Literatura japonesa,

Trabalhadores do Japão, uni-vos

“Kanikõsen”, de Takiji Kobayashi, obra importante da literatura proletária japonesa, é lançado em versão para o português e em uma adaptação para mangá

18abr2022 | Edição #57

No dia 20 de fevereiro de 1933, Takiji Kobayashi foi detido nas proximidades de uma estação de trem no bairro de Akasaka em Tóquio. Morreu horas depois, vítima da tortura sofrida na delegacia. Tinha 29 anos. Kobayashi era secretário-geral da União dos Escritores Proletários do Japão e membro do Partido Comunista Japonês.

Kanikõsen é o seu trabalho mais conhecido, também adaptado para o cinema. Publicado em 1929, teve sucesso imediato. Descreve de forma crua a vida dos trabalhadores japoneses no final do século 19 e início do século 20. Impossível não lembrar de Charles Dickens descrevendo a miséria da classe trabalhadora durante o início da industrialização na Inglaterra. Mas Kanikõsen vai mais fundo.

    
Kanikōsen: o navio caranguejeiro, de Takiji Kobayashi, originalmente publicado em 1929 e lançado em português, e sua adaptação em mangá Kanikõsen. O navio dos homens, de Gõ Fujio e Takiji Kobayashi, feita em 2006

O livro aborda especificamente o horror de viver e trabalhar num barco-fábrica caindo aos pedaços enviado ao norte, no limite das pretensões territoriais japonesas ante a Rússia, no mar da distante e gelada Kamtchatka. Escoltado por um contratorpedeiro da Marinha imperial, o navio pescava e enlatava caranguejos. Mas, na verdade, afirmava a presença japonesa numa área em disputa com a vizinha Rússia. O “negócio” dos caranguejos revela muito da mentalidade das elites japonesas nesse período, após a Primeira Guerra Mundial, quando suprimiram progressivamente a democracia e iniciaram um processo de expansão territorial, em busca de matérias-primas para o processo de industrialização nascente, que faria o Japão invadir territórios das atuais China, Rússia e Coreia. 

Literatura proletária

Kanikõsen é um exemplo da chamada literatura proletária japonesa, muito conhecida no início da década de 30 e depois violentamente perseguida no Japão cada vez mais nacionalista e pouco democrático. Um traço comum entre seus autores é o aspecto jornalístico de seus escritos, que lhes confere uma característica de denúncia. Kanikõsen aponta também o caráter internacionalista de uma revolução ao mostrar como trabalhadores japoneses aprendem com a experiência dos trabalhadores russos comunistas (atenção: daqui para a frente contém spoiler), fazendo uma greve que seria duramente reprimida. Inútil: em outros barcos dessa frota pesqueira movimentos grevistas também haviam ocorrido com a circulação de “panfletos vermelhos”. 

Ao ler algumas passagens é impossível discordar do escritor Shiga Naoya (1883- 1971), lembrado no posfácio de Ivan Lopes, que também assina a tradução do japonês e destaca algumas características da literatura proletária: “caráter panfletário, a ausência de delicadeza estética, o pouco desenvolvimento de suas personagens, além de uma simplicidade exagerada na exposição dos temas”.

Assim como no realismo socialista, em Kanikõsen o sujeito da narrativa é o povo. E a arte é destinada ao trabalhador. O estilo é vigoroso, direto, compreensível: nada de aventuras estilísticas ou concessões ao formalismo das vanguardas. Kobayashi evita a caracterização individual que se comprova pela ausência de nomes dos personagens, como também notou Ivan Lopes. Assim como no realismo socialista, o sujeito de Kabayashi é o trabalhador em escala global, pois todos são igualmente explorados pelos capitalistas. 

A adaptação deste best-seller aos quadrinhos foi feita por Gõ Fujio, desenhista desconhecido do público brasileiro. O livro faz parte de uma coleção com adaptações para o mangá de obras literárias ou de interesse geral de autores japoneses e estrangeiros. A bem cuidada edição brasileira manteve seu formato original de leitura, da direita para a esquerda.

O original e a adaptação foram feitos em épocas diferentes: o livro em 1929, o mangá em 2006. O primeiro é um libelo contra a opressão e um convite à revolta. É o que se chama de internacionalismo proletário, inaugurado por Karl Marx e Friedrich Engels no Manifesto Comunista de 1848: “Trabalhadores do mundo uni-vos”. O segundo é um muito bom livro em quadrinhos para o público juvenil e adulto interessado em ter acesso a obras em formato mangá.

Isso talvez explique por que Fujio deixou de utilizar na sua adaptação alguns temas constantes no livro de Kobayashi, mas impensáveis na coleção e para o público a que se destina: detalhamento de torturas de jovens, erotização dos grumetes, estupro de menores, menções libidinosas e desrespeitosas às mulheres. Mas outros temas, digamos mais politizados, também não constam do mangá, como a situação do trabalhador japonês nas minas, estradas de ferro, menções ao contato entre trabalhadores japoneses e russos e o relato de uma bem-sucedida pregação comunista, a semente da tentativa de greve. Na hábil adaptação de Fujio, é como se o navio fosse uma miniatura do cosmos e uma demonstração da luta do bem contra o mal no Japão. Do desumano contra o humano. E uma promessa na vitória do bem. Já em Kobayashi havia um sentido de história mais universal, definido pela luta de classes que opunha capitalistas e trabalhadores em escala global. O navio é parte de uma teia global de relações.

A adaptação para o mangá cumpre sua função, espelha as preocupações de Kobayashi ao trazer o relato detalhado do universo do trabalhador japonês no início do século e a perspectiva nacionalista e capitalista das elites. Uma aula sobre o momentaneamente bem-sucedido imperialismo japonês na década de 30. O desdobramento desse processo foi a Segunda Guerra, com a derrota total do Japão e a perda de todas as suas pretensões territoriais para seus vizinhos, especialmente a Rússia. Mas o tempo do livro são os anos 20 e 30. Depois, finda a guerra na Europa, o Japão terá seu encontro marcado com as grandes potências. Nuvens negras no horizonte do sol nascente.

Essa editoria tem apoio da Japan House São Paulo.

Editoria com apoio Japan House São Paulo

Desde 2019, a Japan House São Paulo realiza em parceria com a Quatro Cinco Um uma cobertura especial de literatura japonesa, um clube de leitura e eventos especiais.

Quem escreveu esse texto

André Toral

Publicou A alma que caiu do corpo (Veneta)

Matéria publicada na edição impressa #57 em fevereiro de 2022.