrincha o relacionamento entre mulheres

10mar2025 • Atualizado em: 11mar2025

Chimamanda não está apresentável. Não para abrir a câmera durante a entrevista. “Desculpe, mas estou parecendo maluca”, diz a escritora, ao final de quase uma hora de conversa.

Difícil imaginar a nigeriana “parecendo maluca”. Chimamanda está sempre impecável. Talvez a bagunça fosse em casa, o que seria compreensível num lar onde vivem dois bebês, gêmeos de dez meses, e uma menina de nove anos. Em especial se a mãe desse trio é um ícone pop, a duas semanas de lançar seu livro, quando conversou por videochamada com a Quatro Cinco Um.

Ainda que tudo o que ela faça seja um acontecimento, trata-se de um momento especial. A contagem dos sonhos é seu primeiro romance há mais de uma década – período no qual publicou ensaios, manifestos, memórias e histórias infantis. O anterior, Americanah (2013), tornou Chimamanda best-seller mundial, com mais de 2 milhões de cópias vendidas – um milhão apenas nos Estados Unidos. 

A contagem dos sonhos segue caminho semelhante. Apenas dois dias após chegar às livrarias, em 4 de março, apareceu entre as dezesseis obras semifinalistas do Women’s Prize, que consagra a melhor ficção escrita por mulheres – as finalistas serão divulgadas no início de abril. A cobertura do “lançamento do ano” incluiu capas das edições britânica e espanhola da Harper’s Bazaar, entrevistas para programas de TV e jornais (The Guardian, The Telegraph e The New York Times entre eles), trechos exclusivos na New Yorker, além de uma turnê por seis cidades estadunidenses, mais um encontro em Toronto, no Canadá, e outros dois em Londres. 

Na Nigéria, onde ela é uma superstar, a primeira tiragem esgotou em menos de uma semana, inspirando memes que mostram leitoras sentadas na calçada em frente às suas casas, aguardando a chegada do livro pelo correio. “O entusiasmo por A contagem dos sonhos tem sido impressionante”, disse Eghosa Imasuen, cofundador e diretor executivo da Narrative Landscape Press (editora que a publica no país), ao jornal The Lagos Review. “É gratificante e, para ser sincero, um pouco assustador testemunhar o amor pelo trabalho de Chimamanda.”

A crítica, por ora, não é unânime. O jornal britânico The Times compara o “magnífico” romance de Chimamanda ao clássico de Leon Tólstoi, chamando-o de “um Guerra e Paz feminista”. A agência Associated Press, por sua vez, descreve A contagem dos sonhos como “vibrante”. Para o Guardian, “a autora nigeriana-americana retorna com uma exploração astuta e comovente da experiência feminina”

Na contramão, o portal de entretenimento estadunidense Vulture diz: “Na melhor das hipóteses, o livro apresenta uma imagem das relações de gênero do tipo Os homens são de Marte, as mulheres são de Vênus; na pior, é uma visão suavemente regressiva dos americanos progressistas, que, nessas páginas, são caricaturas bidimensionais esboçadas a partir de pontos de discussão conservadores, em vez de personagens totalmente formados que se espera encontrar na ficção literária”. 

A crítica da Vulture destaca ainda a centralidade de relações heterossexuais, lembrando que a autora foi acusada de transfobia em passado recente, e a falta de matizes no comportamento masculino.  

É verdade que Chimamanda enfatiza a hipocrisia do que ela chama de “liberais”, em especial de pessoas brancas. E os homens com quem as personagens têm relacionamentos amorosos são em sua maioria bem babacas. Mas ao afirmar que “deveríamos esperar mais de uma ficção feminista”, a resenha da Vulture toca em algo que Chimamanda reiteradamente diz não estar disposta a fazer.    

Alçada a estrela global após a cantora Beyoncé reproduzir na canção “Flawless” um trecho da conferência Sejamos todos feministas, realizada numa edição do TEDx (2012), em Londres, Chimamanda costuma expor seu incômodo por ser mais conhecida como ativista do que como romancista. 

“Quero ser uma contadora de histórias que por acaso é feminista. Não quero ser uma feminista que escreve romances”, disse ela, em uma conversa que tivemos em 2019, num estúdio no subúrbio de Washington, onde Chimamanda seria fotografada para a capa de uma revista brasileira. 

“Feminista é um rótulo que me deixa feliz, e que assumo e amo. Não estou me afastando dele nem nada disso, mas me considero uma artista. Sou uma pessoa criativa e não quero ser limitada por esse lugar-comum”, explica. “Algumas feministas ferozes escrevem e-mails raivosos para mim porque acham que uma história não foi feminista o suficiente, sabe? Mas não posso abordar minha ficção de maneira ideológica. Não posso escrever histórias nas quais todas as mulheres são perfeitas e fortes, porque o mundo não é assim. Então, às vezes, essas duas coisas se chocam.” 

As quatro protagonistas de A contagem dos sonhos são essas tais mulheres comuns. Ou como Chimamanda afirma, são variações dela mesma. “Todas as minhas personagens são eu. Incluindo os homens”, diz, rindo. Na faixa dos quarenta anos, as nigerianas Chiamaka, Omelogor e Zikora vivem entre o continente africano e os Estados Unidos. 

A primeira, Chia, é uma aspirante a escritora mimada e rica, que se desloca pelo mundo compondo narrativas de viagem, sob a perspectiva de uma africana, enquanto busca pelo homem ideal. Sua melhor amiga, Zikora, divide-se entre o desejo de ter a família perfeita e a bem-sucedida carreira como advogada. Prima de Chiamaka, Omelogor é a única que mora na Nigéria, onde enriqueceu trabalhando no sistema financeiro e coordenando esquemas de corrupção.

A única não nigeriana, tampouco de classe privilegiada, é Kadiatou. Nascida na Guiné Conacri, ela trabalha como faxineira na casa de Chiamaka, em Maryland (EUA), e limpando quartos em um hotel de luxo. Nesta função, será vítima de uma violência, com consequências sentidas pelo quarteto.

Kadi é também a única cujas bases não partem de experiências pessoais de Chimamanda. Em uma nota ao final do livro, a autora explica que se trata de uma personagem livremente inspirada em Nafissatou Diallo. Em 2011, a guineense, que atuava como camareira no Sofitel de Nova York, acusou o então chefe do FMI, o francês Dominique Strauss-Kahn (DSK), de tentativa de estupro numa suíte.

“Você pode falar qualquer coisa sobre as outras [personagens] e não me importo, mas deixe Kadiatou em paz!”, defende Chimamanda. “A ideia de uma mulher que sofreu tanto, e que não tem nenhum poder, pois não tem educação, dinheiro, me fez sentir responsável por ela. Ao mesmo tempo, tive cuidado em torná-la humana. Não quero que seja vista como uma pessoa perfeita, porque ninguém é. Reescrevi os capítulos sobre Kadiatou muitas vezes.”      

O romance, afirma Chimamanda, é o primeiro em que ressalta as conexões entre mulheres. Por meio dessas ligações, a escritora trata de temáticas recorrentes em sua trajetória – como imigração, religião, diferenças geracionais e culturais, racismo, política, corrupção e pan-africanismo –, tendo como pano de fundo a pandemia de covid e um interesse pela indústria da pornografia. Ao fim da escrita, Chimamanda diz ter se dado conta também da ênfase nas interações entre mães e filhas, algo que revela não ter sido “nada consciente”. 

Não à toa, Chimamanda dedica o romance à sua mãe, Grace Ifeoma Adichie, que morreu em 2021. “Não gosto de falar sobre isso porque me emociona”, explica. “Outro dia, olhei para a dedicatória e comecei a chorar sem parar. Decidi que sempre que abrir A contagem dos sonhos, vou pular essa página.”

A morte inesperada de Grace ocorreu poucos meses após a perda de seu pai, James Adichie, em 2020, experiência detalhada no ensaio Notas sobre o luto. “Menininha do papai” e “filha da minha mãe” são algumas das frases que Chimamanda costuma utilizar para se referir a intensa convivência e herança familiar.

Primeiro professor de estatística do país, James atuou na Universidade da Nigéria, em Nsukka, onde Grace foi a primeira mulher a trabalhar como administradora. Quinta de seis filhos, Chimamanda cresceu no ambiente protegido do campus, onde morou até se mudar para os Estados Unidos, após abandonar o curso de medicina, aos 19 anos. 

Era Grace quem cobrava da filha a boa aparência. “Quando éramos crianças, minha mãe dizia para eu sempre olhar no espelho antes de sair para me certificar de que estava apresentável”, contou Chimamanda em 2016, nos bastidores de um evento do jornal Le Monde no museu do Quai Branly, em Paris. Na ocasião, falávamos sobre o apreço da protagonista de Americanah por moda, reflexo de um gosto que a própria Chimamanda assumiu somente após atingir “um certo nível de sucesso”. 

“Na Nigéria, as pessoas não criticam tanto a aparência das mulheres quanto no Ocidente”, afirma. “Lá, se você é uma intelectual e usa salto alto, não é tão ruim quanto nos Estados Unidos, na Inglaterra e na Europa Ocidental, onde existe esse ideal de ter que ser uma coisa só. Quando tinha uns 30 anos, cansei de fingir. Acho que isso surge com a autoconfiança de envelhecer.”  

Três anos depois, no reencontro na capital estadunidense, a escritora relatou a conversa que acabara de ter com a mãe. “Ela me falou: ‘Você está com cara de cansada. Estou preocupada em como você vai sair nas fotos. Por que você não descansou? Não dá para você adiar isso para poder descansar? Preciso que você fique perfeita’. Eu disse: ‘Mamãe, ainda não fiz a maquiagem. Estou cansada, mas vou ficar bem’.”

Essas recordações vieram à tona ao ler um trecho de A contagem dos sonhos, no qual a personagem confirma estar “apresentável” antes de atender ao telefone. “Engraçado você evocar essas situações porque pensei nela [na mãe] ontem justamente por isso”, diz Chimamanda. “Uma equipe veio a minha casa me entrevistar, e, pensei: Quer saber? Não vou usar sapatos porque estou cansada. Então, lembrei que se minha mãe estivesse aqui, ela diria: “Vá pegar seus sapatos e fique apresentável!”.

Quem escreveu esse texto

Adriana Ferreira Silva

Jornalista, escritora e palestrante, trata de temas como desigualdade de gênero e liderança feminina.

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