O escritor Keigo Higashino (Divulgação)

Literatura japonesa,

Suspense bem calculado

Adaptado às telas em diversos países, romance policial de Keigo Higashino envolve leitor com um crime ocultado por um gênio da matemática

01maio2025 • Atualizado em: 30abr2025 | Edição #93

Há uma famosa conceituação feita por Alfred Hitchcock, em conversa com François Truffaut, que diferencia a surpresa do suspense em um thriller: 

Suponhamos que há uma bomba debaixo dessa mesa. Nada acontece, e então, de repente, ‘bum!’ Há uma explosão. O público fica surpreso, mas antes dessa surpresa, foi uma cena absolutamente comum, sem nenhuma consequência especial. Agora, uma situação de suspense: há uma bomba debaixo da mesa e o público sabe disso. O público está consciente de que a bomba vai explodir à uma hora e há um relógio na sala. O público pode ver que faltam quinze minutos para a uma. Nessas condições, a mesma situação inócua torna-se fascinante porque o público está participando da cena. 

Quando aplicado às tramas de investigação policial, um exemplo clássico dessa inversão estrutural era a popular série norte-americana Columbo, na qual cada episódio começava mostrando quem era o criminoso e como o crime era executado, restando ao espectador acompanhar como o detetive interpretado por Peter Falk faria para desconstruir o álibi aparentemente perfeito dos culpados.

É exatamente nessa tradição que se enquadra A devoção do suspeito X, romance policial do japonês Keigo Higashino. Lançado originalmente em 2005, o livro já foi transposto para o cinema inúmeras vezes, tendo ganhado uma adaptação japonesa, uma sul-coreana, uma chinesa e duas versões indianas, a mais recente pela Netflix em 2023 — em breve deverá ganhar também sua versão norte-americana. É a primeira de uma série de histórias policiais que têm em comum a figura de Manabu Yukawa, um professor universitário de física apelidado “professor Galileu” por seus alunos, que presta consultoria ao detetive Kusanagi, seu velho amigo de faculdade. Yukawa, porém, não é o protagonista do romance, e sim uma figura que entra no enredo a partir da metade do livro, tangenciando a investigação, percebendo aquilo que a polícia — e o leitor — ainda não perceberam, e alterando os rumos da trama com pequenas sugestões.

Não faltam reviravoltas, conforme a trama vai revelando um mistério oculto dentro de outro

O romance acompanha dois personagens distintos. A primeira é Yasuko Hanaoka, uma mãe solteira que trabalha em uma loja de bentô, tradicional marmita japonesa, e que vive com sua filha adolescente Misato. O segundo é seu vizinho, Tetsuya Ishigami, um gênio da matemática que leva uma vida modesta como professor colegial, ensinando a matéria para alunos desinteressados. Ishigami é secretamente apaixonado por Yasuko, motivo que o faz ir todo dia à loja de bentô sem dizer nada além de seu pedido de refeição. Ela, entretanto, não percebe a devoção de seu vizinho.

Tudo muda quando entra em cena o ex-namorado abusivo de Yasuko, um oportunista chamado Togashi. Após muito tempo, ele reaparece querendo que ela lhe dê dinheiro para pagar suas dívidas, e sem aceitar uma resposta negativa, a situação foge do controle e acaba descambando para agressões e violência. Para proteger a filha, Yasuko estrangula Togashi na sala de casa. Depois, ao dar-se conta da própria situação, entra em desespero com a possibilidade de ser presa. 

Ainda que seja visivelmente um caso de legítima defesa, a possibilidade de se alegar isso não parece ser levada em conta pelos personagens, e para o leitor desacostumado às leis japonesas fica um tanto obscuro o quanto ela prevê ou não esse tipo de defesa jurídica. Para a salvação de Yasuko e da filha, seu vizinho Ishigami escutou tudo do apartamento ao lado, e bate à porta oferecendo-se para ajudá–las: ele promete que irá se desfazer do corpo e construir um álibi perfeito para que mãe e filha não sejam associadas à morte de Togashi.

Lacunas

De saída, isso é tudo o que o enredo entrega ao leitor, e parece já ser o bastante: no capítulo seguinte, acompanhamos a descoberta de um corpo com o rosto esmagado e sem digitais à beira do antigo rio Edo, e o início das investigações do detetive Kusanagi. Porém, há lacunas mesmo para o leitor. Como e por que Ishigami se desfez do corpo daquela forma? Por que plantou as provas que plantou? E como conseguiu um álibi tão perfeito para Yasuko e a filha? 

Vendo-se num beco sem saída, o detetive Kusanagi recorre ao seu antigo colega de faculdade, o físico Yukawa — que se interessa pelo caso ao ouvir o nome de Ishigami, um antigo colega com quem perdeu contato, que era considerado um gênio e que Yukawa não entende por que se contentou com a vida de professor colegial. Parte do mistério, tanto para Yukawa quanto para o leitor, é entender o modo como Ishigami organizou a ocultação de um crime como se fosse uma questão matemática.

De modo geral, uma potencial falha em romances policiais é criar um crime cuja execução pareça tão impossível que exija do leitor um excesso de suspensão de descrença para que acredite que o assassino tenha tido tempo, habilidade ou oportunidade para cobrir seus passos, de uma forma necessariamente engenhosa que justifique o mistério em si. Em A devoção do suspeito X ocorre o contrário: aqui o acobertamento do crime é tão convincente, e o álibi de Yasuko e sua filha tão bem construídos, que, sem que haja nada que as ligue diretamente ao crime, causa estranheza a insistência do investigador em seguir suspeitando delas, senão por necessidade ou conveniência de movimentar o enredo.

Ou talvez o que esteja em operação aqui seja uma questão de diferenças entre a cultura japonesa e a deste leitor ocidental, desacostumado à ideia de que um policial seja realmente assim, movido por um profundo senso de dever e busca pela verdade. Claro, essa era a tradição dos detetives ficcionais de outrora, como Sherlock Holmes e Poirot, mas estes habitavam uma época menos cínica e desiludida. De todo modo, nada disso se coloca no caminho de um enredo bem arquitetado como o do romance de Higashino. Não faltam reviravoltas, conforme a trama vai revelando um mistério oculto dentro de outro e oferecendo um segundo desafio aos investigadores. Com isso, Higashino garante o elemento essencial a todo bom romance de mistério: conseguir prender o leitor da primeira à última página.

Editoria com apoio Japan House São Paulo

Desde 2019, a Japan House São Paulo realiza em parceria com a Quatro Cinco Um uma cobertura especial de literatura japonesa, um clube de leitura e eventos especiais.

Quem escreveu esse texto

Samir Machado de Machado

Escritor, é autor de O crime do bom nazista (Todavia).

Matéria publicada na edição impressa #93 em maio de 2025. Com o título “Suspense bem calculado”