
Livros e Livres,
Uma (sub)cultura da noite
Com pesquisa minuciosa, dois livros documentam como a comunidade LGBTQIA+ forjou seu próprio ethos queer de contestação nas pistas
01jun2025 • Atualizado em: 05jun2025 | Edição #94Junho é celebrado, internacionalmente, como o mês do orgulho da diversidade sexual e de gênero. Neste mês, é rememorada a Revolta de Stonewall. No dia 28 de junho de 1969, em um bar com esse mesmo nome, o Stonewall Inn, em Nova York, uma massa de pessoas latinas, negras e queers das classes populares, cansadas de serem humilhadas pelas forças de segurança do Estado, se levantaram contra uma batida policial.
Naquela noite elas tinham saído de suas casas não exatamente para fazer uma revolução e criar um marco icônico para o ativismo LGBTQIA+ no mundo todo. Buscavam, como em várias outras noites, possibilidade de existência e de diversão em uma sociedade profundamente preconceituosa. Não por outra razão, só podiam sair, de modo mais livre, nos períodos noturnos, quando as áreas centrais estavam mais esvaziadas.

Além disso, saíam para dançar e curtir a noite no bairro do Greenwich Village não porque fosse território friendly, para usar uma expressão atual, mas porque a região era considerada degradada, escura e perigosa demais para as famílias tradicionais e “cidadãos de bem”. Mesmo com a constante violência presente, foi nesses territórios que emergiu e se cultivou, por gerações durante a segunda metade do século 20, uma subcultura LGBTQIA+ muito associada à pista de dança, à música eletrônica, ao uso de drogas e à liberdade sexual.

Nesse sentido, é difícil imaginar uma comunidade para quem a cultura da noite seja tão central quanto a LGBTQIA+. Bares, boates, palcos, baladas, territórios de pegação e de dança se tornaram não só entretenimento e diversão, mas um locus de descoberta, afirmação e orgulho. Do confinamento em inferninhos escondidos em guetos escuros e mal falados produziu-se um ethos queer de contestação e uma radicalidade criativa que se expressou pelas mais distintas linguagens.
O meme atual “amo os gays, LGBT povo animado” parece, nesse caso, fazer todo o sentido. Privados de conviver em espaços públicos mais amplos da sociedade, essas pessoas tiveram de buscar e construir territórios alternativos e semipúblicos de sociabilidade.
Trajetórias cruzadas
Dois livros recentemente lançados são registros históricos preciosos desse fenômeno em nosso país. Ambos mostram que não nos faltaram, em tipos e variedades singularmente brasileiras, exemplos de Stonewalls em diversas cidades. Babado forte (Ubu), de Erika Palomino, e Bate-estaca (Veneta), de Camilo Rocha, são dois títulos que se aproximam não só pelas trajetórias dos autores que se cruzaram em diversos momentos, mas pelo esforço comum de documentar, analisar e divulgar a cultura da noite.
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Ainda que haja diferenças importantes em cada um dos projetos, ambos são frutos de pesquisas históricas minuciosas, com uma diversidade marcante de acervos e fontes, a partir de um olhar bem informado e de uma observação participante dos autores que estiveram intimamente implicados nas cenas sobre as quais escrevem. Também vale destacar a escrita envolvente e direta de dois jornalistas com larga experiência.
Lançado originalmente em 1999, Babado forte logo se tornou um clássico. Primeiro, porque tratou de um tema pouco visto em livros quando quase não havia trabalhos de pesquisa sobre tribos urbanas na antropologia acadêmica. Segundo, por propor uma abordagem ampla e quase etnográfica desses espaços da noite no eixo Rio-São Paulo, dois centros urbanos que serviram de palco para culturas pulsantes.
Agora o livro vem a público em uma reedição primorosa, com olhar ampliado para outros territórios — mudança bem-vinda por ajudar a pensar o Brasil a partir de outros ângulos e escapar da redução sudestina de país.
Como leitores, vamos sendo guiados por um mosaico de fervos como se fôssemos participantes diretos
O risco de uma obra dessa natureza, que tem a ousada pretensão de cobrir enorme diversidade de lugares, personagens e festas, é tornar-se enciclopédica e cansativa para quem lê. Há, ainda, o risco de ter lacunas que comprometam a visão de conjunto por abrir tanto a lente angular. Mas Palomino conseguiu desviar bem desses obstáculos. O livro é composto por textos menores, em linguagem atrativa, com imagens e fotografias impactantes. Mérito também do trabalho editorial impecável. O efeito é fabuloso: como leitores, vamos sendo guiados por um mosaico de acontecimentos e fervos como se fôssemos participantes diretos.
Já Bate-estaca faz uma abordagem menos ampla de territórios e mais profunda da cena paulistana. Em crônicas bem encadeadas, vamos transitando entre as margens e entranhas da São Paulo underground de 1988 até 2005. Com um foco na cena da música eletrônica, é possível acompanhar as mudanças intensas e rápidas de uma cidade que se construiu a partir da mistura e, por que não, do fervo. A estrutura passa pelas casas mais conhecidas e badaladas, narra a história de personagens que se tornaram mitos da noite paulistana e é recheada de curiosidades e detalhes que só quem esteve nas pistas poderia trazer.
Ainda que com focos e arcos diversos em suas abordagens, os dois autores conseguem alargar a compreensão de uma subcultura cujas fronteiras não são definidas por identidades fixas e estreitas. Moda, música, corpo, linguagem, montação e performance são articuladas para compreendermos uma das coisas mais intrigantes e sedutoras que marcam a comunidade LGBTQIA+ e outras tribos que se forjaram nas pistas: a capacidade de transformar curtição em orgulho, pertencimento e muita luta para ocupar e hackear o mainstream.
Matéria publicada na edição impressa #94 em junho de 2025.
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