Livros e Livres,

Amor desconhecido

Biografia ilumina espírito aventureiro de Elizabeth Bishop e detalha seu relacionamento com a brasileira Lota de Macedo Soares

01dez2023 | Edição #76

“Quando você escrever o meu epitáfio, tem de dizer que eu fui a pessoa mais solitária que já existiu”, disse a poeta e contista Elizabeth Bishop (1911-79) ao amigo Robert Lowell. Nascida em Worcester, Massachussetts, Bishop perdeu o pai aos oito meses e, quando tinha cinco anos, a mãe foi internada numa clínica psiquiátrica. Ela jamais voltou a vê-la, sua infância foi marcada pelo silêncio de seus familiares a respeito dessas ausências e pelo luto não compartilhado. A poeta aprendeu a transformar em literatura as adversidades que incluíam ainda o abuso sexual de um tio durante a infância e adolescência, a asma que a acompanhou por toda a vida e a luta contra o alcoolismo.


Em Elizabeth Bishop: uma biografia, Thomas Travisano explora a relação da autora com o Brasil, num momento de mudanças políticas e sociais

As perdas e o sentimento de desajuste social dão o tom da biografia lançada por Thomas Travisano em 2019 e agora traduzida para o português. Fundador da Elizabeth Bishop Society, o biógrafo se valeu do extenso arquivo preservado da poeta, que inclui cartas a namoradas e amigos que acumulou ao longo da vida. O papel da correspondência na vida de Bishop, “uma válvula de segurança emocional”, pode ser comparado à afinidade que a poeta brasileira Ana Cristina Cesar (1952-83) estabeleceu com a forma epistolar. São as cartas que revelam sua maneira de ver o mundo, com destaque para as enviadas a sua psiquiatra, Ruth Foster, em 1947, durante um processo terapêutico que revisitou seus momentos formativos.

O fazer poético de Bishop também é uma das preocupações de Travisano, que teve acesso a inúmeros manuscritos e analisou os poemas e contos desde sua publicação em jornais escolares. O autor avança e retrocede cronologicamente para analisar os escritos inspirados em eventos da trajetória da poeta que ocorreram décadas antes da sua publicação, como o colapso mental da mãe. Esta talvez seja a melhor maneira de aproximar a biografia de sua obra que, a partir da leitura do livro, tornam-se indissociáveis, revelando o “surrealismo da vida cotidiana” presente na sua produção. Bishop ganhou prêmios prestigiosos como o Pulitzer e o National Book Award e, embora sua escrita tenha ficado conhecida pela observação detalhada como método e pela temática da perda, Travisano percorre mudanças estilísticas motivadas por encontros frutíferos, como com os poetas Robert Lowell e
Marianne Moore.

Para além da trajetória de poeta e contista, vemos a história de uma mulher que viveu em seus termos

Da infância e juventude vividas entre a Nova Inglaterra e a Nova Escócia, passando por viagens à Europa e América do Sul, e o período no Brasil entre os anos 50 e 70, Bishop revelou aos diferentes grupos onde circulou um senso de humor irônico e autodepreciativo, a preocupação com a arte, a paixão pela aventura e uma abertura às surpresas, fossem boas ou más. 

A solidão que relatou a Lowell, embora corrobore o tema de seus poemas, contrasta com uma vida amorosa movimentada por seus relacionamentos com outras mulheres. Love Unknown (Amor desconhecido), título do livro em inglês, exemplifica uma característica determinante da autora: Bishop era uma mulher lésbica. Na escrita de Travisano, a sexualidade da poeta ganha destaque, passando pelas paixões platônicas dos acampamentos de verão, namoros com colegas da universidade, o relacionamento com a brasileira Lota de Macedo Soares, e outras companheiras ao longo da vida.

Diferente de poetas de sua geração que exploraram ao máximo suas experiências em caráter confessional, como o próprio Lowell e Anne Sexton, Bishop foi por vezes taxada de antiquada. A autora não se engajou com os debates sobre a política de identidade que emergiram ao longo da década de 70 e discordou de seus críticos, como a poeta e teórica lésbica Adrienne Rich, que sugeriu que Bishop deveria ser mais explícita quanto à sexualidade. Depois de uma visita de Rich, a poeta recebeu o colega Richard Howard que, ao ser apresentado ao apartamento em Boston, ouviu da amiga: “Sabe o que eu quero, Richard? Eu quero armários, armários e mais armários”, seguida de uma risada.

“Dona Elizabétchy”

Foi o conhecido espírito aventureiro que trouxe Bishop ao Brasil, no início da década de 50, no que seria uma longa viagem pela América do Sul a bordo de navios cargueiros. O encontro com Lota de Macedo Soares (1910-67), porém, transformou a visita numa estadia de quase duas décadas. Bishop se encantou pela Casa de Samambaia, em Petrópolis, projetada por Sérgio Bernardes e executada por Lota, e materializou seu sonho de viver na natureza. Com a companheira, foi inserida na classe intelectual brasileira, e as duas circulavam com liberdade entre artistas e escritores.

Entre Samambaia e o apartamento de Lota no Leme, a poeta americana com uma reputação consolidada virou apenas “Dona Elizabétchy”. Embora jamais tenha aprendido bem o português, Bishop escreveu muitos poemas sobre o Brasil, e dedicou a Lota Questões de viagem, de 1965. Travisano explora a relação da autora com o país num momento de mudanças políticas e sociais: a criação do estado da Guanabara, o governo de Carlos Lacerda e a construção do parque do Flamengo, projeto confiado a Lota que seria motivo de tensão entre o casal. A fixação da arquiteta com o projeto e a tentativa de controlá-lo — assim como buscou controlar a companheira — foi uma das razões do fim do relacionamento. O livro ainda trata das circunstâncias trágicas da morte de Lota, por ingestão de barbitúricos depois de tentar uma reconciliação, em mais uma das perdas que Bishop sofreu. 

Na fase final de sua vida, inaugurou seus anos como professora universitária, posição que assumiu aos 54 anos. Sua residência em Boston, enquanto lecionava na Universidade de Harvard, foi a última que ocupou antes de morrer de um aneurisma, em 1979. Para além da trajetória de poeta e contista, vemos na biografia a história de uma aventureira que viveu em seus termos, negociou com a norma e amou outras mulheres. Na sua lápide, os últimos versos de seu poema “A baía” aludem a uma vida atribulada, mas que mira sempre à frente: “A atividade confusa continua,/ medonha, mas animada”.

A editoria Livros e Livres, focada em títulos com temática LGBTQIA+, tem o apoio do Fundo de Direitos Humanos da Embaixada do Reino dos Países Baixos.

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Quem escreveu esse texto

Augusta da Silveira de Oliveira

É historiadora, doutoranda em História da América Latina na Universidade Brown.

Matéria publicada na edição impressa #76 em novembro de 2023.