Encontro de Leituras, História,

A vida do português

Da Galécia Magna ao Brasil, linguista retraça o nascimento e os caminhos da nossa língua

29abr2024 • 13maio2024
O linguista português Fernando Venâncio (Divulgação)

A história das línguas é um tema fascinante. Muito desse fascínio vem do próprio redesenho gradual e contínuo pelo qual passa, implacavelmente, a estrutura gramatical e lexical das línguas. Mas vem também de como as transformações socioculturais afetam a estrutura das línguas; e vem, por fim, dos muitos mistérios que a linguística histórica não conseguiu dissolver, apesar de seus ingentes esforços teórico-empíricos — que já somam mais de dois séculos — para deslindar os processos das mudanças linguísticas.

Pelo tanto que se sabe e apesar dos enigmas que subsistem, tem sido possível desvelar, com mais ou menos detalhes, a história de muitas línguas. A portuguesa conheceu a primeira narrativa de sua história já no início do século 17, Origem da lingoa portuguesa, escrita pelo jurisconsulto Duarte Nunes de Leão e publicada em Lisboa em 1606. Porém, foi só a partir de meados do século 19 que se tornou corrente a produção de gramáticas históricas e de histórias do português, simultaneamente com as de outras línguas europeias. Esse movimento resultou da emergência do historicismo linguístico e de sua consolidação no paradigma da linguística histórico–comparativa, que foi introduzido nos estudos do português pelo filólogo Adolfo Coelho, em 1868, com seu livro A lingua portugueza: phonologia, etymologia, morfologia e syntaxe. O filólogo brasileiro Manuel Pacheco da Silva Jr. foi o autor da primeira obra em português com o título de gramática histórica: Grammatica historica da lingua portugueza, publicada no Rio de Janeiro, em 1878. Na sequência, foram lançadas várias obras de caráter histórico, dentre as quais a monumental História da língua portuguesa, do brasileiro Serafim da Silva Neto, de 1957.

A partir do fim dos anos 80, novos documentos, novos dados e novas interpretações criaram condições para assentar essa história em outras bases, desencadeando um importante movimento de reescrita da história do português, liderado por destacados linguistas, em especial os portugueses Clarinda Maia, Ivo Castro e Esperança Cardeira e a brasileira Rosa Virgínia Mattos e Silva. Foi possível superar formulações tradicionais, de fundo patriótico-nacionalista, que, desprovidas de suficiente sustento científico, turvaram a apreensão das verdadeiras origens da língua.

Fernando Venâncio, linguista português que trabalhou por várias décadas na Universidade de Amsterdam, se soma a esse grupo de renovadores dos estudos da história da língua. Seu livro Assim nasceu uma língua: sobre as origens do português, de grande e merecido sucesso editorial em Portugal (lançado em 2019, já está em sua sétima edição), chega agora ao Brasil pela Tinta-da-China Brasil, selo editorial da Associação Quatro Cinco Um, com substancioso prefácio do linguista Marcos Bagno, da Universidade de Brasília.

Venâncio escreveu sem tecnicismos, com admirável clareza e elegantes e deliciosas tiradas irônicas

Venâncio apresenta seu livro como obra de divulgação e realiza, com propriedade, esse seu objetivo primordial. Escreveu um texto sem tecnicismos, com admirável clareza e temperado, aqui e ali, com elegantes e deliciosas tiradas irônicas. A narrativa é leve, cativante e fartamente exemplificada, combinando, na devida medida, as duas histórias que tradicionalmente ocupam os linguistas históricos: a história interna, que dá atenção às mudanças sistêmicas da língua, e a história externa, que relata as transformações dos contextos socioculturais em que a língua é falada e seus impactos sobre ela.

O livro, porém, é muito mais do que uma obra de divulgação. Interessa ao público em geral, mas é também obra incontornável para os especialistas. O autor mantém uma interlocução constante e consistente com os instrumentos linguísticos pregressos (gramáticas, dicionários, tratados de ortografia, histórias da língua) e com estudos histórico–linguísticos contemporâneos, e traz contribuições inéditas ao estudo da história da língua portuguesa.

A primeira dessas é, sem dúvida alguma, seu foco no léxico. Supera o trato ligeiro e muitas vezes apenas anedótico da história do vocabulário em gramáticas históricas tradicionais. Venâncio conta a história do léxico e conta a história da língua pelo léxico. Recorta, como seu objeto maior, o léxico corrente do português europeu; recolhe um vasto acervo empírico em dicionários e corpora; e o submete a criteriosas análises históricas.

Dessas análises decorre o que é, talvez, sua contribuição mais original: o desvelamento do impressionante volume de palavras que o português incorporou do espanhol entre meados do século 15 e inícios do 18, período em que letrados portugueses adotaram o espanhol como língua modelar. Os materiais lexicais importados do espanhol, diz Venâncio, “traziam um perfume de cultura e modernidade”. Um dado simples ajuda a avaliar o tamanho dessas transferências lexicais: para cada lusismo incorporado pelo espanhol, há oitenta espanholismos incorporados pelo português.

Esse fato, à falta de um estudo sistemático como o de Venâncio, passou, em geral, despercebido dos historiadores da língua. E esse desvelamento tem consequências: nos obriga a rever a história e dar outra interpretação para o que se chamou, tradicionalmente, de relatinização do léxico do português, por supostos empréstimos eruditos trazidos diretamente do latim clássico. O que aconteceu, de fato, foi a incorporação ao português de cultismos latinos vindos do espanhol. Ou seja, para modernizarem o léxico da língua à época, os letrados portugueses se aproveitaram da relatinização que já tinha acontecido antes no próprio espanhol.

Venâncio reserva as duas primeiras partes do livro para contar e recontar essa e outras histórias. Leva-nos ao distante século 7, possível momento em que o falar latino do noroeste da península Ibérica começou a perder as consoantes intervocálicas /l/ e /n/ — uma, se não a maior, das diferenças entre a língua românica que dominará a faixa ocidental da península e as demais línguas românicas ibéricas. Na sequência, percorre os séculos até alcançar, já em ruptura com o norte originário, a configuração da língua batizada, no século 15, de “português”.

Dentre os temas tratados nas duas primeiras partes, dois merecem destaque. Primeiramente, a crítica precisa e contundente que Venâncio faz à invenção do chamado “galego–português”, um dos mais arraigados mitos criados pelo historicismo patriótico–nacionalista português do século 19. E, segundo, a extensa e saborosa exposição relativa ao ditongo “ão”, sua proliferação a partir do século 15 e as consequências daí advindas.

Antes dessas partes, o autor escreve uma introdução em que detalha, sem tecnicismos, os pressupostos teóricos e empíricos que delimitam seu trabalho. Como é um livro sobre palavras, cabe, de início, tratar desse objeto em termos gerais: sua existência, sua origem, sua história, seu registro, sua datação, sua longevidade, suas viagens entre os idiomas etc.

Foi inédito o desvelamento do impressionante volume de palavras que o português incorporou do espanhol

A terceira parte do livro é dedicada a um estudo comparativo sistemático do galego e do português, sempre com foco no léxico. Os dois idiomas tiveram origem comum, fato em geral apagado das histórias tradicionais do português. A ancestral de ambos foi a língua românica surgida da evolução do latim falado no noroeste da península Ibérica, região que constituía a província romana da Galécia Magna, abarcando a atual Galiza e o território que fica entre os rios Douro e Minho.

Eventos sociopolíticos ocorridos na Baixa Idade Média, em especial a criação do reino de Portugal, acabaram por separar as comunidades ao norte do rio Minho (que ficaram sob domínio da Espanha) das do centro-sul da faixa ocidental da península. Resultaram daí progressivas divergências linguísticas, afastando as variedades da Galiza das da língua que receberia, no século 15, o nome de português. Permanece a questão se se trata de duas línguas ou de variedades da mesma língua. Não é um debate fácil, pois frequentemente atravessado por fortes e irreconciliáveis posicionamentos político–ideológicos. No entanto, Venâncio não se deixa envolver e desenvolve sobre o tema uma argumentação científica e culturalmente muito bem informada, demonstrando que, apesar da “assombrosa proximidade”, há distâncias que justificam considerar, hoje, galego e português como duas línguas.

Na narrativa, o galego é, por razões óbvias e como bem destacou Marcos Bagno no prefácio, o coprotagonista. O grande Outro é o espanhol, tanto pelo fato de que, em contraste com ele, as especificidades linguísticas da faixa ocidental da península Ibérica ficam mais evidentes quanto por seus impactos quantitativos no léxico do português. O grande ausente é o português brasileiro. Recebe referências aqui ou ali, mas não entra, deliberadamente, no foco de Venâncio. Isso não se dá por falta de familiaridade. Bem ao contrário. O ensino de literatura brasileira esteve entre suas tarefas. Conhece nossos escritores e, com seu fino senso linguístico, detectou, nessas suas leituras, particularidades do português brasileiro. Algumas dessas e outras tantas estão comentadas no livro que lançou em Portugal em 2022, O português à descoberta do brasileiro.

Estender Assim nasceu uma língua para incorporar a história do português brasileiro extrapolaria o objeto e os objetivos do autor. Além disso, exigiria, na prática, outro livro. Há, obviamente, um vocabulário amplamente partilhado entre as duas variedades e, nesse sentido, o português brasileiro está incluído no livro de Venâncio. Por outro lado, as particularidades do léxico brasileiro corrente, as direções que a dinâmica da criação vocabular toma no Brasil e o vasto acervo lexical incorporado pelo português brasileiro das línguas indígenas e africanas deixam claro, por si sós, o tamanho da empreitada.

Esse acervo que singulariza o português brasileiro, em especial suas heranças indígenas e africanas, está também, aos poucos, sendo reavaliado. A etnolinguista Yeda Pessoa de Castro, nossa maior especialista em línguas africanas, lançou o belo Camões com dendê: o português do Brasil e os falares afro-brasileiros (Topbooks, 2022). Estamos também nós, linguistas brasileiros, envolvidos nessa reescrita — o projeto História do Português Brasileiro, criado e coordenado pelo profícuo linguista Ataliba de Castilho, já publicou onze volumes. Esse grande projeto se justifica tanto para avançar no conhecimento da origem e formação do português brasileiro quanto para acompanhar os caminhos de sua crescente autonomia. Afinal, está cada vez mais evidenciado que o português europeu e o português brasileiro estão, há um bom tempo, num processo irreversível de distanciamento. Trata-se de um idioma em “circuito aberto”, para aproveitar a expressão com a qual o autor dá título ao último segmento de seu livro.

Nessa última parte, Venâncio, sem nenhum ufanismo pueril, traz dados lexicais que singularizam o português. E aproveita para criticar com rigor e humor o higienismo linguístico, ainda tão em voga, que, por falta de bons horizontes científicos, se põe a caçar impurezas imaginárias e se entrega à volúpia do erro, proclamando uma pretensa decadência da língua. Não faltam críticas também ao que chama de aldabrices, como querer dar ao português, em pleno século 21, uma origem árabe ou fenícia. O autor faz um exercício crítico da charlatanice linguística, que, diga-se de passagem, tem conhecido uma expansão vertiginosa nas redes sociais. Mais um bom motivo para ler o ótimo livro de Fernando Venâncio.

Quem escreveu esse texto

Carlos Alberto Faraco

É linguista, professor da UFPR e coautor de Gramática do português brasileiro escrito (Parábola Editorial).