Livros e Livres,

Um retorno a Guibert

Diário de autor francês que morreu em decorrência da aids aos 36 anos volta a circular no Brasil

30maio2023 | Edição #70

Saudações do novo colunista 

Livros e Livres, editoria e coluna mensal que tenho a alegria de assinar a partir deste junho na Quatro Cinco Um, chega com um propósito desafiador: criar um espaço dedicado a livros que envolvam a temática da diversidade sexual e de gênero. Não é a primeira vez que tais temas aparecem nas páginas da revista, tampouco será o único da Quatro Cinco Um a tratar de gênero e sexualidade, universos que ultrapassam fronteiras estritas e se espraiam para diferentes categorias literárias. A partir de agora, o que temos é um espaço fixo mais atento e específico para tratar dessa diversidade.

Resta então questionar: o que seria uma literatura LGBTQIA+? Seria ela definida pela sexualidade e/ou pela identidade de gênero de autoras/es? Ou de personagens? Ou pelo objeto do livro? Sem a pretensão de uma resposta definitiva, o que exigiria traçar fronteiras rígidas e bem demarcadas para definir um tipo de literatura que, a meu ver, sequer existe com identidade própria, aqui vocês lerão um pouco de tudo isso misturado: autores/as, personagens, livros (e livres), tanto na ficção como nos estudos acadêmicos, com um recorte LGBTQIA+. A ideia é ter sempre um texto meu ou de um convidado sobre obras desse campo ainda recente, mas cujo número de publicações cresce exponencialmente. 

Em uma feliz coincidência, estreamos em junho, mês de orgulho e que se confunde com a história das lutas LGBTQIA+. Aproveito essa estreia para me apresentar: sou advogado e professor universitário, atuo em temas de direitos humanos e busco dialogar para além dos círculos acadêmicos. Além disso, sou um homem cisgênero gay, engajado no ativismo e com publicações em torno de memória, cultura e direitos LGBTQIA+. Mas a melhor maneira de apresentar a coluna não é falando dos mil planos que tenho imaginado para ela, e sim já trazendo uma primeira obra para a conversa. E, ao contrário do que possa parecer, não tive dificuldade para eleger qual seria objeto deste primeiro texto.

Ao amigo que não me salvou a vida, de Hervé Guibert, originalmente publicado em 1990, na França, e com uma tradução em 1995 pela José Olympio, estava esgotado havia tempos e era bastante inacessível entre nós. Eu me lembro de ter conseguido, no começo dos anos 2000, depois de muita busca, uma cópia xerografada. Devorei esse livro que me marcou demais no processo de saída do armário e de assumir uma identidade gay. Quando vi recentemente o anúncio da nova edição lançada pela Todavia, com tradução de Julia da Rosa Simões, quis começar por um retorno a Guibert.

Nesse que é seu livro mais conhecido, o jovem escritor francês, morto em decorrência da aids com apenas 36 anos, faz uma espécie de relato de si, revelando como seu corpo vai sendo consumido pela doença, e também trazendo uma denúncia bastante dura dos amigos e médicos que estão no seu entorno nessa jornada inevitável e acelerada até a morte por uma doença ainda pouco conhecida.

Fiquei profundamente impactado tanto no primeiro contato, uns vinte anos atrás, como na releitura feita agora. Por óbvio, de jeitos diferentes. O impacto que senti no passado era marcado por um misto de encantamento com a liberdade de alguém tão bem resolvido com seus desejos e sua condição de saúde a ponto de publicá-los. Era também tomado de medo pelo HIV como sentença de morte em um momento em que iniciava minha vida sexual, uma ameaça e um estigma com que todas as gerações LGBTQIA+ desde os anos 80 tiveram de lidar.

Em um tempo no qual prevenção e tratamento ao HIV são muito mais acessíveis e difundidos, terminei a releitura com menos medo dessa ameaça (de diversos modos, ainda presente). Sigo com um encantamento potencializado pelas tantas camadas de vida que Guibert consegue explorar em um texto que me parecia essencialmente sobre seu fim. Hoje, vejo que é um trabalho sobre a morte rápida e certa, mas que, traindo a si própria, também legou uma margem de incerteza capaz de produzir elaboração dessa experiência e até esperança.

Texto de despedida

Ao amigo que não me salvou a vida pode ser lido como um texto de despedida com o esforço quase compulsivo do autor, que também foi jornalista, crítico e fotógrafo, por narrar enquanto a morte se aproxima e não chega. Enquanto isso, ele encontra forças e tempo para deixar algum registro da própria versão dos fatos, do mundo e de si mesmo. Nessa pequena margem de incerteza que lhe resta, acompanha todo o texto um apelo angustiado e desesperado de salvação que, a cada abandono, vai se convertendo em ressentimento contra tudo e todos.

Ainda que muitas vezes se coloque em posição de vítima, Guibert não se expõe e escancara a si mesmo para angariar a piedade de quem lê. A todo momento, transparecem sua altivez e seu orgulho, que se tornam as únicas réguas de medida moral para quem não se submete às expectativas do escritor. Não é porque caminha, página a página, em direção à morte que ele busca esconder seu cinismo ou revelar apenas sua melhor versão.

Em outras palavras, rompendo com o que se esperaria, não é por ser um homem com uma doença em estágio terminal narrando a própria história que Guibert proclama somente suas virtudes, sua bondade ou sua generosidade. Longe disso. O psicanalista Jurandir Freire Costa, usando a ideia de “compulsão à confissão”, de Michel Foucault, chegou a afirmar, em artigo de 1995 na Folha de S. Paulo, que “Guibert confessa, confessa e confessa”.

Eu me lembro de ter devorado esse livro que me marcou demais no processo de saída do armário

Quem muito confessa, aliás, revela o que quer e deixa escapar mesmo o que não quer. No caso de Guibert, ele faz questão de revelar suas diversas investidas e tentativas para, usando seu contato com um amigo da indústria farmacêutica, dar um “jeitinho” de passar na frente da fila de uma vacina em desenvolvimento e que poderia se tornar sua tábua de salvação. Mas quem, naquelas mesmas condições, atiraria a primeira pedra e conseguiria sobrepor os valores éticos à própria possibilidade de vida? 

Falando em ética, por outro lado, Guibert foi bastante criticado — e com razão — quando houve o lançamento do livro na França pelo modo leviano e amargurado como expõe ali a intimidade de muitos dos amigos de um círculo parisiense privilegiado, com vida cultural intensa, férias em lugares paradisíacos e profundas discussões artísticas e filosóficas. O uso de nomes fictícios não poupou a identidade das pessoas expostas — a quantidade de detalhes entrega nome e sobrenome dos personagens reais.

O já citado Foucault, figura das que mais aparecem, talvez seja o mais poupado da acidez do autor. Isso porque o livro não deixa de ser também um relato do adoecimento do amigo filósofo, que morreu de aids anos antes do próprio Guibert, como que prenunciando o destino comum a ambos. Mais do que isso, a doença partilhada parece ser uma conexão inextricável entre dois amigos que souberam pensar e elaborar, na prática, o que amar quer dizer entre dois homens gays.

Amizade e solidão

A amizade é tema central para as sociabilidades gays, em virtude da criação de redes de solidariedade que não passavam pelas famílias. A própria família de sangue de Guibert pouco aparece. Talvez em razão dessa alta expectativa das amizades entre gays, que não conseguem sempre entregar o afeto e apoio de que se precisa, é que a narrativa seja tão carregada de medo, dor e revolta por dimensões que a doença vai desvelando tanto sobre quem é soropositivo como soronegativo.

A certa altura, o autor dispara como “a aids se tornou a razão de ser de várias pessoas, sua esperança de ascensão social e reconhecimento público, especialmente para médicos que tentaram com isso fugir da rotina de seus consultórios”. Isso, sobretudo, para criticar ativistas — como o próprio companheiro de Foucault, Daniel Defert, morto recentemente — que estavam se organizando nas primeiras ongs e os médicos, que não sabiam bem o que fazer e acabavam impondo mais sofrimento e ansiedade aos pacientes. É verdade que ele revela mais de si quando fala dos outros, à medida que busca uma expiação da culpa que sente a delegando a outros sujeitos, mas há muita verdade nas críticas que apresenta a uma sociedade cristã e a uma medicina desumanizadora.

Que relatos fortes como o do Guibert ajudem-nos a superar a pior epidemia: a dos preconceitos

Se é verdade que o adoecimento parece mesmo ser a tônica do livro, a solidão e o desamparo, no decorrer da narrativa, acabam se impondo sobre a sordidez da doença. Paradoxalmente, conforme a aids toma o corpo de Guibert e a contagem de seus linfócitos t4 vai baixando a cada página, a doença vai se tornando menos central na maneira de ele encarar a vida, a ponto de dizer sobre a aids:

É uma doença maravilhosa […], uma doença inexorável, mas não fulminante […], uma doença que dava tempo de morrer, e que dava à morte tempo de viver, tempo de descobrir o tempo e de finalmente descobrir a vida.

Não há, de modo algum, a romantização da doença nessa (re)descoberta de vida que ela também proporciona a Guibert.

Passados quarenta anos do início da epidemia e mais de trinta da publicação de Ao amigo que não me salvou a vida, ainda não temos a vacina nem a cura, embora os tratamentos tenham evoluído de maneira muito significativa. Por outro lado, ainda hoje, milhares de pessoas morrem de aids a cada ano no mundo todo, especialmente a partir de um recorte de raça e classe. Muito estigma ainda persiste contra pessoas vivendo com HIV/aids. Que relatos fortes como o de Hervé Guibert, agora voltando a circular no Brasil, ajudem-nos a superar a pior epidemia existente: a dos preconceitos.

A editoria Livros e Livres, focada em títulos com temática LGBTQIA+, tem o apoio do Fundo de Direitos Humanos da Embaixada do Reino dos Países Baixos.

Quem escreveu esse texto

Renan Quinalha

É professor de direito da Unifesp e autor de Movimento LGBTI+: Uma breve história do século 19 aos nossos dias (Autêntica).

Matéria publicada na edição impressa #70 em maio de 2023.