Livros e Livres,

Uma narrativa trans de 120 anos

Romance francês permite vislumbrar o que o clássico brasileiro ‘O Ateneu’ teria virado nas mãos da parcela mais bicha da escola

31jul2023 | Edição #72

Imaginem poder ler O Ateneu (1888) não pela ótica daquele Sérgio chato-de-galochas, alter ego do enrustido Raul Pompeia, mas sim a partir da perspectiva de uma daquelas inúmeras crianças assumidamente viadas com quem ele conviveu no colégio interno, sobretudo a da prototravesti que assinou como Cândida uma carta ao namoradinho, escandalizando Aristarco? “Há mulheres no Ateneu, meus senhores”, vocifera transtornado o diretor, apresentando como prova a carta e intimando os demais alunos a revelarem seu envolvimento com “essa miséria”, caso contrário seriam considerados cúmplices e punidos exemplarmente.

Segundo o narrador-protagonista, a intimação “era um verdadeiro arrastão”, pois “remexendo a gaveta da consciência e da memória, ninguém havia, pode-se afirmar, que não estivesse implicado na comédia colegial dos sexos, ao menos pelo enredo remoto do ouvi dizer”. A viadagem reinava no Ateneu, mas o que veremos dela serão só lampejos, nunca um mergulho na intimidade desses “entusiastas da profissão, conscientes, francos, impetuosos, apregoando-se por gosto, que não perdoavam à natureza o erro original da conformação: ah! não ser eu mulher para melhor o ser!” Os eufemismos e o empolamento da linguagem devem ter impedido muita gente de perceber ser esse clássico da literatura brasileira uma obra profundamente LGBTQIA+.

Mas se antes só nos restava imaginar o que essa história teria virado nas mãos da parcela mais bicha da escola (ou, pelo menos, da que estava mais confortável com o fato de não se enquadrar nas normas hegemônicas de sexualidade e gênero), agora temos em português uma narrativa que nos dá a exata medida de como ela poderia ter sido: a excelente tradução do romance francês A menina que não fui, de Han Ryner. O relato apresentado aqui é tão, mas tão escrachado nesse aspecto que, se não houvesse provas de que o livro original foi mesmo publicado em 1903, eu duvidaria da sua autenticidade.


A menina que não fui, de Han Ryner

Sim, era possível já nesse momento, 120 anos atrás, a existência não só de figuras dissidentes, mas também de uma narrativa conduzida a partir de suas óticas. Daí vermos François, o narrador-protagonista dessas memórias, receber os apodos de “senhorita Françoise” e “mulherzinha” e não se incomodar minimamente: “Frequentemente me escondia para me olhar num espelho de bolso murmurando: ‘Mulherzinha!’ E sorria, comovido”.

Se não houvesse provas de que o livro foi publicado em 1903, eu duvidaria da sua autenticidade

Faz referência a isso o título original, La Fille manquée, forma de se referir a meninos com aparência ou modos afeminados que, traduzida ao pé da letra, significa “a menina falhada”. Diante da polissemia original, que em alguns momentos será explorada pela voz narrativa, o tradutor Régis Mikail optou por “A menina que não fui”, colocando a frase na primeira pessoa. Decisão difícil, contudo, pois a expressão “fille manquée” será repetida muitíssimas vezes ao longo do relato, 99% delas funcionando como insulto e traduzida por “mulherzinha” — e é justamente ela que François usará para se identificar.

“A mulherzinha” seria, portanto, um título mais apropriado ou, talvez, “O mulherzinha”, para que o diminutivo e o artigo masculino cumpram o papel desempenhado pelo “manquée”/”falhada” e, ao mesmo tempo, antecipem a temática da obra — com o artigo feminino, o leitor poderia até ter dúvida sobre o que virá pela frente; com o masculino, não.

Rainha Françoise

É importante perceber que François foi uma menina durante boa parte da trama. E não qualquer menina, pois nos tempos áureos do colégio chegou a se tornar “rainha Françoise”, sobretudo depois de fazer circular um bilhete em que dizia:

A partir de hoje, a mulherzinha é uma puta feliz em dar prazer a quem quer que goste de prazer. […] Aqueles que amam a mulherzinha, inscrevam-se. Vai chegar a vez de cada um. Quando tiver acabado, começaremos uma nova lista.

Começa ali o seu reinado, momento em que assume enorme poder entre os alunos e mesmo ante funcionários da instituição. Poder que tem relação com o desejo que a rainha Françoise suscita, mas também com o prazer que ela, mais do que ninguém, é capaz de proporcionar:

Eu, esfomeado de amor, via-me adulado por um povo inteiro. Eu, tão ávido de dar felicidade, era a alegria de todos. A cada dia, deleitava-me com cinco ou seis deleites provocados por mim.

Apesar da identificação profunda com o feminino, encontraremos, ao longo de toda a narrativa, François se valendo do masculino para se referir a si próprio. Isso porque as memórias foram escritas em sua adultez, momento marcado pelo esforço ingente do protagonista de se adequar às expectativas sociais de gênero e sexualidade, coisa que desencadeará eventos trágicos em sua vida. Se na infância parecia bastante natural encarnar uma identidade feminina, na vida adulta veremos sua luta para se afirmar socialmente enquanto homem, o que se traduz tanto por manter relacionamentos de aparência com mulheres, quanto por vestir roupas masculinas e fugir obstinadamente de “carícias viris”.

O reinado de Françoise chega ao fim, mas felizmente se salvaram essas memórias, que nos permitem vislumbrar, em primeira pessoa, como seria a vida de uma pessoa LGBTQIA+ nos primórdios do século 20. O surpreendente é pensar que Han Ryner, um autor aparentemente não LGBTQIA+, teria condições, mais de um século atrás, de escapulir dos preconceitos e patologizações típicos de sua época para retratar de forma tão humana a vida de François/Françoise.

A editoria Livros e Livres, focada em títulos com temática LGBTQIA+, tem o apoio do Fundo de Direitos Humanos da Embaixada do Reino dos Países Baixos.

Editoria com apoio do Fundo de Direitos Humanos da Embaixada do Reino dos Países Baixos

Desde 2023, o Fundo de Direitos Humanos da Embaixada do Reino dos Países Baixos apoia a cobertura especial Livros e Livres, dedicada a títulos com temática LGBTQIA+

Quem escreveu esse texto

Amara Moira

Crítica literária, escreveu E se eu fosse puta (Hoo).

Matéria publicada na edição impressa #72 em julho de 2023.