Laut, Liberdade e Autoritarismo,

Legado possível

Coletânea analisa os erros, os acertos e as polêmicas da Lava Jato, maior investigação contra a corrupção no mundo

29set2021 | Edição #50

Grandes acontecimentos costumam impor uma urgência explicativa: buscamos entender o que está acontecendo enquanto acontece. A prudência pede uma análise inicial mais descritiva, deixando conclusões mais apuradas para o futuro. Na política, tal prudência se faz ainda mais necessária. No caso da Lava Jato, que desde 2014 influencia a política brasileira, ela costuma ser confundida com apoio. Ainda ativa, a operação — um dos elementos da crise que teve seu ápice com a eleição de Bolsonaro, em 2018 — é tema dos artigos de Corrupção e o escândalo da Lava Jato na América Latina.

Publicada originalmente nos Estados Unidos, a coletânea explica ao público estrangeiro o que é a Lava Jato e quais as suas consequências na América Latina e faz propostas para o futuro do combate à corrupção. Entre a publicação, em julho de 2020, e a tradução para o português, um ano depois, o ex-juiz Sergio Moro saiu do governo Bolsonaro e o Supremo Tribunal Federal decidiu que ele não tinha competência para julgar os processos contra o ex-presidente Lula, que foram anulados. Esses acontecimentos reforçaram a visão de que os operadores da Lava Jato a usavam para responder a vontades políticas próprias. A operação e seus artífices passaram de heróis a vilões.

Se essas controvérsias não existissem e não estivéssemos vivendo uma crise econômica, política e sanitária agravada pelas irresponsabilidades do governo federal, seria mais fácil lidar com os legados da Lava Jato. Discutiríamos mais a sério por que grandes empresas brasileiras optavam por pagar propina para não se submeter a processos licitatórios regulares, tema do artigo de Connor Wahrman, ou mesmo por que ainda temos um sistema de pesos e contrapesos pouco coordenado quando se trata de investigações anticorrupção, questão sobre a qual se debruça Ana Luiza Aranha.

O livro não escapa do que os organizadores chamam de polarização. Críticos da Lava Jato diriam que a organização é leniente com os principais artífices da operação por dar voz a Moro e ao procurador Deltan Dallagnol. Criticariam também a oposição proposital entre dois artigos sobre a atuação da mídia tradicional — um sugerindo a possibilidade de captura contra o Partido dos Trabalhadores (PT), outro acentuando as dificuldades de uma cobertura inundada de informações pelos próprios operadores. Ambos concordam, no entanto, sobre a necessidade de melhorias na responsabilidade, transparência e pluralidade, sobretudo ideológica, da mídia.

Os artigos têm virtudes que podem ajudar a lidar com as críticas. Todos os autores fazem uma apresentação metodológica clara e afirmam que suas conclusões são preliminares e localizadas no tempo. O modelo estatístico usado por Wahrman, por exemplo, foi disponibilizado on-line para que possa ser replicado e atualizado com novas variáveis. O livro também dá voz a um terceiro artífice da Lava Jato, o jornalista Glenn Greenwald, reforçando a premissa central da obra de que o combate à corrupção deve seguir os limites democráticos. A conclusão traz críticas interessantes sobre a maneira como as revelações do The Intercept foram feitas: de maneira parcial e levando a conclusões que não seriam comprováveis a partir das mensagens divulgadas. A solução seria publicar mais mensagens e propor debates mais bem embasados sobre nosso sistema de Justiça e as prerrogativas de quem o compõe. Se a comunicação entre esses atores ameaça a devida defesa de investigados, são necessárias reformas institucionais que a coibam.

Alcances e limites

Karla Ganley e Paul Lagunes destacam que o combate à corrupção no Brasil tem sido usado como justificativa para o endurecimento político desde o início da república, e que a Lava Jato é um dos elementos que tornaram essas ameaças autoritárias mais críveis. Assim, faz-se necessária a análise da operação como um todo, no seu melhor e no seu pior, em seus alcances e limites.

Nos alcances, há as inéditas punições às grandes empreiteiras brasileiras, tanto no Brasil quanto no Peru e no México — dois países que tiveram sua política interna afetada e mostraram que as respostas aos escândalos de corrupção não são intuitivas. Uma estrutura institucional menos organizada como a do Peru foi mais incisiva com os políticos envolvidos, enquanto os instrumentos mexicanos já estabelecidos optaram por não impor muitas sanções a executivos e empresas.

Denisse Rodriguez-Olivari mostra as dificuldades enfrentadas pela Equipe Especial de Procuradores da Lava Jato do Peru, que, apesar dos questionamentos suscitados pelas prisões preventivas longas, pelo suicídio do ex-presidente Alan García e pela instabilidade política do país, teve um trabalho considerado um sucesso sem precedentes. Márcia Sanzovo e Karla Ganley refletem sobre as falhas nos projetos urbanos fomentados pelos Jogos Olímpicos do Rio, que envolvem as mesmas empreiteiras investigadas na Lava Jato. A atenção pública insuficiente e o acompanhamento institucional errático dificultaram uma vigilância apropriada dos projetos, muitos ainda inacabados.

Nos limites da operação, há a interação entre seu principal juiz e os procuradores responsáveis, revelada pelas reportagens da Vaza Jato, que acabaram por tornar datadas algumas afirmações. É o caso do artigo de Jessie W. Bullock e Matthew C. Stephenson sobre como a operação deveria acabar, mas seu espírito deveria ser mantido e seu legado preservado, especialmente em relação aos resultados opostos à morosidade e à impunidade características do sistema de Justiça brasileiro quanto à corrupção. Não restam dúvidas de que a corrupção é um problema social sério, mas parece improvável que seus combatentes queiram preservar o espírito de uma operação considerada parcial e suspeita.

Susan Rose-Ackerman e Raquel de Mattos Pimenta reforçam a importância do combate à corrupção além do direito penal. As grandes operações dos últimos anos, Lava Jato inclusa, induziram o depósito de confiança em processos judiciais para transformação social. As autoras nos lembram que sem reformas institucionais eles sempre serão insuficientes. Se a corrupção é endêmica, e isso é fato no Brasil, seu combate precisa envolver diversas frentes de mudança, principalmente no sistema eleitoral. É através da política democrática que o combate à corrupção vai avançar, com diálogo e pluralidade.

Editoria especial em parceria com o Laut

LAUT – Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo realiza desde 2020, em parceria com a Quatro Cinco Um, uma cobertura especial de livros sobre ameaças à democracia e aos direitos humanos.

Quem escreveu esse texto

Amanda Evelyn Cavalcanti de Lima

É doutora em sociologia pelo Iesp/Uerj e pesquisadora do NEV/USP.

Matéria publicada na edição impressa #50 em agosto de 2021.