Literatura infantojuvenil, Rebentos,

O nome da deusa

Biografia de Elza Soares para crianças esparrama por todos os lados a voz, a força, a beleza e a grandeza da artista genial

13dez2023 • 02abr2024 | Edição #77

Elza, o nome que quando se ouve a boca se abre numa alegria e orgulho instantâneos, enquanto a imagem de Elza Soares se forma na mente — que sorte de todas as Elzas terem o nome de uma deusa —, vem na capa desse belo livro com fonte azul clara, fazendo conjunto com o batom, o esmalte das unhas e um microfone um pouco Saturno da ilustração que nos abraça de primeira. Riso satisfeito formado, mergulhamos numa narrativa fluida, que dá conta da poesia e da complexidade da vida da personagem principal, exaltando a todo momento sua presença de força e beleza desmedidas e a maravilha de termos sido contemporâneos dela, uma ode a uma das maiores cantoras que este mundo já viu.


Elza: a voz do milênio, de Nina Rizzi 

O livro de Nina Rizzi, ilustrado por Edson Ikê, vem com a missão importante e delicada de narrar para crianças a história de uma artista genial e pioneira, ícone de várias gerações, na arte e na política, não deixando de lado uma parte que também não pode ser esquecida: os ciclos de violência extrema vividos por Elza. Rizzi chega maestra na missão e nos presenteia com uma narrativa onde os absurdos das violências racistas, de gênero e tantas outras — sim, nossa musa viveu muitas — são o que são e estão ali gravados, para que não reste dúvida, nem se esqueça. Elza carregava essas cicatrizes no seu discurso, mas a música, a força, a beleza da vida de uma artista dessa grandeza predominam e explodem por todos os lados, como deve ser.

A suspensão no ar por ler um trecho de doçura da menina carregando sua lata e cantando divinamente seguido de algum episódio de sofrimento profundo e em seguida um triplo carpado da protagonista — e também aí a personalidade da escrita de Rizzi se mostra — impressiona mesmo quem já conhece os capítulos dessa biografia, pela força sobrenatural da arte em forma de intérprete, de como pode ter sido possível tanto numa pessoa só.

Eu subi morro com lata, comia na lata, meu telhado era de lata, tomava banho com lata, que servia de penico e de copo. Muita gente tem vergonha. Eu, muito pelo contrário, me sinto muito honrada de ter tido uma lata para comer, a lata de goiabada que meu pai amassava e fazia de prato.

Que bom as crianças terem a chance de ler essa história e, a partir dela, escolherem por quais discos, outros livros ou filmes se aprofundar no legado de Elza. O material já publicado sobre ela é extenso e muitos deles vêm como dicas nessa biografia.

Planeta fome

Elza começou sua carreira no programas Calouros em Desfile, apresentado por Ary Barroso. Participou usando um vestido da mãe, ajustado ao seu tamanho por alfinetes.

Elza cantou a música “Lama”. Com sua voz única, conquistou o público, levou o primeiro prêmio e ouviu de Barroso: “Acaba de nascer uma estrela”. Depois desse dia, ela sempre carregava um alfinete, para nunca se esquecer de onde veio.

O alfinete que Elza levava pra vida, para não esquecer do Planeta Fome de onde veio, carregava também todas as músicas que foram e que seriam ainda cantadas e gravadas por ela, penso que como um aviso, um amuleto que representava também a enorme influência que ela teria sobre as mulheres brasileiras e, de maneira bem particular, sobre as cantoras de todos os estilos musicais — mesmo as que não sabem disso.

Elza guardava o discurso político e certeiro de quem sempre soube de tudo e isso está dito nesse livro

Ela guardava o discurso político e certeiro de quem sempre soube de tudo e isso está dito nesse livro que começa com uma dedicatória: “Para Elza e toda a gente que resiste” e vira um convite para escutar imediatamente todas as músicas que ela interpretou. Lembro de um show que vi quando ela não podia se movimentar ou ficar em pé, e Elza ficava numa cadeira, imponente, sambando miudinho sentada, quadril se mexendo de forma quase imperceptível — mas a palavra imperceptível na verdade não cabia em nada dela, o samba gritava e se exaltava com ela e por ela na cadência de cada movimento rítmico do que cantava ali.

As ilustrações de Edson Ikê são feito um carinho esparramado pelas páginas, onde Elza carrega latas d’água e também um planeta cozinhando na panela sobre a cabeça, é timoneira, diva e criança contente com muitos irmãos, derrama lágrimas pesadas e sorri com o olhar tranquilo e satisfeito de quem cantou até o fim, exatamente como queria. Não resta dúvida, Elza, “deus é mulher”.

Quem escreveu esse texto

Karina Buhr

Cantora, compositora e poeta, é autora de Desperdiçando rima (Fábrica231, 2015) e Mainá (Todavia, 2022).

Matéria publicada na edição impressa #77 em novembro de 2023.