Literatura infantojuvenil, Rebentos,

As coisas que tem nas coisas que tem nas coisas

Inventário poético de coleções e memórias nos convida a enxergar a poesia dos pequenos objetos amados e, talvez, esquecidos

01abr2024 • Atualizado em: 01ago2024 | Edição #80
Ilustração de Chiara Carrer [Divulgação]

O alicate que tem na gaveta que tem na mesa que tem na minha casa que tem na minha rua que tem na cidade que tem no país que tem no mundo que tem na galáxia que tem no universo. O livro Pequenos gestos, de Chiara Carrer, faz o convite: vamos olhar as coisas. As coisas amadas, abandonadas (o alicate nunca foi afiado), extraviadas (é um alicate para cutículas, deveria morar no banheiro e está sobre a minha mesa do escritório) e esquecidas (mas nem se deve retirar cutículas, ensinou minha dermatologista). Vamos olhar ao redor, para o enorme mundo ao redor, o mundo das coisas, e do que há nas coisas, para além das utilidades, olhar para a beleza, que é um objeto em si.

Um café com suas mesas, um cabeleireiro com seus espelhos, uma oficina com suas ferramentas. Os objetos habitam os lugares, nossas vidas e, na sua pequeneza, no ínfimo da existência, por exemplo, daquele alicate, mora toda uma vida. Carrer pinta, fotografa, faz colagens e desenhos de objetos de todo tipo, acumulados em todo lugar. E no esquema das coisas, no rastro que as coisas deixam (uma marca de poeira, o caco de um vidro, o vazio na gaveta, a mancha do batom) reside o universo inteiro. Há resquícios e presença entre as marcas de pó, nos espaços vazios da mesa, nos objetos da cozinha em cada creme do armário do banheiro. O belo Pequenos gestos faz um convite para a pequeneza: chega perto, olha ao redor, presta atenção.

Detalhe do mundo

George Steiner, em entrevista para o O belo e a consolação [programa holandês de entrevistas] conta que não passava um dia sem decorar algo novo, sem fazer exercícios de memória, pois a memória é uma grande consolação. A arte de colecionar, muito prima da arte da memoração, traz alívio e conforto, traz algum consolo. Assim, as imagens de Carrer, no tom sépia — às vezes em caderno pautado, como que riscadas numa mesa de bar, outras em foto cuidadosa, pintura ou colagem — percorrem a existência mais banal, mais cotidiana e, atenção: mais singular. 

Nenhum alicate é como o alicate que está sobre a minha mesa, ao lado do copo americano cheio de lápis de cor, no dia de hoje. Steiner fala do maravilhamento, do assombro com o detalhe do mundo; o poeta inglês William Blake, fala do sagrado do ínfimo particular (“minute particular”), o sagrado do detalhe, onde moram Deus e o Diabo.

Sem falar na coleção de motivos para colecionar: para lembrar os caminhos, a pedra de cada praia de cada verão de uma vida inteira; para lembrar as festas, as rolhas de cada vinho bebido; para lembrar a receita, o primeiro caderno e todos os outros que vieram depois. Entre fóssil, pedra e bolas de gude, as coisas guardam seu mistério e fascínio. Eu estava nas montanhas. Havia uma flor lilás e minúscula. Roubei a flor, deixei no caderno. Esqueci. Ontem abri o caderno, e encontrei a montanha.

Diário, inventário, fichário, mostruário, o livro é também um poema. As coisas estão em seu estado de dicionário, substantivas, e quase não há verbos. Pergunta a autora: a coleção é uma paixão, uma obsessão ou uma restituição do sentido de qualquer coisa que faz parte de uma história coletiva?

Carrer segue o rastro das coisas que guardam o cheiro da pessoa que já não está mais aqui 

Passeamos por entre jornais muito velhos envoltos em barbante. Brinquedos antigos e amarelados, um universo inteiro dentro de uma caixa. Carrer escuta e desenha o ruído do cotidiano e segue o rastro das coisas que guardam, por exemplo, o cheiro da pessoa que já não está mais aqui; ou a cintura marcada no vestido florido, ou a poeira do chão sobre as palhas da vassoura que repousa na parede amarela.

Quais histórias os objetos nos contam? Para onde vão os objetos perdidos? Quem mora nos espaços abandonados?

Fotografia e nomeação, pintura e classificação, entre as páginas de Pequenos gestos há uma biblioteca de declínios temporais, de inventários, repetição e singularidade como que querendo dar conta do grande ritmo da vida, segurando o instante, guardando memória. Olhando bem, chegando perto, ninguém é normal, nem mesmo o meu alicate perdido. Carrer desnuda o insólito entre os ponteiros do dia a dia, cada lugar das coisas e os gestos que as acompanham. E a coleção de cardápios e a memória de cada jantar. Modos de comer. Sem contar tudo o que há na mesa da sala.

O livro de Carrer é um convite à visitação, afinal de contas, da vida. E ao colecionar, restaura o assombro.

Quem escreveu esse texto

Luana Chnaiderman de Almeida

Escritora e professora, é autora de Os animais domésticos e outras receitas (Perspectiva).

Matéria publicada na edição impressa #80 em abril de 2024.

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