Música,

Música contra o inferno

Drogas, estupros e virulência verbal marcam livro de memórias do pianista clássico

09nov2018 | Edição #3 jul.2017

O músico inglês James Rhodes escreveu aos 39 anos, em 2014, suas memórias, agora lançadas no Brasil. No “prelúdio” — nome que deu à introdução de Instrumental —, ele reconhece que “a ideia de produzir uma autobiografia nessa idade pode soar autocomplacente e egoísta”. De fato soaria, caso a existência do autor não justificasse plenamente a missão precoce. 

Rhodes foi estuprado por um professor dos seis aos dez anos; viciou-se em álcool e drogas variadas; acostumou-se a ter prazer cortando o corpo com giletes; tentou o suicídio cinco vezes, planejou incontáveis outras; pensou em se castrar; esteve internado em “instituições psiquiátricas de segurança máxima”; e perdeu o convívio com o filho, pois sua primeira mulher se mudou para os Estados Unidos. (Ela, aliás, tentou proibir a circulação do livro, o que contribuiu para aumentar o interesse e as vendas.)

Fosse Rhodes roqueiro, sua história não causaria o mesmo espanto — com exceção dos estupros. Mas ele é um pianista clássico. Não convencional, pois nada em sua vida é. Dá pouca importância a pentear os cabelos e usa, inclusive no palco, roupas esportivas, como moletons em que se lê “Bach” e “Chopin”. 

A força do livro vem das histórias contadas e do estilo. Rhodes é um narrador desbocado, virulento, de excessos. Agride as pessoas à volta, agride o leitor, agride muito a si mesmo. Usa bem a metalinguagem, julgando o livro enquanto o escreve. Demonstra com tamanha intensidade o quanto repudia ser quem é — ou quem foi — que explicita ser esse um traço de vaidade. Mas não de falsidade. Como tantos autodestrutivos, tem na autocombustão um combustível para viver. Ele conta que a raiva é um sentimento do qual não consegue se livrar desde a destruição de sua infância. “Quer saber como se faz para arrancar tudo o que há de criança de dentro de uma criança? Basta estuprá-la.”

O professor de educação física da escola o seduziu com presentes, elogios, injeções de autoestima. Levou-o para fazer aulas de boxe, apesar da pouca idade. E passou a estuprá-lo. 

Tão vulnerável pode ser uma criança que Rhodes não soube evitar que a violência se prolongasse por mais quatro anos. Não conseguiu contar aos pais e outros adultos. E isso não tem nada a ver com “gostar” do que acontecia, como sempre haverá quem seja capaz de supor. No internato onde passou parte da adolescência, continuou a sofrer abuso, agora por rapazes um pouco mais velhos. Diz que não é gay, que sempre desejou as mulheres, mas não tinha forças para reagir. Suas defesas e seu ego haviam sido destroçados antes mesmo de se estruturar.

Em vários trechos, Rhodes procura traduzir no que se transformou após a infância. Reproduzir um deles é o único meio de fazer jus ao que quer transmitir.

“Quando um cara de 40 anos enfia o pau dele no cu de um menino de seis anos, isso não é abuso. Não chega nem perto de abuso. É um estupro violento. Acarreta várias cirurgias, cicatrizes (dentro e fora), tiques, TOC ou transtorno obsessivo-compulsivo, depressão, fantasias suicidas, automutilação vigorosa, alcoolismo, dependência de drogas, inibições sexuais das mais fodidas, confusão de gênero (‘você parece uma menina, tem certeza de que não é uma menina?’), confusão em relação à própria sexualidade, paranoia, desconfiança, compulsão por mentira, distúrbios alimentares, distúrbio de estresse pós-traumático, transtorno dissociativo de identidade (um nome mais bonito para o distúrbio de múltipla personalidade) e mais isso e mais aquilo outro.”

Rhodes demorou mais de vinte anos para falar do assunto. Decidiu denunciar o professor à polícia

Esse quadro é destrinchado no livro, sempre sem meias palavras. Rhodes demorou mais de vinte anos para começar a falar do assunto. Seu filho já tinha quatro quando ele contou para a sua então mulher. Mesmo tanto tempo depois, decidiu denunciar o professor à polícia londrina. Ao responder ao interrogatório, foi constrangido a detalhar como era estuprado. 

Pressionada após Rhodes tornar público o caso, a polícia chegou a Peter Lee, o professor, e o prendeu. Ele tinha cerca de 70 anos e continuava dando aulas de boxe para meninos. Era alvo de dez acusações de sodomia e assédio sexual. Não chegou a ser julgado porque morreu de infarto.

Rhodes buscou o amparo de uma associação de apoio a homens sobreviventes de agressão sexual. E escreveu Instrumental. “É a minha carta a você, Peter Lee, enquanto você apodrece no seu túmulo asqueroso, para que saiba que não saiu ganhando. Que o nosso segredo não é mais um segredo, não é mais um vínculo que a gente compartilhe, que eu não tenho nenhum tipo de conexão privada íntima com você.”

Parece que só há trevas no livro, mas existe humor, embora amargo. Uma de suas melhores tiradas: “Eu não arrumava namoradas; na verdade, eu fazia reféns”. E tenta mostrar o que significa estar diante de um piano: “É a melhor de todas as coisas, como estar nu e receber de Bach uma massagem a quatro mãos com pedras quentes.”

Segundo ele, o que o impediu de morrer foram seu filho e a música. Por tudo o que lhe aconteceu, sua carreira é quase um milagre. Começou a tocar aos sete anos, mas ficou dez longe do instrumento. Trabalhou no balcão do Burger King em Paris, enriqueceu no mercado financeiro em Londres, gastou o dinheiro todo. Teve o seu potencial constatado quando pensava virar agente musical. Com o apoio de um mecenas, um professor de piano “psicopata” e um agente que não entendia nada de música clássica, tornou-se um intérprete tão respeitado quanto popular. Gravou o seu primeiro disco em 2009, deslanchando uma carreira de concertista que lhe rendeu indicações a prêmios como o Classic Brit Awards. Em 2010, apresentou uma série de televisão sobre os dois séculos de nascimento de Chopin. 

Em 2012, realizou um projeto mais ousado no Channel 4: música e saúde mental num mesmo conjunto de programas. Rhodes frequentou um hospital psiquiátrico, conversou com os pacientes (os mais graves, preferencialmente) e escolheu, para cada um, peças que executou diante deles num piano de cauda.

Uma ideia original, forte, bem-sucedida, mas que contribuiu para que ele recaísse na depressão profunda, pois a experiência se somou ao fim de seu segundo casamento. Ao longo de doze meses, segundo conta, viveu “um longo estágio no inferno”, com desejos suicidas, automutilações e outras práticas habituais.

Os trabalhos na TV e a decisão de expor o terror da sua infância o transformaram numa figura midiática. Certamente, isso o ajudou a ser convidado a tocar em vários países, sem prejuízo de seu talento. 

Os trabalhos na TV e a decisão de expor o terror do passado o transformaram numa figura midiática

O livro escorrega num ponto. Enquanto ataca os que querem a música clássica restrita a uma elite, Rhodes é ótimo. Quando proclama estar à frente de uma campanha para salvar a música clássica, vira um megalomaníaco. Mais: o título Instrumental, embora seja um bom jogo de palavras, também é o nome do selo em que apoia músicos que comungam de suas ideias — não deixa de ser publicidade. 

Essas restrições se anulam quando se leem as aberturas dos vinte capítulos, todos associados a peças musicais. Ele fala dos compositores de modo apaixonado, divertido, sem sacralizá-los, instigando o leitor a ouvir as peças — o que é possível acessando o link http://bit.do/instrumental. 

Para Rhodes, qualquer roqueiro rebelde é um banana diante do que faziam e viveram Beethoven, Schubert, Schumann e outros: “Eles não ativaram o televisor pela janela do hotel; atiravam a si mesmos”. 

A imagem serve à vida do próprio Rhodes, que se diz mais equilibrado hoje. “Agora eu tenho maiores chances de comer a Rihanna.”

Quem escreveu esse texto

Luiz Fernando Vianna

Jornalista, é autor de Meu menino vadio (Intrínseca).

Matéria publicada na edição impressa #3 jul.2017 em junho de 2018.