Política,
Do horror ao mal-estar
Livro mostra pontos de contato entre a escravidão norte-americana, o nazismo alemão e o sistemas de castas na Índia
23abr2021 | Edição #45Isabel Wilkerson não usa a palavra racismo há anos. Ela acredita que o termo não dá conta de explicar o sistema de opressão americano. Enquanto escrevia o seu aclamado primeiro livro — The Warmth of Other Suns: The Epic Story of America’s Great Migration (O calor de outros sóis: a história épica da grande migração da América, 2010) —, a jornalista preferiu se referir ao sistema como “casta”, uma palavra que costumamos, com certo preconceito, associar à Índia e nunca aos Estados Unidos, chamado por muitos como o país mais livre do mundo apesar de uma parcela de seus cidadãos ser enquadrada como “intocável”. Wilkerson finalizou o livro, mas a escrita já havia despertado nela um profundo interesse pela complexidade desse sistema.
Um dos catalisadores para que o novo projeto saísse do papel foi a morte de Trayvon Martin, jovem negro que foi alvejado por um vigia em 2012. Nos anos seguintes, outros casos emblemáticos — como o massacre em uma igreja tradicionalmente negra em Charleston em 2015 e a marcha de supremacistas brancos em Charlottesville em 2017 — expuseram a falácia da chamada era “pós-racial” defendida após a eleição de Barack Obama em 2008. A chegada do primeiro presidente negro à Casa Branca não era o reflexo do fim do racismo. Pelo contrário, seria o início de uma avalanche de revolta que culminou em uma série de episódios brutais contra grupos marginalizados e na eleição de Donald Trump em 2016.
Índia e Alemanha
Para entender essa avalanche, Wilkerson tomou o castismo como o fio condutor da história da opressão norte-americana. Essa é a tônica de Casta: as origens do nosso mal-estar, livro publicado originalmente em agosto de 2020 e recém-lançado em português pela editora Zahar no Brasil. Para a autora, “raça”, nos Estados Unidos, é o agente visível da força invisível da casta. A raça é o que se pode ver, seus traços físicos, que ganharam um significado arbitrário, e a casta é a infraestrutura que mantém cada grupo em seu lugar.
Wilkerson recorre à Índia e à Alemanha nazista para entender o fenômeno e as possíveis semelhanças com o sistema americano. A jornalista entrelaça abordagens e percepções da antropologia, da história, da sociologia, da psicologia, da filosofia e da ciência política, e recheia o livro com diferentes episódios vividos por pessoas comuns e personalidades da história mundial. São essas dezenas de relatos — alguns prosaicos, outros extremamente perturbadores — que dão sabor ao livro. Não é, no entanto, uma obra de fácil digestão.
Sabemos do assassinato monstruosamente rápido de 6 milhões de judeus e 5 milhões de não judeus durante o Holocausto. O que talvez não conheçamos tão bem é o processo de desumanização deliberada que deu início ao horror. Afinal, as Leis de Nuremberg não foram instituídas da noite para o dia. Nas fases iniciais do Terceiro Reich, um comitê de funcionários nazistas se reuniu para impor uma nova e rígida hierarquia que isolaria os judeus dos arianos. Os homens ali reunidos em 1934 não estavam planejando nem se encontravam em posição de planejar o extermínio. Franz Gürtner, ministro da Justiça do Reich, abriu a sessão apresentando um memorando que expunha em detalhes as medidas dos Estados Unidos para lidar com seus grupos marginalizados e proteger o bloco dominante de cidadãos brancos. Ao debater “como institucionalizar o racismo no Terceiro Reich”, escreveu James Q. Whitman, historiador de direito de Yale, eles “começaram se perguntando como os americanos faziam”. Os nazistas reconheciam os paralelos, ainda que muitos americanos não.
Para a autora, ‘raça’, nos Estados Unidos, é um agente visível da força da casta
Os nazistas ficaram impressionados com o linchamento dos negros americanos, comumente acompanhado de métodos de tortura e mutilações rituais. Hitler sentia especial admiração pela “habilidade [americana] de manter um ar de grande inocência na esteira das mortes em massa”. Em 1916, Madison Grant, importante eugenista americano que fez parte do círculo do presidente Roosevelt, publicou um manifesto pela limpeza do conjunto genético dos indesejáveis, ou seja, dos negros americanos. Ao ler o livro, o Führer escreveu uma nota pessoal ao autor: “É minha bíblia”.
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Buscando entender esse intenso processo de desumanização, Wilkerson identificou oito pilares comuns às três hierarquias. São princípios que se entranharam profundamente na cultura e no subconsciente coletivo de quase todos os habitantes e são o que permite o funcionamento da casta. O primeiro é o pilar da vontade divina. Em um antigo texto hinduísta, Manu, o onisciente, estava meditando quando foi interpelado por humanos, que pediam que definisse a estratificação social do país. Os indianos interpretaram então que os intocáveis seriam aqueles que pagavam um triste carma do passado e nem sequer faziam parte do sistema de castas. Eram párias.
Nasce na Bíblia o mito que justificou a escravização de africanos por europeus. Certa feita, Noé embriagou-se e deitou-se nu dentro de sua tenda. Cam, um de seus filhos, viu a nudez do pai e contou aos dois irmãos. Quando Noé despertou da embriaguez e soube o que Cam havia feito, amaldiçoou Canaã, o filho de Cam, e as gerações seguintes: “Maldito seja Canaã! Que ele seja, para seus irmãos, o último dos escravos!”. A partir da Idade Média, alguns intérpretes do Antigo Testamento descreveram Cam como tendo a pele negra e traduziram a maldição de Noé contra ele como uma maldição contra todos os seres humanos de pele escura. Os europeus defendiam, assim, que os negros haviam sido condenados à escravização pelo emissário de Deus.
Esse é um mito que se entrelaça com a história brasileira. E é impossível ler Casta sem tentar estabelecer paralelos com nossa realidade. Ao ler sobre as implicações desse mito no processo de subalternização de negros nos Estados Unidos, logo me lembrei do famoso quadro de Modesto Brocos, pintura recorrente nos estudos sobre o branqueamento racial no Brasil. O título da obra é nada menos que A redenção de Cam (1895). No quadro, Brocos ilustra que só há um fim para a maldição proclamada na escritura cristã: o extermínio da população negra.
O segundo pilar estabelecido por Wilkerson é o da hereditariedade. O elemento que diferencia as castas — no caso dos americanos, a raça — deveria ser passado de geração em geração. Assim, famílias judias só gerariam filhos judeus na Alemanha nazista; famílias de intocáveis na Índia geram apenas outros intocáveis; e, nos Estados Unidos, o vestígio de uma única gota de sangue negro é suficiente para a completa desumanização. O terceiro pilar é a endogamia, algo que foi instituído em diferentes leis do Sul americano e popularizado mais informalmente na Índia e na Alemanha. A endogamia era uma prática bastante vigiada e referia-se a casamentos. O estupro de mulheres negras por homens brancos ou de judias por soldados nazistas era, portanto, ignorado.
Os nazistas ficaram impressionados com o costume americano de linchar negros
O quarto pilar é o da pureza. Nele, qualquer aproximação física entre indivíduos de castas diferentes é suficiente para gerar uma conspurcação. É onde vemos como afro-americanos e judeus ganham a pecha de, literalmente, intocáveis. Wilkerson relata uma série de episódios em que ambientes tiveram de ser desinfectados após a entrada de pessoas negras. Brancos, principalmente no Sul do país, antes ou depois das leis de Jim Crown, recusavam-se a habitar o mesmo ambiente que afro-americanos.
A hierarquia ocupacional é fundamental para o funcionamento da casta. É preciso que os indivíduos das castas mais baixas estejam relegados “aos trabalhos mais sujos, degradantes e indesejáveis daquela sociedade”. Nos Estados Unidos, o máximo que os que estudavam podiam almejar era dar aulas, cuidar de doentes, atender às necessidades de saúde ou sepultar outras pessoas da casta subordinada. Além de, claro, servir de bobo da corte — o que, em terras brasileiras, o professor Adilson Moreira chama de racismo recreativo. O papel de bobo da corte é o que reforça a caricatura negra e alivia as atrocidades. Se estavam acorrentados e felizes, como alguém poderia dizer que eram maltratados?
Outro pilar é a desumanização, a recusa da subjetividade. Assim como a Alemanha culpou os judeus pela derrota na Primeira Guerra Mundial, pela vergonha e pelas dificuldades econômicas que recaíram sobre o país ao fim do conflito, os Estados Unidos culparam os negros por muitas de suas mazelas sociais. A individualidade é a primeira característica que os estigmatizados perdem. Com a humanidade negada, é mais fácil justificar as atrocidades. E é o que liga ao sétimo pilar: o terror como imposição, a crueldade como forma de controle. A violência era um mecanismo de terror que fazia parte dos cálculos da escravidão americana, do nazismo alemão e do castismo indiano. Por fim, há o pilar da superioridade e da inferioridade intrínsecas — assim como negros já nascem amaldiçoados, ou seja, inferiores, brancos já nascem superiores. É o que acontece também com os brâmanes, a casta superior na Índia, e com os ditos arianos na Alemanha nazista.
Reparação
Em entrevistas, Wilkerson comenta que a Alemanha foi o primeiro lugar para o qual resolveu viajar para escrever o livro. Queria entender um sistema de castas que surgira rapidamente, num país que desde o pós-guerra vem buscando expiar seus pecados. Na Alemanha, alguns nazistas que não se suicidaram foram capturados e submetidos a julgamentos. Muitos foram enforcados pelos Aliados por seus crimes contra a humanidade. Nos Estados Unidos (e no Brasil), aqueles que sequestraram e mantiveram milhões de cativos durante a escravidão, condenando-os à morte lenta, não foram responsabilizados nem enfrentaram julgamentos. Pelo contrário, os proprietários de escravos receberam indenizações. Na Alemanha, foi e continua a ser paga uma reparação às vítimas do Holocausto.
Em um museu de Berlim, Wilkerson viu um vídeo da volta de Hitler após tomar Paris, em 1940. Uma multidão radiante assistia ao desfile. “As pessoas reunidas naquele dia em Berlim não eram boas nem más. Eram humanos, inseguros e suscetíveis a uma propaganda que lhes dava uma identidade em que acreditar, que os fazia se sentir especiais e importantes”, escreve. E é assim que a autora interpreta aqueles que celebravam as atrocidades e o horror contra as castas inferiores, seja na Índia, seja nos Estados Unidos, seja na Alemanha nazista. A eleição de Trump tornou-se um espelho rachado em um país que não havia sido forçado a buscar suas origens dessa maneira em mais de uma geração e agora via a si mesmo, quiçá pela primeira vez, tal como realmente era. A chegada de Trump à Casa Branca representou a culminância de forças que vinham sendo construídas havia décadas. O que se poderia dizer do Brasil de Jair Bolsonaro?
Matéria publicada na edição impressa #45 em abril de 2021.