

Literatura japonesa,
Paisagem da janela
Em seu romance de estreia, Nobel de Literatura Kazuo Ishiguro recorre a elementos da biografia para refletir sobre o convívio entre gerações
12mar2025O artigo indefinido do título do romance de estreia de Kazuo Ishiguro, Uma visão pálida das colinas, é um prenúncio dessa obra tão curta quanto instigante. As personagens da narrativa constantemente se observam, e também admiram paisagens a distância. Entretanto, o que se vê está em aberto: como alguém que tenta identificar formas nas nuvens, a vista pode ser tanto do tempo que já se foi quanto do que está por vir, seja com ansiedade ou com excitação, e os sentimentos que a contemplação desperta são dependentes das circunstâncias e do estado de espírito do observador.
A indefinição dessa “visão” se volta para a protagonista, Etsuko. O livro a retrata em dois momentos: vivendo na Inglaterra, relembrando o passado na companhia de sua filha mais nova, e décadas antes, grávida da primeira filha, vivendo em uma Nagasaki do pós-guerra, quando conheceu Sachiko. Embora tudo seja narrado a partir do ponto de vista de Etsuko, não se trata de narradora não confiável, nem de um acerto de contas conclusivo, mas do exercício de contemplação do tempo e das relações. Especificamente, as relações entre gerações e diferentes realidades.

Etsuko e Sachiko são duas mulheres cujas casas são separadas por uma estrada enlameada e cheia de insetos. A dificuldade em atravessá-la parece refletir a comunicação truncada que se estabelece entre elas. Sachiko, já com uma filha e esperando notícias de um norte-americano que prometeu levá-la para os Estados Unidos, alterna entre sonhar com o país novo — onde a filha poderá ser até mulher de negócios no futuro —, o jogo de louças que lembra um passado luxuoso e o presente repleto de dificuldades. Não à toa, ela lembra personagens norte-americanas como Blanche DuBois, de Um bonde chamado desejo ou Martha, de Quem tem medo de Virginia Woolf?, com sua desconexão trágica da realidade e revelações pessoais feitas de maneira crua e desconcertante.
A realidade histórica do romance tem ecos na vida de Ishiguro, que nasceu no Japão e vive na Inglaterra
Mariko, a filha de Sachiko, é uma menina rebelde cujo apego parece ser exclusivo a seus gatos, única fonte de estabilidade para alguém cuja mãe está sempre pronta para mudar de endereço e até de país — e que fornece a Etsuko um primeiro sinal de que relações entre mães e filhas nem sempre são tranquilas como nuvens passando ao longe. Quando vemos Etsuko mais velha com a sua caçula, essa ideia se confirma. Se antes ela e Sachiko interagiam como estrangeiras, o tempo provou que não eram tão diferentes assim: Etsuko mudou de país, realizando o sonho — ou profecia — da outra e tem uma relação distante com a filha de um segundo casamento (também pagando pela língua dos julgamentos silenciosos que fazia por a vizinha ser mãe solo). Sem sabermos o que aconteceu com Sachiko, temos na vida de Etsuko posterior à mudança uma concretização sombria do que as duas elucubravam quando viviam em Nagasaki.
Voltando ao Japão, a vida de Etsuko é marcada pelo ambiente doméstico. Jiro, o marido, trabalha muito e dá pouca atenção a seu pai quando ele vem visitar. Um jogo de xadrez se estende por dias, com o pai parecendo dividido entre o orgulho de ter um herdeiro bem-sucedido e a frustração de não ter a sua companhia. Etsuko conversa com o sogro, chama-o de “papai”, como é costume. O sogro parece não entender nada daqueles homens mais jovens: nem o carreirismo nas grandes empresas, nem a mudança de mentalidade diante do nacionalismo. Já na Inglaterra, Etsuko não parece muito diferente do primeiro sogro ao lidar com a filha. Ela visita a mãe, porém quer ficar pouco, e parece alheia, enquanto sua verdadeira conexão é com a vida em Londres.
O peso da história
A realidade histórica presente em Uma visão pálida das colinas tem ecos na própria biografia de Ishiguro, que nasceu no Japão e vive desde muito jovem na Inglaterra. Porém, diante do tema familiar e pessoal, o dado histórico não é gratuito, tampouco pano de fundo.
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O autor situa no centro da vida de Etsuko dois episódios fundamentais para a compreensão do século 20. A bomba atômica, com seu efeito devastador na cidade de Nagasaki, as mortes causadas pela guerra, as famílias sem seus pais e maridos, e a pobreza dos anos seguintes, que é um elemento definidor da vida de Etsuko e Sachiko. No imaginário coletivo, tanto redefine a força destruidora humana quanto impõe uma ruptura brutal. A inexorabilidade do tempo adquire uma materialidade até então inédita. Se antes haveria alguma continuidade entre as gerações, agora há indivíduos pré e pós-bomba, como que nativos de países diferentes.
De maneira análoga, a trajetória de Etsuko na Inglaterra atravessa outra transformação brutal. A vida londrina da filha Niki, no epicentro dos Swinging Sixties, revolução cultural que se alastrou no país na segunda metade dos anos 60, vai na contramão da sobriedade tradicional japonesa, ainda mais traumatizada com a guerra. Niki vive a agitação da cidade rodeada de amigos. A mãe dela é, para eles, uma personagem exótica. Um pouco como, décadas antes, Etsuko cultivava uma identificação com o sogro, enquanto o então marido pouco se importava com o pai.
Os dois tempos do romance propõem um questionamento a respeito do peso da história no convívio intergeracional. Grandes eventos provocam rupturas ou faz parte da trajetória humana que fatores externos surjam como justificativa para um diálogo que se torna impossível? Ishiguro não dá respostas, só faz um panorama minucioso e paciente, com personagens que não são antagônicos, mas com pontos sutis de contato e afastamento. Centradas na perspectiva de Etsuko, as descrições mantêm espaço para os silêncios e uma empatia não desapegada de julgamentos.
É sempre tentador, ao ler um romance de estreia de um autor já consagrado, tentar identificar traços do escritor que ele viria a se tornar, especialmente em se tratando de um laureado com o Nobel de Literatura em 2017. Uma visão pálida das colinas mostra Ishiguro tomando a biografia como pista de decolagem, rumando a novas aventuras sem nunca se esquecer de onde veio, um tanto como Etusko, sua protagonista. E também tomando o mundo à sua volta como um elemento moldável, já que não se pode fugir dele.
Editoria com apoio Japan House São Paulo
Desde 2019, a Japan House São Paulo realiza em parceria com a Quatro Cinco Um uma cobertura especial de literatura japonesa, um clube de leitura e eventos especiais.