Teatro,

Vocação inarredável

O talento de Fernanda Montenegro não vem de um toque divino, mas de um compromisso com o ofício de dar voz ao Outro

01out2019 | Edição #27 out.2019

Nunca achei justa a fama de os grandes atores serem vaidosos. O motivo é empírico: todo grande ator que conheci era generoso. E mais: a generosidade está na definição do ofício. O ator dedica a vida a viver outras pessoas — geralmente tornando-as melhores. Nesse processo, a vida do intérprete fica em segundo plano. O ator empresta seu corpo e sua voz a pessoas que, se tudo der certo, viverão então a melhor versão de si mesmo. Não existe profissão mais altruísta.

Fernanda Montenegro dedicou a vida ao que ela chama de “se completar no Outro”. Assim, com “O” maiúsculo. Pra deleite do Outro, vivido por ela no palco. Pra deleite dos outros, na plateia, que assistem aos outros de Fernanda — sempre melhores que o original.

Existem muitos motivos pra se escrever uma autobiografia — a maioria deles torpe. Há quem escreva pra contar vantagem, ou pra não ser esquecido. Fernanda não teme o esquecimento, nem precisa lembrar da centralidade que tem na história do teatro brasileiro. Não há, em todo o país, quem ouse contestar esse protagonismo. A autobiografia de Fernanda é a cara dela, porque, claro, quase não fala dela.

Beirando os noventa anos, Fernanda prefere jogar o refletor sobre todos que a cercaram e fizeram dela o que ela se tornou. Parafraseando um dos seus melhores personagens: não se nasce Fernanda Montenegro. Torna-se Fernanda Montenegro. O livro fala desse processo de invenção. Depositária da maior fortuna em aplausos do Brasil, faz, ao longo do livro, uma linda redistribuição de louros.

O livro começa invocando os antepassados. Sem os quais, nada. O prólogo narra a épica chegada ao Brasil dos avós sardos, atravessando um périplo inimaginável. Sua avó tinha “a memória incandescente dos analfabetos”: contava-lhe histórias da Odisseia, embora nunca tivesse ouvido falar em Homero. “Os mitos nunca tiveram dono.” Fernanda, recém-alfabetizada, lia pra avó as legendas no cinema. Ali, talvez, nascia a atriz — a atriz que, coincidentemente, ganharia o mundo escrevendo cartas pra analfabetos em Central do Brasil. A beleza do seu ofício está em ajudar a ler o mundo.

De Gianni Ratto recebeu a “intensa transferência mítica de uma arte”.  Por Dulcina de Moraes tem a mais profunda reverência. Quando viu Bibi Ferreira em cena passou a sonhar que queria ser Bibi. “Mesmo ausente, Bibi continua inalcançável.” Com Ítalo Rossi, viveu “a maior comunhão cênica” da sua vida. Pra cada um deles, páginas em reverência. De Henriette Morineau, herdou o “respeito místico”. A ela e ao teatro.  Sobre Cacilda Becker, nossa “líder absoluta”, “nossa grande atriz referencial”, lamenta a morte precoce. “Há uma eternidade em sua figura.”

Palavras

Aprendeu com Villaret que “não é seu corpo que vai dominar a palavra, é a palavra que domina o seu corpo”. Não tem medo de evocar o caráter declamatório do ofício — “palavra que hoje parece uma aberração”, reconhece Fernanda. Mas ela está lá, no cerne da profissão: a língua.

As palavras se refestelam na boca de Fernanda. No livro, a colaboração  de Marta Góes preservou sua linguagem oral, cheia de parênteses afetivos e palavras repetidas. Duas palavras lhe são especialmente caras. Chamaram a minha atenção porque nunca as tinha ouvido. “Inarredável”, pra designar tudo o que é inadiável, inegociável, imexível, aparece oito vezes no livro. (“Encontrei em Fernando, meu companheiro de toda a vida, a mesma e inarredável vocação.”) E “votivo” pra tratar do que é fruto de promessa apaixonada. O adjetivo surge seis vezes. (“Aceitamos aquele convite por uma adesão votiva à vida cênica.”)

A devoção de Fernanda à vida cênica é inarredável. É em nome dela que Fernanda diz diversos “nãos”: a Glauber Rocha, que a convidou a filmar Terra em transe; a Ziembinski, por não querer deixar a companhia dos amigos; a José Aparecido, que a tinha convidado a assumir o Ministério da Cultura. “Não é fácil dizer não”, ela escreve ao então governador. “Não vejo que seja mais fácil decidir pelo teatro. Ou mais seguro. O teatro nunca foi fácil ou seguro. Mas esse é o meu lugar.”

Seu talento não vem de um toque divino, mas de um compromisso com o ofício — outra palavra recorrente — que ela viu no seu avô estucador, no seu pai engenheiro. “Sem demagogia, sei que a sacralidade de um ofício me impregnou.” Mas que ofício é esse? Tão confundido com o mero empréstimo de um corpo, em Fernanda ele toma outra qualidade.

Seu ofício é a lucidez. Na contramão do “não-ator”, Fernanda é a “sim-atriz”. A atriz-atriz. Nunca chegou fácil a um personagem, diz ela. Mas sempre soube exatamente o que estava fazendo, isso digo eu. Quando perdida, encontrava-se no texto. “Sempre fui acesa. Presente. Sempre gostei de estar ligada […]. Atravesso o dia em estado de observação explosiva.” Seu ofício não combina com a ignorância ou a ingenuidade. Fernanda é uma intelectual. Das maiores. Não à toa os nossos maiores dramaturgos escreveram pra ela. E mais que isso: com ela. Fernanda traduz o seu tempo como ninguém, com lucidez e coragem — outra palavra exaustivamente repetida.

“A coragem é a base dessa nossa arte.” Quando designada, ainda em início de carreira, à personagem da feia ingênua, fincou o pé e disse que faria a bonita má — contra a vontade do diretor. Não por vaidade ou competição, mas por vontade de “experimentar uma não eu”. O sucesso foi estrondoso (“não tenho medo do adjetivo”, diz a autora ao usar essa palavra).

Nunca deixou de ser profundamente política — embora jamais tenha sido panfletária. Por diversas vezes teve peças interrompidas, vaiadas, canceladas. Tinham que negociar, com a censora, cada palavrão. “Por favor não me tirem o olho do cu!”, bradava Ziembinski.

Produção cultural

À censura dos governos militares se seguiu o descaso dos governos civis. Sua vida foi uma luta pela sobrevivência. Nas poucas vezes em que surgia alguma perspectiva de fomento à produção cultural, não demorava pra que a verba fosse cortada, ou drasticamente reduzida. Viveu os desmontes de Jânio Quadros, dos militares, do governo Collor, e do governo atual. “Ripa, como sempre, nos atores.”

Algumas cenas fazem rir. Outras fazem chorar. Fernando, seu companheiro da vida toda, começa a ter complicações neurológicas em 1987. Internado num hospital em Brasília, começa a ensaiar uma peça com as enfermeiras e os enfermos. Telefonava furioso pra casa: “Eles não querem ensaiar no sábado!” — Fernanda tinha de explicar que não podiam. Nem todos trabalham no sábado.

Nunca desprezou a comédia. Sempre tratou a piada com a deferência que ela merece. “Quem dá conta de um Feydeau está pronto para um Beckett.” Levou graça aos autores mais sisudos, encheu de dramaticidade os textos mais cômicos. Nunca tratou o “povão” com paternalismo — talvez por ter nele suas raízes. Sempre entregou às massas seu biscoito fino. Já com oitenta anos de idade optou por percorrer a periferia com Simone de Beauvoir — onde comprovou sua atualidade. Seu compromisso com a periferia é inarredável.

Seu surgimento em A vida invisível, de Karim Aïnouz, no último terço do filme, comove montanhas. No filme, fui casado com a personagem dela, na primeira parte — então vivida por Carol Duarte. Gosto de pensar que fomos casados em outra encarnação. E talvez sejamos numa próxima. Porque ainda tem todos os filmes e peças que estão por vir. Duvido que Fernanda pare tão cedo. Ainda há tanto a ser dito — e a plateia está lotada.

Quem escreveu esse texto

Gregorio Duvivier

É ator e escritor.

Matéria publicada na edição impressa #27 out.2019 em setembro de 2019.