Onde Queremos Viver,

A nossa era

Estará o problema não na palavra “mulata”, que abomino, mas no facto de que não há lugar no mundo para a (minha) raça ambígua?

22jun2023 | Edição #72

A mulher negra que me diz que só não me sei pentear porque não sou negra de verdade. Penso: será que é assim? Será que esse drama todo é drama de raça mista, de bicho suspeito, de gata de rua? Outra história: o orgulho do meu avô assimilado pela minha cor de pele, mais clara do que a sua, sua neta-troféu. “See, I know my colors, see.” Outra ainda: o meu tio, somos crianças, estamos a comer pêssegos no bairro de lata depois do jantar, sentados no chão de betão, meu tio comigo ao pôr-do-sol, a ver que os pêlos dos meus braços alouram com o sol, e a dizer-me e a odiar-se enquanto o dizia, temos doze anos: “se os meus pêlos ficassem louros como os teus isso é que era o paraíso”. “See, I know my colors, see.” Meu tio a enlouquecer depois de confessar que me ama, temos vinte e dois anos, seu sonho era ter uma mulher clara, sua loucura é viver na barraca sufocado nos sonhos do seu pai assimilado, seu sonho era ser branco, negro retinto, que berra “não tenho nada a ver com essa pretalhada”, enquanto a polícia o leva nu para a esquadra.

Estou entre o desejo por ela e o desejo de ser como ela, e penso que aquele corpo ‘mulato’ é que é o paraíso

Outra imagem: a noite de Carnaval no Rio da minha infância, em que ficava a ver o desfile no Sambódromo pela televisão para ver como eram as “mulatas” depois de crescidas. E há uma mulher mestiça em nu integral, que samba na minha memória, com o corpo iluminado com glitter. E eu menina, sozinha na sala, vejo as suas mamas coloridas, o corpo gingando, o cabelo crespo armado, estou entre o desejo por ela e o desejo de ser como ela, e penso que aquele corpo “mulato” a dançar no Sambódromo, isso é que é o paraíso. “See, I know my colors, see.” “See, I know my colors, see.” “See, I know my colors, see.” “See, I know my colors, see.”

Banimos a ‘mulata’. E então penso que talvez seja quem eu sou que foi proibido

Banimos a “mulata”. E então penso que talvez seja quem eu sou que foi proibido, e que o mundo me exorta a ser uma ou outra coisa. Todas as designações disponíveis ou cruzam linhas vermelhas, ou são expressões manchadas pela violência, ou foram canceladas: “raça mista” (como nos antigos bilhetes de identidade coloniais)? “Mestiça”? “Parda”? “Mula”? Estará o problema não na palavra “mulata”, que abomino, mas no facto de que o mundo me proibiu, no facto de que não há lugar no mundo para a (minha) raça ambígua? E, então, que serei, se é que sou ainda alguma coisa? Haverá alguma coisa no galope das perguntas que é recusa de aceitar de bom grado abraçar um dos lados da história? Porque é na hesitação que encontro o conforto? Será porque sou fruto da hesitação, fruto do negro a tornar-se branco, do branco a misturar-se com a negra? Será porque o meu modo de viver é com um pé de cada lado? Será a hesitação a condição mestiça da ansiedade ou a vantagem que vem da indecidibilidade da mistura? A ambiguidade, o estado mestiço do pensamento? E o mundo em que vivemos a era pós-mestiçagem, ou a era do ódio ao cinza, ou a era ex-“mulata”?

Quem escreveu esse texto

Djaimilia Pereira de Almeida

Escritora portuguesa, publicou Esse cabelo, A visão das plantas e O que é ser uma escritora negra hoje (Todavia).

Matéria publicada na edição impressa #72 em agosto de 2023.