
Onde Queremos Viver,
Acto da entrega
Penso no número de nós cuja dívida se paga no acto da nascença no sítio errado à hora errada
01jul2024 | Edição #83Uma voz em redor, neste café de vila costeira, um café vago e sem vista além do baldio de gravilha número 2, onde mijam cães e turistas, quer saber se é preciso pagar no acto da entrega. Digo a mim mesmo que sim, não há serviço de esplanada. Dou comigo a pensar no acto da entrega e a pensar no preço desse acto. E passarei um dia, provavelmente uma semana, a remoer a metáfora que a minha cabeça procura nesta frase como a um anzol um peixe jejuante.

Talvez ajude fixar que era uma manhã de maio na vila parada, tudo era velho onde fôramos novos, a própria esperança sabia um pouco a derrota, antes do almoço, e que na praia para lá da falésia talvez nadasse Tomás, o obscuro.
Pode ser que haja vidas em que tudo se paga no acto da entrega, por contraste com outras cuja conta vem depois, por contraste com outras vividas na qualidade de convidado, por contraste com vidas em que se foge sem pagar etc. Mas penso no enorme número de nós cuja dívida se paga no simples acto da nascença no sítio errado à hora errada, e digo a mim mesmo que morda a língua.
O que é, realmente, o acto da entrega? Se fecho os olhos, a minha cabeça vai para certas frases e imagens, e eis-me outra vez na barriga do leviatã, carregado de malas e significados, algures entre Brooklyn e o Jardim da Estrela, e é quando me lembro do mendigo na esquina da Bleecker que
pedia sempre “change, change” e eu dizia-te: “E se aquele fosse Deus a falar a todos no imperativo: mudem, mudem?” e tu riste-te luminosamente ao virar a esquina que dá para um bar de comédia chamado The Bitter End. E nesse bar chamado Fim, dou comigo de novo aqui, virado para um baldio português onde só vejo baldes de lixo e um cão que rebola nas próprias pulgas, contente como um fascista democraticamente eleito, nesse bar também se paga no acto da entrega? E aceitam dólares?
‘E se aquele fosse Deus a falar a todos no imperativo: mudem, mudem, mudem?’
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A mente regressa à expressão já cansada dos estudantes, expressão ao mesmo tempo inteligente e confusa e cheia de fúria e esperança, aulas que não compreendiam bem, ou que compreendiam melhor que eu, entre protestos e exames e entrevistas de emprego, e ao pensar no que faço numa aula e no que faço aqui mesmo, penso no que quer dizer o acto da entrega.
Não me vale agora qualquer voz em redor, somente um rádio na estação frívola e uma memória em linguagem de peixe, que traduzida é: nós estamos aqui na esperança de levar uma vida autêntica. Levar? Pergunto-me agora, olhando para ti, misteriosamente viva à minha frente, aqui mesmo, onde não há mendigo, nem esquina, nem serviço de esplanada, aqui no país avaro onde tudo se paga no acto da entrega, levar? Levar como, para onde? — e dá para levar na cabine, essa vida autêntica? E tu respondes que, se exceder os 23 quilos, a gente paga o excesso de bagagem, e eu respondo que o excesso de bagagem somos nós, e tu perguntas se aceitam dólares — e neste jogo de silêncios e telepatias, tu fechas o caderno, eu fecho o volume 2 dos ensaios de Lydia Davis, e então é que se vê como vale a pena, na vida, o termos pago tudo sempre no acto da entrega, querida.
Agora basta pegar e sair.
Matéria publicada na edição impressa #83 em julho de 2024.
Peraí. Esquecemos de perguntar o seu nome.
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