Direito, Política,

O legado incerto da Lava Jato

Thriller jurídico ou quase obra de autoajuda, livro de Dallagnol merece leitura desarmada

01jul2017 | Edição #3 jul.2017

A Operação Lava Jato é um evento político-jurídico extraordinário, rodeado de agudas controvérsias. “Para problemas inéditos, soluções inéditas.” A máxima sintetiza tanto a ambição quanto a armadilha que a operação carrega consigo. No seu episódio mais célebre, quando o juiz Sérgio Moro deu publicidade a interceptações telefônicas de Lula e Dilma Rousseff, em consonância com sua filosofia de que ações judiciais contra a corrupção precisam angariar apoio da opinião pública para prevenir retaliações, a alegada excepcionalidade do caso foi o que sustentou a posição do juiz. Representado em processo disciplinar, Moro foi inocentado com base em heterodoxa tese jurídica. Nas palavras do desembargador Rômulo Pizzolatti, do Tribunal Regional Federal da 4ª Região: “As investigações e processos criminais da chamada Operação Lava Jato constituem caso inédito, trazem problemas inéditos e exigem soluções inéditas”. 

Em tom santimonial, o livro desfila as virtudes do autor e a sua abnegada vontade de justiça

A decisão não deixou de ser atacada por um voto vencido, do desembargador Rogério Favreto: “O Judiciário abdica da imparcialidade, despe-se da toga e veste-se de militante político”.

Um “caso sísmico”, nas palavras de Deltan Dallagnol, protagonista, ao lado de Sérgio Moro, da maior operação anticorrupção de que se tem notícia na história das democracias. Uma multiplicidade de atores estatais, em diversas camadas da Federação, dedicam-se a ela: uma força-tarefa do Ministério Público Federal que soma mais de cinquenta servidores públicos, e aproximadamente cinquenta da Polícia Federal; mais de cem agentes da Receita Federal, em equipes de inteligência e fiscalização; julgadores em todos os níveis: um juiz de primeira instância, três desembargadores federais, cinco ministros do Superior Tribunal de Justiça e cinco ministros do Supremo Tribunal Federal; e, por fim, a atuação paralela do Tribunal de Contas da União (TCU), da Controladoria-Geral da União e do Conselho Administrativo de Defesa Econômica. Um complexo concerto interinstitucional com mais de trezentas pessoas.

A luta contra a corrupção, de Deltan Dallagnol, descreve sua experiência, sua avaliação e suas propostas de combate à corrupção no Brasil. Um livro com linguagem direta e confessional, que busca falar com o grande público em defesa da Operação Lava Jato e conquistar apoio ao projeto das “10 medidas contra a corrupção”, projeto de lei elaborado por membros do Ministério Público Federal com a intenção de neutralizar os defeitos legais e processuais que facilitam a impunidade no país.

Há duas maneiras de ler o livro. A primeira é como relato de um personagem que acompanha a Operação Lava Jato desde o seu despretensioso começo, que se espantou com a ordem de grandeza que o caso assumiu e que continua à frente de suas ações estratégicas nas frentes jurídica, política e midiática. Um thriller jurídico de não ficção, que conta suas frustrações e esperanças na luta contra perigosas forças econômicas e políticas da democracia brasileira. 

A segunda é como livro de quase-autoajuda, versado em tom santimonial, que desfila as virtudes individuais do autor e sua abnegada vontade de justiça e de um mundo melhor. A essa soberba moral somam-se alguns diagnósticos gerais (“o descaso pelas regras sociais é um dos tristes efeitos da situação ética do país”) e jurídicos (“a jabuticaba da prescrição retroativa”) sobre o Brasil, postos em contraste com “um sistema de Justiça que realmente funciona”, referência ao direito penal estadunidense, que Dallagnol conheceu e idealizou quando fez seu mestrado em Harvard. Desse conjunto narrativo extrai a justificativa para as “10 medidas contra a corrupção”.

O livro é as duas coisas. Merece leitura desarmada por qualquer um que se interesse não apenas em conhecer a visão do personagem sobre a gênese e a evolução da Operação Lava Jato, mas também em compreender as dificuldades de manejar um sistema processual deficiente contra criminosos de colarinho-branco que operam tão bem as suas lacunas e válvulas de escape em direção à impunidade. 

Ponto de vista particular

Não é, obviamente, o livro de um observador desinteressado nem de um cientista social que elabora diagnóstico denso das estruturas da corrupção no país e indica uma terapia robusta para a sua cura, mas de alguém que fala desde um ponto de vista particular, com os limites e vantagens que esse lugar lhe proporciona.

É fascinante vislumbrar o sistema de justiça tentando se reinventar e manter a integridade institucional em meio à guerra de comunicação nas mídias tradicionais e nas mídias sociais, em meio ao contra-ataque dos agentes políticos e econômicos implicados nos casos de corrupção e da guerra reputacional que se estabelece nessa esfera pública multifacetada. Mas ainda não temos clareza sobre o legado dessa “reinvenção”. 

Problemas inéditos podem pedir soluções inéditas, desde que sejam dentro da lei

Independentemente de suas melhores intenções, os perigos que traz para o Estado Democrático de Direito não são menores do que a própria corrupção, “esse serial killer que mata em silêncio”. Problemas inéditos podem pedir soluções inéditas, desde que dentro da lei. Uma recomendação que o livro obviamente acolhe, mas que ainda não diz muito sobre a experiência real da Lava Jato, um processo longe de terminar.  

Quem escreveu esse texto

Conrado Hübner Mendes

Professor de direito da USP, é autor de Constitutional Courts and Deliberative Democracy (Oxford).

Matéria publicada na edição impressa #3 jul.2017 em junho de 2018.