Rebentos,

Fabular é preciso

Histórias palestinas atravessam o tempo e se renovam em romance sobre uma jovem movida pelo desejo de explorar o mundo

01jun2025 • Atualizado em: 29maio2025 | Edição #94

Alguns livros chegam até nós como a bagagem de quem atravessou desertos e oceanos, sobrevivendo a naufrágios, conflitos e paixões. Viagens fabulosas em terras estrangeiras, da escritora palestina Sonia Nimer, é um desses livros — um relicário de aventuras, tradições e imaginação. Publicado originalmente em 2013, e agora lançado no Brasil pela Tabla com tradução do árabe de Maria Carolina Gonçalves, o romance infantojuvenil ecoa histórias que atravessam o tempo, a literatura e mesmo a catástrofe palestina que segue em curso.

Reconhecida e premiada por seu trabalho em história oral e literatura para crianças e jovens, Nimer tece aqui uma narrativa que tanto reverencia quanto renova a tradição literária árabe. Sua heroína, Qamar, é uma jovem palestina movida pelo desejo de explorar o mundo e disposta a desafiar o determinismo de gênero, a hierarquia social e o isolamento territorial — um eco de As mil e uma noites, ainda hoje uma das principais referências quando se pensa nessa tradição.

“Uma única coisa dominava os meus pensamentos e todo o meu ser: viajar”, afirma Qamar. Depois da morte dos pais, ela parte em uma jornada levando consigo apenas o livro homônimo ao que lemos. Ao longo do caminho, chegando a se disfarçar de homem para atravessar terras desconhecidas, enfrenta sequestro, escravidão e precisa recorrer à sua habilidade de contadora de histórias para sobreviver e se adaptar a culturas diversas, que, pouco a pouco, vão compondo também o nosso mapa imaginativo.

A escritora, etnógrafa e historiadora Sonia Nimer (Divulgação)

Não apenas sobrevive: Qamar inventa e narra a própria história, invertendo o jogo de poder que, historicamente, relegou personagens femininas a papéis passivos nas literaturas do mundo.
Assim, Nimer não só registra contos do chamado folclore palestino, do Oriente Médio e do Norte da África, mas recria — de forma viva e insurgente — a tradição da literatura de viagens e o próprio ato de narrar.

A estrutura do romance é decisiva para esse efeito. Longe da linearidade tradicional, Viagens fabulosas se organiza como uma tapeçaria de histórias entrelaçadas: jornadas dentro de jornadas, encontros que desdobram novas bifurcações narrativas, ecos e refrações que expandem o tempo e o espaço da aventura.

O livro começa com um prólogo em Marraquexe, no Marrocos, mas logo somos transportados para um vilarejo ao norte da Palestina, erguido sobre uma montanha, ao redor de “uma árvore enorme de folhas sempre verdes”; num piscar de olhos, caminhamos pelo deserto, embarcamos em navios ou andamos pelas ruas de Tânger.

Travessia

A escrita de Nimer — preservada com sensibilidade pela tradutora — mantém o ritmo da tradição oral, como se a própria voz de Qamar atravessasse as páginas. Mais do que um romance de aventuras, é uma celebração da palavra como travessia.

Nascida em 1955, em Jenin, na Cisjordânia ocupada, Nimer é também autora de Uma história inventada do começo ao fim (Tabla, 2021), obra infantil igualmente inspirada em contos populares que aciona um universo ainda pouco conhecido da Palestina, cuja imagem, lamentavelmente, ainda é associada à violência e ao conflito. Em entrevistas, Nimer relata que sua relação com as histórias nasceu da necessidade de sobreviver às violências da ocupação israelense, especialmente após sua prisão, nos anos 70 — então uma jovem estudante na Universidade de Birzeit, onde hoje leciona filosofia e estudos culturais.

Por mais brutais que sejam os cercos, há um espaço que resiste, o da memória e da fabulação

Escritora, etnógrafa e historiadora, com doutorado em história oral pela Universidade de Exeter (Inglaterra), e militante pela preservação da cultura palestina, Nimer construiu uma obra — com mais de dez livros de ficção e não ficção — que rejeita tanto a vitimização quanto a exaltação vazia. Seu projeto literário busca modos de afirmar a agência, o humor e a imaginação de suas personagens, em geral mulheres. Em Viagens fabulosas, essa proposta atinge seu ápice: a Palestina é ponto de partida e de chegada, mas o percurso importa tanto quanto o destino.

A publicação do romance neste momento histórico adquire outras camadas. Enquanto a limpeza étnica
em Gaza e na Cisjordânia avança, fazer circular uma obra como esta — repleta de amor pela cultura árabe, de crítica às opressões e de fé no poder da imaginação — é um ato político. A leitura nos devolve essa verdade essencial: por mais brutais que sejam os cercos, há sempre um espaço que resiste, o da memória e da fabulação. E enquanto houver quem conte suas histórias, a derrota jamais será completa.

Quem escreveu esse texto

Rafael Domingos Oliveira

historiador, escreveu Vozes afro-atlânticas e organizou Gaza no coração: história, resistência e solidariedade na Palestina, ambas publicadas pela Elefante.

Matéria publicada na edição impressa #94 em junho de 2025.

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