História,

Depois, a barbárie

Primeiro volume de jornada épica de viajante inglês descreve a paisagem e os costumes da Europa logo antes da Segunda Guerra

28nov2018 | Edição #19 dez.18/fev.19

Em dezembro de 1933, Patrick Leigh Fermor decidiu fazer uma viagem a pé da Holanda até Constantinopla, atual Istambul. Dessa jornada épica resultou a publicação, anos depois, de dois dos três volumes originalmente planejados pelo britânico. Esse que as Edições de Janeiro nos apresenta é o primeiro deles e abarca sua saída da Inglaterra até deparar com a fronteira húngara, que inclui a partida da Holanda, e o percurso por Alemanha, Áustria e a então Tchecoslováquia. O segundo volume foi intitulado Between the Woods and the Water, e o terceiro, que ficou inacabado, foi publicado postumamente em 2013 como The Broken Road.

Antes da Guerra

Um tempo de dádivas é narrado por duas vozes: a do jovem de dezoito anos que, encantado, anota suas impressões dos vilarejos do norte da Europa e sua admiração por aquele continente ainda dominado pelos velhos impérios; e a do escritor mais maduro, quarenta anos depois — mais especificamente em 1977, data de publicação do volume —, já detentor de um saber profético sobre o futuro daquele garoto e daqueles países que seriam devastados pela Segunda Guerra Mundial. 

O vetor da narrativa é a voz experiente do autor, de sua memória afetiva: se o jovem Fermor se maravilha com o exotismo da Europa germânica e eslava, o sexagenário se mostra arrebatado por sua versão mais jovem. Não deixa de ser um Bildungsroman, um romance de formação, apresentado como um relato de viagem. 

Ao longo dos séculos 19 e 20, fazia parte da educação de jovens ingleses passar temporadas no continente, sobretudo na Itália, de clima mais convidativo. Fermor empreende sua jornada, mas em vez de buscar temperaturas mais amenas, enfrenta caminhadas gélidas em meio a nevascas. 

O tom nostálgico não se restringe ao modo de vida europeu, a suas cidades e impérios, mas incide sobre o próprio autor, aquele que um dia ele foi, antes de se tornar um herói de guerra do Exército britânico que, por conhecer grego clássico, foi encarregado de organizar a resistência na ilha de Creta. Lá, disfarçado de pastor de ovelhas, viveu nas montanhas por dois anos e, em 1944, participou de uma missão que capturou um general alemão. Reza a lenda que foi nele que seu amigo Ian Fleming se inspirou para criar James Bond. 

Reza a lenda que foi nele que seu amigo Ian Fleming se inspirou para criar James Bond

Episódios da Segunda Guerra em Creta se entremeiam a suas perambulações europeias e, em alguns momentos, emerge a voz da juventude do autor reproduzindo passagens de seu diário à época. 

Não existia mais a Europa que ele atravessou — sendo acolhido por camponeses que lhe ofereciam camas de feno, pernoitando em cadeias de pequenas localidades, jantando  em palácios com nobres, batendo de porta em porta para oferecer seus serviços de retratista numa Viena politicamente cindida. Tampouco existia aquele rapaz que fumava para parecer mais maduro. 

As intermináveis descrições são tanto o ponto forte como o ponto fraco do livro. Quando envolvem cenas cotidianas, gente comum em meio a ações corriqueiras, elas se aproximam de pinturas em movimento — é especialmente bem-humorada sua explicação de como se toma cerveja em Munique —, dando prazer à leitura. No entanto, ao se voltar para o universo arquitetônico, a riqueza de pormenores chega a ser cansativa — ainda que tenha importância histórica, uma vez que alguns dos edifícios e catedrais visitados não sobreviveram aos bombardeios da Segunda Guerra.

Sonambulismo político

É esse tom premonitório que atravessa algumas das passagens mais marcantes do livro, embora o próprio autor admita que, naquela época, “era um sonâmbulo no âmbito político”. Ao cruzar a fronteira entre Holanda e Alemanha, ele nota uma bandeira vermelha com uma suástica a tremular do lado alemão. 

O ano era 1933, e Adolf Hitler tinha acabado de tomar o poder em uma Alemanha humilhada pelo Tratado de Versalhes. “Coisas horrendas estavam acontecendo desde que Hitler tomara o poder dez meses antes; mas a extensão do horror ainda não havia se revelado completamente. No país, a disposição predominante era de uma aquiescência perplexa. Ocasionalmente, transformava-se em fanatismo. Frequentemente, quando ninguém podia ouvir, encontrava expressão no pessimismo, na desconfiança e em maus pressentimentos, e, algumas vezes, em vergonha e medo, mas isto apenas quando se estava a sós. Os rumores quanto aos campos de concentração não eram mais do que murmúrios; mas apontavam para um sem-número de inconfessáveis tragédias.”

O autor não deixa de notar a ubiquidade dos jovens oficiais da ss, assim como dos hinos nacionalistas. E ele, mesmo sendo inglês, provocava nos alemães mais uma mistura de curiosidade e admiração que ódio e repulsa. Claro que havia exceções: numa estalagem em Heidelberg, um jovem muito branco o encarava e, ao descobrir a identidade inglesa de Fermor, seu rosto tomou uma expressão de ódio e ele passou a confrontá-lo com fervor: “Por que havíamos roubado as colônias alemãs? Por que não podia a Alemanha ter uma armada e um exército adequados? Acreditava eu que a Alemanha iria receber ordens de um país administrado por judeus?”. O próprio querelante respondeu: “Adolf Hitler vai mudar tudo isto”. 

Ainda assim, em seu contato direto com alemães civis, é de notar que o nazismo não era uma unanimidade. Em conversa com dois amigos e uma senhora em Colônia, os três alemães se mostraram contrários ao movimento nazista: “Não era a solução para os problemas da Alemanha; é errado… a conversa foi caindo num baixio deprimente. (Suspeitei ser este um tema de constante discussão e de que eram da oposição, mas de diferentes maneiras e por diferentes razões. Era um tempo em que amizades e famílias se desfaziam por toda a Alemanha)”.

Uma nação em crise econômica na qual as pessoas se agarravam a uma liderança política que prometia restaurar a dignidade de seu povo. Com a justificativa de expurgar o país de seus inimigos, Hitler começava a perseguir grupos tanto por sua religião quanto por sua filiação política. O “tempo de dádivas”, nota o próprio autor, também era “um tempo em que amizades e famílias se desfaziam”.

Quem escreveu esse texto

Paula Carvalho

Jornalista e historiadora, é autora e organizadora de ireito à vagabundagem: as viagens de Isabelle Eberhardt (Fósforo).

Matéria publicada na edição impressa #19 dez.18/fev.19 em novembro de 2018.