Biografia, Música,

Beethoven mais perto do que nunca

Biografia de Swafford mescla cuidadosa reconstrução da vida do compositor da “Nona” com análise competente de suas composições

15nov2018 | Edição #8 dez.17-fev.18

Depois de duas biografias consagradas — uma de Johannes Brahms, cuja obra todos gostam, mas fingem detestar, e outra de Charles Ives, a quem todos reverenciam, mas poucos realmente conhecem —, o professor e compositor americano Jan Swafford se debruçou sobre Ludwig van Beethoven.

É difícil imaginar que exista algo a respeito de Beethoven que ainda não se saiba: sua música permeia o imaginário do Ocidente, tendo se transformado em trilha de filmes, música incidental, fundo para propagandas de todos os tipos. Sua imagem estampa camisetas, seu sobrenome é homenageado ao batizar cachorros e pessoas. Quem estaria disposto a se aventurar nessa estrada tão batida? E quem compraria mais uma biografia sobre um homem cuja vida já foi tão invadida e comentada, e cuja obra já foi assunto de milhares de teses?

Pois Swafford realiza um tour de force admirável em Beethoven: angústia e triunfo. O livro, longo e leve ao mesmo tempo, evita academicismos. O texto flui, apesar das mil páginas. Beethoven é apresentado como um personagem vivo, multifacetado, contraditório, humano. Sua infância é esmiuçada, sua cidade se torna familiar para nós: entramos no mundo do compositor não como observadores externos, mas como se vivêssemos em Bonn, na Alemanha, no final do século 18 e estivéssemos a par da política, das fofocas e das modas locais.

Existem biografias de Beethoven extremamente eruditas, outras romanceadas. A obra de Swafford, porém, tem um mérito particular: sem desfazer da grandeza inegável do biografado, o autor retira dele a aura de super-homem. Sim, sabemos que ele foi um gênio incompreendido, um sujeito oprimido pela doença e pela feiura, vítima da falta de sutileza pessoal que acabou frustrando muitas de suas investidas amorosas. Mas até hoje ele parecia um ser inalcançável, isolado num espaço rarefeito, uma figura mítica e única, tanto do ponto de vista pessoal como musical; um cometa que saiu do nada, para subverter todas as convenções.

O avô de Beethoven

Swafford faz ligações poéticas entre fatos prosaicos e a filosofia que iria guiar o compositor em sua carreira. Ao comentar o conhecido retrato do avô (seu homônimo e também músico), pintado por Radoux, o biógrafo diz: “O neto de Ludwig van Beethoven manteve essa pintura próxima de si até o fim da vida, contando a seus amigos histórias sobre o avô, orgulhosamente apontando a semelhança no formato de seus rostos […]. Talvez Beethoven não tenha destacado que seu herói e modelo, o homem que honrava no lugar do pai, morreu quando o neto mal completara três anos. A pintura era a principal conexão entre eles. Era menos a memória real de seu avô que Beethoven adorava e mais a ideia do avô representado por meio da arte. Como homem e artista, o jovem Ludwig van Beethoven acreditava que ideias, ideais e arte brilhavam mais e por mais tempo que as pessoas de carne e osso. E como seu avô, o compositor Beethoven via a música como sua salvação”.

“A obra mais ambiciosa de Beethoven, a que ele queria que fosse a maior, termina com uma prece não respondida”

Para além da história de uma vida frequentemente penosa, repleta de frustrações e doenças de diversos tipos, sendo a mais tristemente famosa a surdez que o acometeu antes dos trinta anos — nos é dado acompanhar a gênese de obras icônicas. Além das sinfonias, que se encerram com a Nona, Beethoven compôs concertos para piano, violino, dezenas de sonatas, peças para quarteto de cordas, uma ópera e uma missa. E aí entra a vantagem de termos como autor do livro não só um historiador cuidadoso e pesquisador incansável, mas também um músico completo.

Missa ambiciosa

Ao comentar o final ambíguo da Missa Solemnis, uma de suas obras mais importantes, ele observa: “A orquestra dá meros quatro compassos de música apoteótica, terminando em um acorde de Ré Menor em staccato. Ali a Missa Solemnis encontra seu fim precipitado em uma atmosfera de fragmentação e irresolução. O que aconteceu? Gerações o debaterão, frequentemente tentando transformar o fim em uma conclusão religiosa e afirmativa […] No fim, não há triunfo da fé, nem triunfo da paz, nem triunfo algum. Deus não respondeu às preces humanas, às suas exigências, às suas aterrorizadas súplicas por paz. Os tambores recuaram, mas ainda estão ali, e podem voltar. A obra mais ambiciosa de Beethoven, a que ele queria que fosse a maior, termina com uma prece não respondida”. Quem conhece música se encanta ao reencontrar, primorosamente explicadas, as ferramentas composicionais que fizeram dele o maior nome da transição entre o classicismo e o romantismo.

A boa tradução de Laura Folgueira sofre de alguns cacoetes, como o abuso do verbo “colocar”. Também nota-se que certos termos musicais não encontram o seu equivalente apropriado em português, como “marcha funeral”, usada no lugar de “marcha fúnebre”; “marcações de volume” em vez de “indicações de dinâmica”; ou “tom” quando deveria ser “tonalidade”. 

Para aqueles que se interessam por Beethoven mas conhecem apenas a parte mais famosa de sua obra Beethoven: angústia e triunfo oferece informações e entusiasmo para abrir caminhos. Não é apenas um livro para especialistas e para apaixonados por música clássica: pode ser apreciado por qualquer pessoa que goste de histórias bem contadas.

Quem escreveu esse texto

Laura Rónai

É autora de Em busca de um mundo perdido (Topbooks).

Matéria publicada na edição impressa #8 dez.17-fev.18 em junho de 2018.