Poesia,

Mitopoéticas ancestrais

Edimilson de Almeida Pereira compõe poesia percussiva inspirada nas culturas afrodiaspóricas

14nov2018 | Edição #8 dez.17-fev.18

“Ninguém fica de pé/ se não tiver/ o meio” são os versos iniciais do poema “Tronco”, um dos quarenta que compõem o livro Poemas para ler com palmas, do poeta, professor e antropólogo Edimilson de Almeida Pereira. Referindo-se ao tronco do capoeirista, os versos também sintetizam a poética fincada em solo firme, mas afeita a deslocamentos, que caracteriza tanto a obra literária do autor mineiro quanto sua produção acadêmica. O “meio” que faz ficar de pé, nesse caso, é a palavra que tem como eixo a matriz afrodescendente. Os poemas compõem um corpo percussivo que convida leitores de todas as idades a movimentarem-se pelos ritmos das culturas afrodiaspóricas, inscritas em cinco mitopoéticas: a capoeira, o congado, o jongo, os orixás e os vissungos.

À primeira vista, a estrutura do livro pode parecer excessivamente didática: são oito poemas para cada uma das cinco mitopoéticas. Embora o agrupamento dos poemas e até a temática de alguns incorpore a intenção pedagógica que marca as culturas de tradição oral, prevalece a reverência à sabedoria, de modo que a unidade que se apresenta nesse conjunto de textos é multifacetada. Enquanto o projeto gráfico reforça visualmente o aspecto didático, mantendo em cores só a dupla de páginas que abre cada  mitopoética, as belas ilustrações de Maurício Negro fogem do estereótipo e da obviedade, acentuando o aspecto mítico dos textos. Há detalhes escondidos nos desenhos e nas xilogravuras — um pássaro branco nos olhos do rei do Congo, o reflexo branco do rosto negro no espelho — comungando com o caráter secreto de muitas das poéticas afrodiaspóricas. Alguns versos do poema “Segredo” são bons exemplos: “Quer dizer, o segredo/ salta/ dentro da noite./ Como prendê-lo?/ Talvez com a rede/ com que/ se caça a borboleta./ Porém, segredo/ e borboleta/ mudam de forma./ Escondidos no ar/ dão-se a ver./ Depois os perdemos/ até a próxima busca”.

Ao iniciar sua fala na Flip, Edimilson saudou os ancestrais — os escravos que criaram e fundaram o templo onde se realizava o encontro literário: “Eu saúdo aqueles que construíram este templo, que o deixaram erguido para o futuro, para que se pudesse rever proposições do passado, numa tentativa, a meu ver fundamental, de reorganizar nossa estrutura social, buscando mais igualdade”. A saudação parece ecoar nos poemas do autor. A ancestralidade assume, nos textos, formas distintas, sincrônicas, atemporais. Aos reis do Congo, nossos avós, coroas e cantos. Aos santos, a poética particular de cada orixá. Às lutas, a dança como arma. Ao trabalho, os vissungos como canto. Aos nomes santos, a graça dos trocadilhos: “O nome da Santa começa na rosa/ e tem um rio na ponta/ rosa rio rosa rio/ rosário”.

A defesa de um cânone literário afro-brasileiro e a influência da música atravessam o livro

Temas recorrentes nos ensaios de Edimilson, como a defesa de um cânone literário afro-brasileiro e a influência de outras linguagens em sua criação, como a música, atravessam o livro, revelando não apenas coerência ética e estética, como também um imenso respeito à inteligência e sensibilidade infantis. Ouvimos ressoar os afro-sambas de Baden Powell em versos como “Quem é forte, não diz./ Para que dizer?”; vibram as antenas parabolicamarás de Gilberto Gil nos versos “Entre passo e recuo, avanço/ e cansaço/ a roda mundo gira, camará”. E há, ainda, uma possível referência aos versos infantis imortais de Vinicius de Moraes em “Na casa de Zambi não há janelas/ nem portas”.

Termina-se a leitura de Poemas para ler com palmas com um fraterno desejo de que os versos que saúdam as mitopoéticas de matriz afrodescendentes possam também se tornar imortais na voz, no corpo e nas palmas das crianças brasileiras de maioria negra. Como disse o autor na Flip: “Os autores e autoras que, de alguma forma, hoje dão sequência ao projeto de Lima Barreto estão sacudindo as margens do nosso cânone para dizer que temos uma sociedade continuamente excludente e agressiva com populações indígenas, afrodescendentes, quilombolas, das margens, contra mulheres. Esses autores e autoras continuam batendo nas portas do cânone oficial para mostrar que é preciso dizer o Brasil de outra maneira”.  

Quem escreveu esse texto

Cristiane Tavares

É crítica literária, coordena a pós-graduação Literatura para crianças e jovens no Instituto Vera Cruz (SP).

Matéria publicada na edição impressa #8 dez.17-fev.18 em junho de 2018.