Política,

A história peculiar de um partido

Celso Rocha de Barros narra os dilemas do PT, do novo sindicalismo ao protagonismo na cena política

16dez2022 | Edição #65

PT, uma história entrega ao leitor mais do que o seu despretensioso título promete. Trata-se de um livro fundamental para compreender as mudanças políticas e sociais do Brasil nos últimos quarenta anos, da transição para a democracia até as incertezas e ameaças que sobre ela pesam hoje. É produto de uma pesquisa cuidadosa, que inclui várias entrevistas com quem participou diretamente dessa história, dentro e fora do PT. O autor escreve com clareza e com graça, escolhendo a dedo trechos das conversas com os entrevistados, e usa sem pedantismo o conhecimento que tem sobre a produção nas áreas da sociologia e da ciência política. PT, uma história é um livro para ser lido.

A escolha do título não é fortuita. Reflete uma forma de pensar. Celso Rocha de Barros, um dos nossos melhores intelectuais públicos, deixa claro não ter a pretensão de apresentar “a verdadeira história” do PT, muito menos a única interpretação plausível da trajetória que levou um partido fundado em 1980 por um minoritário grupo de sindicalistas, intelectuais e religiosos a se tornar protagonista menos de dez anos depois da sua fundação, quando Lula disputou sua primeira eleição para a Presidência e quase chegou lá, em 1989.


PT, uma história, de Celso Rocha de Barros, entrega ao leitor mais do que o seu despretensioso título promete

Celso parte de uma pergunta singela: como aquilo pôde dar certo? Não estava escrito nas estrelas que uma incipiente organização partidária de esquerda, formada à margem do Estado e dos centros de poder político e econômico, se tornaria um partido socialmente enraizado e eleitoralmente competitivo, a ponto de conquistar prefeituras de grandes cidades, governos de Estados importantes e, por fim, a Presidência da República.

Celso é atento aos processos estruturais próprios do ambiente de mudança no qual o PT surgiu e se desenvolveu

Nada na história brasileira indicava que a aventura pudesse dar certo. Somente os partidos nascidos do ventre do Estado e/ou com apoio nos setores dominantes ganharam expressão na curta experiência democrática de 1945-64. Nesse período, o pcb foi abatido quando começava a decolar no embalo do prestígio obtido pela União Soviética na luta contra o nazifascismo. Vítima da Guerra Fria, lançado à semiclandestinidade depois de legalmente proscrito em 1947, o “partidão” ainda assim sentou bases no meio sindical e ganhou influência nos círculos intelectuais. Mas nunca se tornaria um partido de massas.

O PT foi muito mais longe do que o PCB jamais conseguiu. O Brasil era outro quando o partido foi criado em 1980: o setor privado crescera sob o regime autoritário e uma nova classe operária, não mais ligada às empresas estatais, se constituíra, concentrada no coração industrial do país. Os setores médios também haviam se expandido e diversificado, com ampliação do número de professores e estudantes universitários. O mundo tampouco era o mesmo: os tempos quentes da Guerra Fria tinham ficado para trás; a democracia voltava a entrar em voga, do sul da Europa à América Latina; e a chamada Igreja progressista, inspirada na Teologia da Libertação, ganhava terreno em toda a região.


Lula discursando para metalúrgicos em 1979 [Reprodução]

Celso é atento aos processos estruturais próprios do ambiente de mudança no qual o PT surgiu e se desenvolveu. Bom leitor de Marx, sabe que os seres humanos fazem a história, mas não escolhem as condições dentro das quais a fazem. No pano de fundo, o autor projeta as grandes mudanças da história do Brasil e do mundo nos últimos quarenta anos. Não apenas localiza o leitor no tempo e no espaço, mas também busca mostrar como a globalização, o colapso do socialismo real, a ascensão e crise do neoliberalismo, o sucesso do Plano Real, as reformas do governo fhc, a emergência da China e o boom das commodities afetaram o ambiente no qual o PT nasceu, cresceu e chegou ao poder.

Dilemas

No primeiro plano sobressaem as escolhas e os dilemas dos atores que fizeram a história do partido. Este é o foco do livro. O autor apresenta as lideranças partidárias destacando menos as singularidades individuais do que as suas trajetórias militantes, os grupos e movimentos aos quais se vincularam. A biografia não se descola da história social e política. A técnica narrativa é condizente com a premissa de que o PT, mais do que qualquer outro partido brasileiro, é produto de uma construção coletiva.

Celso articula muito bem essas duas dimensões na reconstituição e análise da gênese do PT. Mostra as convergências e tensões existentes entre as vertentes que confluíram na formação do partido: as lideranças operárias dos sindicatos do abc, os intelectuais e militantes de classe média egressos das organizações que se engajaram na luta armada contra a ditadura e voltaram ao país depois da anistia, e os religiosos, de bispos a leigos, ligados à Teologia da Libertação.

Não foi uma confluência entre iguais. Como nota o autor, os sindicalistas, Lula à frente, tiveram logo o predomínio. Foi deles e de seu principal líder a decisão de criar um partido dos trabalhadores. No momento em que o pluripartidarismo se restabelecia por iniciativa do regime autoritário, interessado em dividir a oposição, para Lula e seu grupo mais próximo havia em tese três alternativas: aliar-se à ala esquerda do MDB, engrossando as fileiras do PMDB; juntar-se a Leonel Brizola, empenhado na recuperação da sigla do PTB; ou criar um partido para chamar de seu. Lula e seu grupo não tinham vocação para se sentar na garupa. Intuíam a possibilidade histórica de constituir um novo ator político, sem pagar tributo à tradição trabalhista do varguismo nem ficar à sombra das lideranças maiores da frente democrática contra a ditadura.

A técnica narrativa condiz com a premissa de que o pt, mais do que outro partido brasileiro, é produto de uma construção coletiva

Ao analisar o momento fundacional do PT, o autor assenta as bases do livro. Diz ele: “A história do PT deve ser compreendida como parte do movimento global de partidos operários que, quando não foi interrompido por ditaduras de esquerda ou de direita, gerou grandes legendas socialdemocratas”. Essa tese é o fio condutor que alinhava os treze capítulos que se seguem aos três primeiros. Celso busca compreender em que medida e sob quais condições o PT realizou ou não o seu “destino manifesto” de se tornar o grande partido socialdemocrata do maior país da América Latina. É sob essa perspectiva que ele reconstitui capítulo a capítulo, com cuidado e competência, os principais dilemas do PT no caminho que o trouxe da margem para o centro da vida política brasileira e das suas instituições.

Permitir ou não permitir a dupla militância, ou seja, a persistência de pequenas organizações de esquerda preexistentes dentro da estrutura partidária? Como não incorrer nos pecados do “centralismo democrático”, dando espaço às tendências e à democracia interna sem fragmentar o partido? Que peso relativo dar aos movimentos sociais e à representação parlamentar? Aprovar ou rejeitar a Constituição de 88? Fazer ou não alianças para além das fronteiras da esquerda? Como “acalmar o mercado” sem abandonar bandeiras históricas? Desses e de outros dilemas enfrentados pelo PT — e as opções e compromissos feitos diante de cada um deles —, nenhum escapa à análise intelectualmente honesta do autor. Nem mesmo a delicada questão do envolvimento do partido com a corrução.

O PT não poderia ser uma cópia da socialdemocracia europeia, nascida cem anos antes no centro do sistema capitalista, no auge das transformações sociais e econômicas impulsionadas pela Segunda Revolução Industrial, que concentravam grandes massas de trabalhadores fabris em centros urbanos e estratificavam as sociedades com fronteiras de classe bem definidas. Na história de longa duração, o PT aparece tardiamente, e na periferia do sistema, quando a classe operária já se havia reduzido nos países centrais e começava a seguir a mesma tendência no Brasil.

O autor reflete sobre as vicissitudes do PT como um partido com vocação para ser socialdemocrata, sobretudo pelas origens no sindicalismo, apesar da relutância das lideranças em aceitar o rótulo. Por convicção ou cálculo político, elas não abandonaram a perspectiva socialista. Por outro lado, em face do dilema clássico — reforma ou revolução? —, fizeram opção igual à socialdemocracia europeia, cem anos antes: reformar o capitalismo, aprofundando a democracia.

Socialismo vago

À medida que se fortaleceu eleitoralmente, o PT virou cada vez mais reformista e pragmático, porém sem as revisões teóricas, mas nada abstratas, que acompanharam os partidos socialdemocratas europeus empenhados em ajustar doutrinas e programas às mudanças do mundo real. O PT preferiu seguir professando um socialismo vago, e pouco a pouco se acomodou no berço pouco esplêndido do velho nacional-desenvolvimentismo, acoplando-o a uma agenda — esta sim socialdemocrata — voltada a ampliar a cobertura e o financiamento das políticas sociais universais previstas na Constituição de 1988, contra a qual o partido havia votado.

Não foi pouco recusar o socialismo real. O partido marcou assim uma diferença fundamental com a esquerda comunista clássica, não apenas no nível ideológico, mas também na prática política, a começar pelo grau de democracia interna do PT, impensável em partidos leninistas e pouco frequente nos partidos brasileiros. Por outro lado, ao se negar socialdemocrata, o partido se colocou à margem do intenso debate europeu, do qual participavam também partidos verdes e movimentos ambientalistas, sobre como adaptar o Estado do Bem-Estar Social às mudanças tecnológicas, produtivas, ambientais e sociais em curso a partir dos anos 80, no qual se engajaram, por exemplo, o Partido Socialista Português e o Partido Socialista Operário Espanhol, em países também em transição para a democracia e à época ainda não desenvolvidos. O engajamento do PT teria melhorado a qualidade dos quadros e do debate interno do partido, e não implicava a aceitação de receitas prontas (até porque elas não existem).

Celso alega que as circunstâncias históricas (nas últimas décadas as mudanças no mundo aconteceram muito rapidamente, e o PT tinha de marcar sua identidade em relação ao psdb, que se dizia socialdemocrata e em boa medida fez jus ao nome até derivar à direita). Mas foi também uma questão de escolha das lideranças. Como o próprio autor ressalta, nunca faltaram laços e canais de interlocução entre o PT e os partidos e sindicatos socialdemocratas europeus.

Lula não tinha vocação para se sentar na garupa. Intuía a possibilidade histórica de constituir um novo ator político

Para Celso, a ambiguidade programática serviu para manter unido um partido no qual coexistiam desde tendências trotskistas até reformistas de esquerda. E não foi impedimento para que, na prática, o PT fizesse uma opção firme em favor da democracia representativa e moderasse as suas posições ao longo do tempo, conforme passou a ter de lidar com as responsabilidades de governo, a começar pelo nível municipal. Quem compara as posições que o partido assumiu na Assembleia Nacional Constituinte, em relação à propriedade privada e à economia de mercado, e as que hoje expressa em seus programas e em sua prática política, não poderá deixar de dar razão ao autor.

A ambiguidade ideológica e programática limitou, contudo, o potencial do partido como força renovadora da esquerda na América Latina. O PT ainda se mostra incapaz de chamar “as ditaduras de esquerda” pelo nome que merecem, a despeito das inegáveis e severas restrições a liberdades civis e políticas. Por que um partido que na prática rompeu com o marxismo-leninismo, aderiu à democracia representativa, conciliou-se com a economia de mercado, abriu-se à agenda ambiental e aos movimentos negro, feminista e lgbtqia+, continua a ser no mínimo complacente com as ditaduras em Cuba e Nicarágua e com as tropelias autoritárias do chavismo na Venezuela? Não há uma explicação simples. Uma coisa é certa: o preço disso é enorme, e o maior beneficiário é a extrema direita.

Celso põe o dedo nessa ferida. Mas não dá a devida importância à adesão do PT ao ideário e à prática do nacional-desenvolvimentismo, com toda a bagagem corporativista que lhe é própria. Adesão surpreendente para um partido nascido do “novo sindicalismo”, que se propunha a romper com a tutela do Estado sobre a sociedade herdada da Era Vargas. Essa ausência não me parece acidental.

O legado varguista e a necessidade de superá-lo foram a razão programática fundamental da divergência entre o PT e o PSDB, partidos que polarizaram a política nacional entre 1994 e 2014. Em relação a outros temas — da gestão macroeconômica à agenda de políticas sociais —, a convergência entre as duas legendas só aumentou nesse período. Na sugestiva formulação do sociólogo Luiz Werneck Vianna, coube ao PT e ao PSDB a tarefa histórica de competir para ver quem teria a liderança sobre as forças do atraso (clientelismo, patrimonialismo, corporativismo etc.) e comandaria a “modernização” do país sob regime democrático.

Estatal-corporativismo

A dupla negativa programática do PT — nem socialismo real nem socialdemocracia — criou um vácuo que acabou sendo preenchido por uma das manifestações do “atraso” brasileiro: a confusão entre o estatal e o público, entre a nação e as corporações do Estado, entre o desenvolvimento e a proteção da indústria, entre o fortalecimento da capacidade de negociação coletiva dos sindicatos e a contribuição sindical obrigatória, entre o serviço público de qualidade e as demandas sindicais de funcionários públicos.

A impregnação do PT por uma ideologia disponível na prateleira das ideias com prazo de validade vencido não foi um fenômeno puramente mental. Ela se explica também pela transformação significativa na base social do partido. Com a redução do tamanho da indústria e da classe operária empregada no setor privado, que se acelerou nos anos 90, o PT passou a se apoiar cada vez mais nos sindicatos ligados a empresas, bancos e categoriais profissionais do setor público. Celso não enfrenta esse tema com a necessária profundidade.

A ambiguidade ideológica e programática limitou o potencial do PT como força renovadora da esquerda na América Latina

O estatal-corporativismo (melhor chamá-lo assim pois o nacional-desenvolvimentismo já não produz nem maior autonomia da nação nem mais desenvolvimento como no século passado) é um elemento estranho aos ideais socialdemocratas de um sistema de proteção social sem privilégios e de uma economia social de mercado, que promova igualdade de oportunidades. Ao contrário, em nome de um suposto interesse nacional estratégico, ele justifica e promove interesses específicos de corporações públicas e empresas privadas, escolhidas segundo critérios não universalistas. Fazer políticas industriais que concentram recursos e benefícios públicos em um punhado de fornecedoras privadas de empresas estatais nada tem de socialdemocrata. Já deveríamos ter aprendido que são ruins sob o ponto de vista da equidade, da eficiência e da democracia — pior ainda quando permeadas por esquemas de corrupção.

Se as categorias profissionais do setor público ganharam terreno na base social do PT, na sua burocracia e em seus quadros técnicos, eleitoralmente o partido perdeu densidade nas classes médias e passou a ter a maioria dos votos entre os mais pobres. Na esteira dos livros de André Singer, sobre o “lulismo”, e de Lincoln Secco, sobre o PT, Celso destaca a peculiaridade dessa trajetória. Em contraste com os partidos socialdemocratas europeus, o PT não virou um grande partido sobre os ombros da classe operária e de mãos dadas com a classe média, mas sim nos braços do “povo lulista”, que fidelizou o voto no partido graças à expansão dos programas de transferência de renda e da identidade afetiva com o seu principal líder.

Não discuto os muitos méritos do Bolsa Família e estou de acordo com Celso quando diz que, em um país como o Brasil, um partido socialdemocrata, para ser competitivo eleitoralmente, teria de conquistar a maioria dos votos dos mais pobres. Mas essa afirmação se aplica a qualquer partido. Além disso, a verdade é que não foi o PT que inventou os programas de transferência de renda nem é o fiador único de que continuarão a existir, embora o partido tenha buscado se apropriar politicamente do Bolsa Família e associá-lo à figura do seu líder maior, em um tributo pago a outra figura do atraso: a do pai dos pobres.

Celso erra ao dizer que a história do PT é a de uma organização que nasceu do movimento sindical e se tornou um partido socialdemocrata? Sim e não. Ele acerta na medida em que o PT cumpriu função análoga à dos partidos socialdemocratas na Europa: ampliou a arena política, incorporando setores e vozes antes à margem do sistema, assim fortalecendo a democracia representativa, e contribuiu decisivamente, na oposição e no governo, para que se ampliassem a cobertura e o financiamento de políticas universais constitutivas de um Estado do Bem-Estar Social. Mas se equivoca, a meu ver, ao não dar a devida atenção à impregnação do partido por manifestações do atraso brasileiro, em particular o estatal-corporativismo. Mais do que o “saludo a la bandera” às ditaduras de esquerda, mais do que a mistificação da figura de Lula, essa impregnação nega, por suas consequências sobre a gestão do Estado e das políticas públicas, a pretensão socialdemocrata do PT.

Enquanto não se desamarrar do estatal-corporativismo e romper os laços ideológicos e afetivos que o prendem à velha esquerda latino-americana, o PT estará aquém das esperanças do autor deste excelente livro, que são as minhas também.

Quem escreveu esse texto

Sergio Fausto

Cientista político, é diretor-executivo da Fundação FHC.
 

Matéria publicada na edição impressa #65 em outubro de 2022.