Meio ambiente,

Guerra química

Sem argumentos científicos, livro se alinha ao lobby para liberar mais agrotóxicos no país

23nov2018 | Edição #14 ago.2018

Agradeça aos agrotóxicos por estar vivo, de Nicholas Vital, é um livro de má-fé.

O autor, que se autointitula “crítico e contestador”, lança mão exclusivamente de informações secundárias, em especial de periódicos e de depoimentos de pessoas de passado conhecido a serviço dos agrotóxicos e dos interesses da indústria envenenante. Presta-se também a posar com Kim Kataguiri, líder do MBL.

Mas a má-fé não decorre de suas simpatias políticas, e sim do fato de socorrer-se para armar seus argumentos com o ex-ministro Alysson Paulinelli, que classifica como o “pai” da revolução verde brasileira, ou com o médico toxicologista Flávio Zambrone, da Unicamp, que foi excluído do seu departamento por conflito de interesses e que presta assessoria às indústrias produtoras de agrotóxicos como coordenador de agroquímicos do International Life Sciences Institute do Brasil.

Zambrone defendeu a Shell/Bayer em caso de contaminação em Paulínia, contra os contaminados. Vital inclui também o colega de Zambrone, Angelo Trape, que defendeu empresas em processos que envolviam trabalhadores — além de dezenas de pesquisadores de empresas e órgãos públicos que têm relações umbilicais com a indústria do veneno. Por fim, utiliza dados do Ministério da Agricultura da gestão Maggi, no governo Temer. Disso tudo não pode sair boa coisa.

Diz acreditar que, à frente das campanhas contra os agrotóxicos, estão instituições de pesquisa com grande reputação que foram “aparelhadas” e “deixaram a ciência de lado em prol da política”, incendiando a mente de jovens “contra as multinacionais”. E ataca a “desinformação” produzida pela imprensa, apesar do interesse alto do brasileiro por ciência e tecnologia. Ou seja, Vital coloca-se na posição de separar o joio do trigo, o “científico” do ideológico, sem que possua qualquer qualificação para isso.

O livro é um libelo contra o que se possa chamar de agricultura orgânica, tentando imputar motivação irracional aos que a defendem. Na contramão, afirma inverdades. Como, por exemplo, que a escolha dos alimentos pelos consumidores se pauta, em geral, pelo preço, não pela qualidade (pesquisas recentes mostram que só na dramática crise atual isso é verdadeiro). O mundo de Vital é um mundo ameaçado por insetos, fungos e outros seres que se alimentam dos cultivos humanos desde a época bíblica das sete pragas do Egito. Se não fossem os venenos, estaríamos perdidos.

Em defesa de negócios de até R$ 480 bilhões, Vital põe-se a “pulverizar” o que considera mitos. Por exemplo: “não há na história registro de morte comprovadamente relacionada ao consumo de alimentos convencionais, por ingestão de resíduos. Também não houve aumento nos casos de câncer, apesar do uso intensivo de agrotóxicos nos últimos cinquenta anos”.

E Vital não esconde o seu propósito, que é o elogio do “acerto” da política atual. Diz ele: “O drama dos produtores parece estar finalmente próximo ao fim. Em agosto de 2016, o governo federal anunciou que trataria como prioridade o registro de novos defensivos (e) o benzoato de emamectina, maior sonho de consumo dos agricultores no Brasil, ainda não havia sido registrado no Brasil até a conclusão deste livro”. Trata-se de um produto que a Anvisa enquadrou, no ano passado, na classe Toxicológica I, ou seja, “extremamente tóxico”.

Pacote do veneno

Vital é integrante do lobby dos ruralistas que buscam fazer um rolo compressor e levar o Congresso a aprovar o “pacote do veneno”, liberando a adoção de agrotóxicos mundialmente condenados para a nossa agricultura. Ora, nós já somos campeões mundiais de más práticas agrícolas no que diz respeito ao uso de agrotóxicos. Vital e seus parceiros querem piorar essa situação.

O livro, ruim e irrelevante para a construção de um futuro melhor para a nossa agricultura, aparece, porém, num contexto em que os brasileiros se interessam mais e mais pela agricultura orgânica. Uma pesquisa da Fiesp (“A mesa dos brasileiros”, 2018) mostra que o interesse dos consumidores pelos alimentos “orgânicos” saltou dos 40% em 2010 para 66% em 2017. Sobre os alimentos “sustentáveis”, de 27% para 48%.

Mesmo com produção e consumo ainda diminutos, o interesse prenuncia uma situação crítica para os “agrointoxicantes”. Daí se defenderem através de uma pena de aluguel.

Quem escreveu esse texto

Carlos Alberto Dória

É diretor da ONG C5 – Centro de Cultura Culinária Câmara Cascudo, coautor de A culinária caipira da Paulistânia (Três Estrelas) e autor de Formação da culinária brasileira (Três Estrelas).

Mariana Marcon

É bacharel em direito pela PUC-SP.

Matéria publicada na edição impressa #14 ago.2018 em agosto de 2018.