Política,

O som e a fúria

Sai no Brasil o livro que abalou a república de Donald Trump ao revelar as suas extravagâncias e os complôs palacianos em que vive

15nov2018 | Edição #10 abri.2018

Ao escrever sobre o presidente Donald Trump, o escritor britânico Martin Amis citou uma certa “Lei Barry Manilow”, referindo-se ao meloso cantor norte-americano, segundo a qual “todo mundo que conhecemos acha o Barry Manilow absolutamente terrível. Mas todo mundo que não conhecemos acha que ele é ótimo”.

O mundo que não conhecemos escolheu Trump para ser o 45º presidente dos Estados Unidos em 2016. Foram 62.984.825 votos, 46,1% do total, ante 65.853.516 (48,2%) para Hillary Clinton — pelo bizantino sistema de votação daquele país, ela ganhou no pleito popular, mas ele levou a vitória no Colégio Eleitoral, onde teve 304 votos, contra 227 da democrata.

Um dos pilares da sua campanha em 2016 e da atuação na Casa Branca desde janeiro de 2017 tem sido a hostilidade aberta à mídia, que ele chama de produtora de fake news. Seu meio de preferência é o Twitter, que ele domina como poucos.

Ali, em disparos de até 140 caracteres, revela ou reforma políticas de governo, contrata e demite assessores, mente e faz desmentidos e até inventa palavras: numa noite, digitou “Apesar da constante cobertura negativa da mídia covfefe”. Óbvio erro de digitação, o neologismo entrou para o léxico com múltiplos usos e significados.

Do outro lado está a mídia liberal das costas educadas e ricas dos Estados Unidos, liderada pelos jornais The New York Times e The Washington Post, a revista The New Yorker e a emissora CNN. Desde a eleição, esses veículos se reposicionaram como oposição.

O viés domina a sua cobertura política e não é negado por seus dirigentes. Virou lema —“Democracy dies in darkness” (a democracia morre nas trevas) é o do Post, e “The truth is more important now than ever” (agora, a verdade é mais importante do que nunca), a do Times —, atraiu leitores e tem sido bom para os negócios.

A contar da posse do presidente, as assinaturas digitais dos dois jornais dispararam. Chegaram a 2,6 milhões, aumento de 45% no período, no Times, e bateram 1 milhão de assinantes no Post. A indústria criou até um termo para o fenômeno: “Trump bump”, o salto de Trump.

Foram dezoito meses de conversas, a primeira com Trump ainda candidato. Depois da posse, Wolff teria conduzido 200 entrevistas

O primeiro produto literário dessa guerra é o livro Fogo e fúria: por dentro da Casa Branca de Trump, que sai agora no Brasil, depois de vender 1,7 milhão de exemplares em apenas três semanas após seu lançamento nos EUA, em janeiro. O autor é o jornalista Michael Wolff, que nos últimos anos especializou-se em cobrir a mídia.

Segundo escreve, foram dezoito meses de conversas, a primeira delas ainda com Trump candidato, em maio de 2016, em Beverly Hills. Depois da posse, Wolff se instalou num sofá na Ala Oeste da Casa Branca, onde está o Salão Oval, em que ficam os membros mais próximos do gabinete do presidente, e de lá teria conduzido duzentas entrevistas. Tudo o que ele fez para conseguir isso, diz, foi pedir ao próprio Trump, que aquiesceu displicentemente.

O autor reconhece que teve um acesso raro e sem precedentes: “Embora o governo Trump tenha praticamente transformado a hostilidade à imprensa em uma política, foi também mais aberto à mídia do que qualquer outro governo recente dos Estados Unidos”.

House of Cards

A liberdade com que Wolff se movimentava lembra a do escritor fictício Tom Yates (o ator Paul Sparks), personagem da série House of Cards, que é contratado para escrever a biografia do presidente Frank Underwood (Kevin Spacey) e acaba se envolvendo com a primeira-dama, Claire (Robin Wright). Não há notícia de que Wolff tenha tido um caso com Melania Trump, mas ele narra outros detalhes saborosos dos primeiros dias de administração, dominados por intrigas, grupos que não se falam e trapalhadas. Elenca as características preocupantes de Trump. Muitas foram descritas nas inúmeras reportagens que se seguiram ao lançamento do livro.

As principais delas: Trump não lê, não só livros, mas nem os resumos de uma página, preparados por assessores; muitos acham que é semianalfabeto e tem baixa capacidade de compreensão; ao ser informado de que ganhara a eleição, ficou assustado como se tivesse visto um fantasma, e sua mulher chorou de tristeza. Segundo o livro, o empresário esperava que a exposição da corrida eleitoral o ajudasse nos negócios, mas nunca que fosse o vencedor e que tivesse de fato  que comandar o país.

Outras, mais bizarras: tem medo de ser envenenado, daí preferir comer hambúrgueres do McDonald’s, que já estão prontos quando chega; pelo mesmo motivo, ninguém pode tocar em suas roupas; os Trump são o primeiro casal presidencial a dormir em quartos separados desde os Kennedy; ele acha que a melhor conquista é levar mulheres dos amigos para a cama.

Bannon

Mas, se Trump é o ator principal, fica claro que o autor vê em Steve Bannon o personagem mais interessante. Ex-banqueiro de investimentos e produtor de Hollywood, ex-diretor-executivo do site de extrema direita Breibart News e simpatizante do ideário racista dos supremacistas brancos, Bannon, 64, tem ascensão e queda fulminantes na Era Trump.

Passa de estrategista da campanha a artífice da vitória inesperada, a principal conselheiro presidencial e, finalmente, a príncipe caído do reino de Trump. Talvez por um cacoete de quem cobre mídia há tanto tempo — Wolff escreveu uma ótima biografia de Rupert Murdoch, dono da Fox News e do Wall Street Journal —, o autor faz de Bannon o verdadeiro fio condutor.

Ele descreve uma relação bipolar entre os dois. Depois das 18h, quando costuma se recolher ao seu quarto e onde passa as próximas horas vendo televisão, tuitando e, muitas vezes, jantando hambúrgueres, Trump costuma ligar para um assessor para falar mal dos outros, num rodízio diário, diz Wolff. Bannon era um dos alvos preferidos das chamadas.

“Bannon era desleal (para não mencionar que a aparência estava sempre um lixo)”, escreve Wolff, citando Trump. O assessor fazia por merecer: passava o dia fofocando e especulando, de acordo com o autor, e muitas vezes referia-se a si próprio como “presidente Bannon”. Tentava minar o poder do casal Jarvanka, neologismo que inventou para se referir a Jared Kushner, genro de Trump, e sua mulher, Ivanka, a filha mais influente.

O livro revela que os Jarvanka têm um pacto: se a oportunidade aparecer, Ivanka Trump concorrerá à Presidência, talvez até sucedendo ao pai. A primeira mulher presidente dos Estados Unidos será ela, não Hillary Clinton — eis o pensamento do casal. Ao ouvir tais planos, Bannon se horroriza. Para ele, Ivanka é “burra como uma porta”.

Em outro episódio, Bannon gosta quando é escolhido personagem de capa da Time (com a chamada “O Grande Manipulador”), irritando o chefe. Para o presidente, escreve Wolff, a capa da revista era um jogo de soma zero: se outra pessoa estava nela, era porque Trump não estava.

Bannon fez os cálculos: há 33% de possibilidade de Trump sofrer impeachment, 33% de ser deposto e 33% de terminar o mandato

Bannon deixou a Casa Branca em agosto, depois que um militante racista atropelou um grupo que protestava contra o comício de supremacistas brancos, ferindo dezenove pessoas e matando uma mulher em Charlotesville, na Virgínia. Num de seus comentários sobre a tragédia, Trump culpou os dois lados igualmente e foi criticado no mundo todo por isso.

O ex-conselheiro voltou para o Breibart News. Ali, fez cálculos: há 33,3% de possibilidade de Trump sofrer impeachment pela investigação de conluio com os russos para fraudar a eleição a seu favor, 33,3% de ser deposto pela 25ª Emenda (sobre incapacitação do mandatário para exercer o cargo) e 33,3% de terminar o mandato aos trancos e barrancos.

E acalenta um sonho: ser o sucessor de Trump na Presidência. 

Quem escreveu esse texto

Sérgio Dávila

Jornalista, escreveu Diário de Bagdá (DBA).

Matéria publicada na edição impressa #10 abri.2018 em junho de 2018.