Política,

Como votos viram deputados

Obra explica o quebra-cabeça da representação política no Brasil

05nov2018 | Edição #1 mai.2017

Jairo Nicolau é possivelmente nosso principal estudioso dos sistemas eleitorais e partidários, com larga e respeitada produção acadêmica. Agora lança uma obra de divulgação, destinada aos interessados em compreender como elegemos nossos políticos. Representantes de quem? Os (des)caminhos do seu voto da urna à Câmara dos Deputados explica esse mecanismo: representação proporcional por lista aberta, responsável pela escolha de deputados e vereadores. 

O tema ganha relevância no momento em que se debate um eventual novo sistema eleitoral — proporcional de lista fechada, aquele em que a definição da ordem dos candidatos (e, portanto, sua chance de serem eleitos) é prerrogativa dos partidos, não mais dos eleitores. Nicolau registra que sua adoção já foi tentada outras vezes, sem sucesso, e que o sistema vigente figura entre as mais longevas instituições do país. Se longevidade por si só não atesta benignidade, indica o quão difícil é entrar em acordo sobre alternativas — seja a lista fechada, o voto distrital, o “distritão” ou sistemas mistos.

Alvo de diversas críticas sem sentido, a lista fechada permitiria substituir várias campanhas por apenas uma

Em 2007 e novamente neste ano, grande polêmica se produziu em torno da primeira dessas alternativas, com partidos tão diferentes como o PT e o DEM a apoiando, o PMDB se dividindo e o PSDB oscilando entre o apoio e a rejeição. Nicolau, porém, não discute muito essas controvérsias. No atual debate público, a lista fechada é acusada de ser um instrumento para: (1) proteger políticos envolvidos em escândalos, evitando o escrutínio popular, valendo-se apenas do voto na legenda; (2) fortalecer as direções partidárias, em detrimento dos grupos e lideranças minoritários, já que os dirigentes poderiam entronizar seus favoritos no topo da lista, relegando desafetos às últimas posições; (3) retirar do eleitor o direito de escolher seus candidatos preferidos, compelindo-o a comprar um pacote fechado.

A primeira das críticas não faz o menor sentido: um efeito inegável da lista fechada é a explicitação ao eleitor dos prováveis resultados de seu voto. Como a lista é informação pública, disponível desde o início da eleição, sabemos quem tem maior ou menor chance. Se, por exemplo, um partido costuma eleger dez deputados em determinado Estado, basta verificar quem são os dez primeiros da lista registrada para avaliar o resultado provável. Se a lista inclui um nome contaminado, acaba por infestar os demais, e o eleitor tem a oportunidade de buscar um pacote no qual não haja frutas podres.

A segunda crítica ignora que as direções já privilegiam seus favoritos com mais recursos financeiros e de máquina partidária. Com um agravante, no caso da lista aberta: como o número de candidatos é grande, fica inviável para o eleitor se informar sobre quem obtém mais recursos, quem tem mais tempo na TV, mais braços da militância etc. Em suma, o fechamento da lista gera mais transparência do que o sistema atual.

Esse argumento leva à relativização da terceira e mais consistente crítica: a perda do direito de escolha. Embora hoje o eleitor de fato possa escolher o seu candidato, não tem como projetar o provável resultado. Se ele obtiver mais votos do que o mínimo necessário para se eleger (o chamado quociente eleitoral), favorece outros candidatos, alguns dos quais não gosta e cujo beneficiamento não tem como mensurar, já que lhe é praticamente impossível saber como os demais eleitores votarão. No outro extremo, se o seu candidato for pouco votado, sua votação (somada à de tantos outros) contribui para a eleição de alguém.

Nicolau, além de observar que muitas das mudanças no sistema eleitoral vêm pela mão do Judiciário, ou em reação a suas decisões, avança também sobre outros tópicos importantes: coligações em eleições proporcionais (e seus efeitos distorcivos), a razão de candidatos bem votados não serem eleitos, a memória do eleitor, a fragmentação partidária e a desproporcional representação dos Estados na Câmara dos Deputados.

Também sugere o que lhe parece razoável em termos de reforma política. Por exemplo, a proibição de coligações em eleições proporcionais (evitando “carona” de partidos menores) e uma cláusula de barreira modesta (1,5% dos votos nacionais) para reduzir a proliferação de partidos.

Faltou uma discussão sobre a questão do financiamento eleitoral, apesar de o autor observar que este não era seu objeto de análise. Ocorre, contudo, que essas regras têm implicações no que tange ao dinheiro. A lista aberta encarece muito a eleição. Os candidatos fazem campanha individual contra os próprios companheiros de partido e além de seus redutos particulares, buscam votos num amplo colégio eleitoral, acarretando muitos gastos. 

O voto distrital limita a disputa a um território reduzido, mas afeta a representação das minorias

A lista fechada substitui diversas campanhas no varejo por uma só. Já o chamado voto distrital resolve o problema territorial: a disputa passa a ocorrer num espaço mais reduzido, onde uma única pessoa é eleita e concorre apenas com adversários de outros partidos. Neste último caso, há implicações sérias, como a sub-representação de minorias, às quais Nicolau dedica maior atenção. A opção do distritão (os candidatos individualmente, independentemente dos partidos, são eleitos na ordem em que são mais votados) tenderia a piorar tudo o que já temos, apesar de ser o mais fácil de entender. A disputa se exacerbaria, aumentando os custos; os partidos seriam enfraquecidos em prol dos personalismos; e as minorias correriam ainda maior risco.

O ponto crucial é que sistemas eleitorais não são apenas instrumentos de representação do eleitorado, mas também de recrutamento da classe política. Analisá-los apenas do ponto de vista da demanda, sem considerar a oferta, leva a erros de avaliação sobre a qualidade de cada alternativa institucional. E o nosso atual sistema tem recrutado muito mal, oferecendo aos eleitores alternativas muito ruins.

O livro de Nicolau, embora não esgote todos os temas que merecem atenção, fornece o repertório para que se possa fundamentar crenças sobre o funcionamento e as propostas de reforma do sistema político.

Quem escreveu esse texto

Cláudio Gonçalves Couto

Cientista político, é professor da FGV-SP.

Matéria publicada na edição impressa #1 mai.2017 em maio de 2017.