

Literatura japonesa,
Nada de interessante acontece nunca
Romance de estreia de Hiroko Oyamada fala caoticamente de um mundo de trabalho sem fim — e sem finalidade
01mar2025 • Atualizado em: 26fev2025 | Edição #91 marUm pessimista e um otimista entram num bar. O pessimista vira para o otimista, e diz: “está tudo tão horrível que não tem como piorar”. O otimista responde: “Claro que tem!”. A piada é judaica, mas poderia ser budista. Kafka poderia ser japonês? É o que parece: não é ele a srta. Ushiyama, recém-contratada pela Fábrica para trabalhar no Setor de Impressão, destruindo documentos sete horas e meia por dia? Não sem antes ter contado, na entrevista para a vaga, que tinha se formado em letras, e que gostaria de trabalhar com a “criação de mídias impressas”. A piada é japonesa, calma e desesperadora. Poderia ser judaica, poderia ser Kafka.
Em A Fábrica, romance de estreia de Hiroko Oyamada, um engenheiro formado que perdeu o emprego agora é pago para revisar, entre outras inutilidades, o manual de bem-estar corporativo “Dando adeus às minhas e às suas angústias!”, que traz duas almôndegas sorridentes na capa. Ele está sempre pingando de sono quando lê, e os textos parecem nadar à sua frente. Não dá nem para reclamar que a vaga talvez fosse mais adequada para a outra, a formada em letras, e que a empresa desperdiça seus talentos — porque já sabemos o quanto o desperdício humano (e não só) é recorrente no mundo do trabalho. Mas melhor não falar alto, vai que o otimista vem nos consolar.

Para todo mundo que já trabalhou em escritório e sentiu a alma escorrer pelo nariz, aqui vai um minuto de conversinha de repartição da Fábrica:
“Escuta só, Irinoi. Meu irmãozinho não passou no teste de novo!” “Nossa. Teste para cabeleireiro, não?” “Ah, era para estilista de alguma coisa. É um idiota mesmo! E mamãe comprou mais uma caixa de DVDs. De séries coreanas.”
Soa a música de elevador no fundo. Na Fábrica, ninguém usa mais que meio neurônio. E isso é ruim? A minha opinião é que depende.
É comum que os críticos que mais detestam um livro sejam os que melhor descrevem suas qualidades
Lendo o livro, comecei a pensar num paralelo entre a Fábrica e a religião. Vou longe, mas volto. A vida na Fábrica é quase inescapável: todo mundo acaba indo parar lá, e todo mundo deve ser grato à Fábrica, por mais despropositado que seja o trabalho (“Desde já agradeço por esta oportunidade” — resposta do chefe: “Sim, sim”).
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No mundo do alto catolicismo de alguns séculos atrás, qualquer cidadezinha europeia tinha as ruas escuras de tão grande a sombra dos muros que davam para os conventos e monastérios (estou pensando, por exemplo, na Florença do século 14, quando mais da metade das mulheres nobres eram enviadas para o convento).
A vida monástica era uma saída para muitas angústias: financeiras, familiares e, até mesmo, espirituais. As rotinas e regras a serem seguidas no monastério, os olhares de julgamento, as conversinhas de corredor e os silêncios impostos, a rigidez — tudo isso dá a impressão de que, trocando o vocabulário, devia haver muito em comum entre certos padres e certos gerentezinhos, e que a funcionária de crachá no pescoço de hoje é a freira de ontem.
Mas não é só pela mesquinharia humana que vale traçar esse paralelo. Nem tudo aqui é pequeno: o que interessa é que, na Igreja como na Fábrica, o estado de dissolução da individualidade, a rarefação do raciocínio é, se não necessariamente uma meta explícita a ser atingida, no mínimo um ideal suspenso no horizonte: aprender a não pensar, desapegar-se de si, dissolver-se no todo.
Algo a que a religião almeja, e que a Fábrica induz:
Pego folhas do meu contêiner e as enfio na fragmentadora. Absorta nessa tarefa, por um tempo esvazio minha mente.
Qual a diferença entre o vazio que é o fim de toda meditação e o da pasmaceira, do nível zero de atividade cerebral de qualquer aspone? Olhando de fora, é difícil de saber. Tudo depende. De fora, qual a diferença entre uma casa em construção e uma em ruínas?
Vazios
O romance me parece ter as duas formas de vazio; o vazio do peso e o vazio da graça, e a diferença entre eles nem sempre é clara. Imagino que as igrejas também tenham. Porque de fato A Fábrica seduz por ter alguma coisa desse sentimento oceânico de que falam as religiões, onde as fronteiras entre os indivíduos se desfazem, dando lugar ao grande todo.
A história é narrada por três personagens: a destruidora de documentos, o engenheiro revisor de textos e um biólogo, que abandonou a carreira acadêmica e agora organiza gincanas de caça aos musgos nas dependências da Fábrica, avisando para que tomem cuidado com o doido que anda à solta abaixando a calça de quem passa. Engraçado? É, deve ser. Quase não diferenciamos os narradores: a voz dos três soa igual, e a escrita faz o possível para nos confundir.
Ouvi uma espécie de assovio. Um som da Fábrica ou talvez o trinar de um pássaro. Ou o chiado de alguma panela com comida sendo preparada no restaurante?
Onde viemos parar? Um leitor indignado deixou a seguinte avaliação na Amazon: “Não sei o que acabei de ler, mas não é bom. Nada de interessante acontece. Nunca. Às vezes é difícil saber o que se passa. E então o livro acaba sem nenhum motivo. Idiota.” (Duas estrelas).
É muito comum que os críticos que mais detestam um livro sejam os que melhor descrevem suas qualidades — eles só não tinham se dado conta de que aquelas eram, na verdade, qualidades. Lá no século 19, um resenhista nova-iorquino de quem ninguém se lembra leu a estreia de Walt Whitman e disse que parecia um mendigo escrevendo. Enfim! Que sensível foi o crítico: percebeu que Whitman era um desterrado naquele mundo, que sua casa era o futuro.
E então, obrigada, comentarista MAURO (em maiúsculas, sem sobrenome). O livro é confuso, nada acontece, e nós também ficamos perplexos: em meio ao tédio da rotina surgem fantasias loucas, a fronteira entre pessoas e coisas é constantemente borrada, as distâncias não fazem sentido, nem a diferença entre fato e imaginação, ou entre os tempos — quinze anos passam sem a gente perceber —, entre o lixo e o alimento, o humano e o pássaro.
Mas é nessa indefinição, no despropósito dos gestos, na inutilidade do trabalho, que vemos não só sarcasmo e cinismo diante do mundo corporativo, mas também uma espécie de delícia, uma vontade, nossa e dos personagens, de que nada mude, de se deixar levar. Pablo Morales, o nadador olímpico, descreveu a sensação de nadar como “perder-se em intensidade concentrada” — serve de descrição, bem ou mal, de todo trabalho repetitivo e sem ego; me parece servir de descrição do que é rezar.
Guloseimas
Em Querida konbini, de Sayaka Murata (Estação Liberdade, 2018), best-seller que precede este na lista de sucesso de autoras estreantes japonesas, a personagem principal tem uma visão extática, semelhante às das freiras séculos atrás. Só que a ligação dela não é com Deus, mas com sua querida loja de conveniência, a konbini. A cena é de uma inocência alegre e estonteante:
A voz da konbini preenche todo o meu corpo, e não para. Eu nasci para ouvir essa Voz. […] Eu compreendi tudo. É que, ainda antes da minha condição de ser humano, sou uma funcionária de konbini. Não posso fugir dessa realidade […]. Todas as minhas células existem em função da konbini.
O trecho é menos perturbador em contexto. No tom, na qualidade da visão, tem uma doçura estranha que também encontro em A Fábrica, e que tem ressonância, por exemplo, nos diários da anacoreta do século 14 Juliana de Norwich, Revelações do amor divino (disponível em mais de uma tradução). Ela conta das dezesseis visões repetidas que teve com Jesus, no claustro onde viveu isolada, em voto de silêncio, na companhia de um gato. No fim das visões, ela encerrou o assunto: “Tudo está bem, e todas as coisas sempre estarão bem”. Que calma, que desespero!
E toda essa volta foi para chegar numa diferença: podem falar o que quiserem, mas pelo menos no caso das freiras a transcendência era em direção a algo fora da Terra, muito fora do humano. O contraplano de suas vidas era o infinito longe, e não este infinito daqui, da Fábrica ou da Querida konbini, o do trabalho sem fim e sem brecha por onde outra luz possa entrar.
Os funcionários encontram na Fábrica tudo o que acham que precisam, menos dignidade e propósito
Talvez o livro aponte para uma transcendência possível na relação que cria com a natureza, com os animais que habitam a Fábrica. Mas mesmo eles não escapam dela — evoluíram nesse ambiente, estão fatalmente adaptados a ele, como certas espécies de besouro estão adaptados a um só tipo de planta e morreriam se não a encontrassem mais.
O tom é cômico-sinistro: uma espécie de lagartixa da Fábrica supostamente se alimenta de restos de sabão e fiapos de máquina de lavar. Então, enfim, se não houver mesmo nada que diferencie um infinito do outro, e se dissermos que Deus e o capital dão na mesma, e nos dermos por satisfeitos com isso, prefiro não continuar no assunto. Tudo seria tão horrível que não teria como melhorar.
Mas tudo está bem! Todas as coisas sempre estarão bem, dizem as almôndegas do manual, com seu sorriso neurótico. Afinal, os funcionários encontram na Fábrica tudo o precisam para uma vida plena: dormitórios, refeitórios, boliche, karaokê, lagos artificiais para pesca, restaurantes de todo tipo, museus, empresas de ônibus e táxi. A Fábrica é comparada à Disneylândia. “É uma cidade completa”, diz um funcionário. “Com certeza”, responde outro. A imagem que passam, na luz fria, é de dois Bananas de Pijamas conversando.
A única coisa que não tem na Fábrica são duas: dignidade e propósito. Daí que se fale tanto em comida — são as descrições em que a autora mais se demora. As guloseimas fazem o vazio parecer menos vazio, mas só porque ficou cheio, quer dizer, empanturrado. “O gengibre em conserva é o ponto-chave desse prato, não?”; “Desta vez, senti aroma de bala de abacaxi”; “Ela me deu duas balas […]. Agradeci e pus uma delas na boca. Ao mastigar a crosta dura, de dentro escorreu uma calda de chocolate macia”.
Já era tarde para o café da manhã mas ainda cedo para o almoço. Sem opção, peguei uma sopa de missô pequena, sem carne de porco […]. Na máquina, enchi duas xícaras de chá de folhas torradas de cor clara e as levei à mesa. O professor já tinha posto sobre uma bandeja um bolinho de carne empanado, uma fritura de berinjela com fígado suíno ao molho de missô chinês e uma grande porção de arroz com natto, além de ter pegado do bufê sete ameixas em conserva.
Não é o gosto pela comida que conduz a cena, mas algo entre o nojo e o tédio de quem está sempre tendo que comer sem fome: sem propósito e sem prazer, logo, sem dignidade. O personagem, depois de encher o prato, diz: “Você sabe que estou de dieta, não?”. A comilança é mais um gesto automático entre outros, com o qual todos os funcionários comungam.
Na tigela havia um macarrão grosso e amarelo, e sobre o caldo incolor, quase transparente, um pedaço de carne de porco com osso. Também havia cebolinha verde e gengibre-vermelho. “Delicioso, não?” “Sim. Falando sério, estou grata por ter um trabalho tão criativo como o de fragmentadora!”
A relação problemática com a comida num mundo de fartura aparece em mais de uma história recente, a mais famosa sendo A vegetariana, de Han Kang (Todavia, 2018, tradução de Jae Hyung Woo), que venceu o Nobel ano passado. Mas a minha preferida é a novela Diário de gravidez, de Yoko Ogawa (do volume A piscina; Diário de gravidez; Dormitório, Estação Liberdade, 2023, tradução de Eunice Suenaga), mais contida, mais maliciosa, menos dramática. Pela satisfação de concluir o que se começou, aqui fecho o paralelo sem muito esforço, lembrando do Artista da fome, de Kafka, e da anorexia das freiras. Tudo isso faz pensar.
E ainda assim, nem tanto. Saio da leitura sem a certeza de que vale a pena refletir a fundo sobre os mistérios que ela cria — se vão entregar alguma coisa ou se servem de puro efeito, se são pura casca sem fruta. Banana vazia não para em pé, e não sei se este livro para. Da minha parte, tendo a preferir comida com substância.
Editoria com apoio Japan House São Paulo
Desde 2019, a Japan House São Paulo realiza em parceria com a Quatro Cinco Um uma cobertura especial de literatura japonesa, um clube de leitura e eventos especiais.
Matéria publicada na edição impressa #91 mar em março de 2025. Com o título “Nada de interessante acontece nunca”
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