Literatura,

Utopia Camorra

Em romance, Roberto Saviano narra a ascensão de um clã juvenil no crime organizado de Nápoles

01abr2019 | Edição #21 abr.2019

Arcanjo e Roipnol, dois chefões da velha guarda de Os meninos de Nápoles, estão longe de levar uma vida opulenta. Reclusos em apartamentos pequenos e escuros por não poderem pôr os pés na rua, esses homens seriam a antítese do mafioso triunfante idealizado pelo cinema americano. 

Essa desmistificação era um dos objetivos do jornalista Roberto Saviano ao escrever Gomorra (publicado aqui pela Bertrand Brasil), um romance de não ficção sobre a Camorra, colossal organização criminosa napolitana. Os cárceres privados de Arcanjo e Roipnol tampouco lhe são estranhos: depois que o fenômeno editorial atingiu 100 mil cópias vendidas (hoje são milhões), Saviano foi jurado pelos clãs sobre quem jogou luz e passou a viver sob escolta policial 24 horas por dia, alternando sua rotina entre cubículos reservados aos programas de proteção a testemunhas e quartéis de carabinieri. E lá se vão treze anos. 

Os meninos de Nápoles, uma obra ficcional, narra a ascensão de um bando juvenil ao alto banditismo da cidade. Entre protodelinquentes como Peixe Frouxo, Biscoitinho e Eutavadizeno, quem desponta é Marajá, o líder da gangue: um psicopata quase onipotente, excepcional estrategista que se inspira nas lições de Maquiavel para galgar posições no crime.

Gangue não, paranza. É esse o termo usado para definir essas facções, originalmente usado para os barcos pesqueiros que saem à noite no golfo de Nápoles. “O novo sol é elétrico [(a lanterna)], a luz ocupa a água, toma posse dela, e os peixes a procuram, confiam nela. […] E a luz se apaga. Os peixes são erguidos; o mar, para eles, de repente se eleva, como se o fundo estivesse subindo em direção ao céu. São apenas as redes sendo suspensas. Estrangulados pelo ar, as bocas se fecham em pequenos círculos desesperados, e as brânquias que param de funcionar parecem bexigas abertas. A corrida na direção da luz chegou ao fim.”

Embora esses bandos tomem emprestados os nomes das pequenas embarcações, a metonímia não deixa enganar: são os peixes, não os pescadores, os adolescentes camorristas. “Só é fritura de paranza quando tudo o que acaba na sua boca pode ser mastigado sem ser identificado. […] Na boca, tudo é mastigado junto. Juntos nos fundos do mar, juntos na rede, empanados juntos, colocados juntos na fervura do óleo, juntos entre os dentes e no paladar — apenas um, o gosto da paranza.” 

Implacável

O leitor brasileiro está habituado a narrativas protagonizadas por meninos como esses de Nápoles, da marginalidade brejeira de Capitães da areia, de Jorge Amado, a Cidade de Deus. Mas se em Paulo Lins somos dragados por um redemoinho em que criminosos são eliminados e sucedidos por herdeiros ainda mais jovens — a ponto de no final do livro os chefes do tráfico não terem mais do que treze anos —, o romance de Saviano parte de uma premissa linear e mais convencional.

É a genealogia de uma facção germinada dentro das possibilidades oferecidas pela estrutura horizontal da Camorra, mais fluida que a linha de comando único das tradicionais famílias mafiosas. E é no primeiro terço do livro, de ambientação, que o autor lança mão dos seus melhores recursos. Somos apresentados a uma cidade decadente e seus conflitos: a boate em que se reúne seu jet set promíscuo, escolas secundárias, tribunais, bairros decrépitos, a rotina desumanizada de eslavos e africanos. 

Saviano disse que procura causar raiva e nojo no leitor, como forma de denunciar a terra arrasada pelo crime

Numa tacada corajosa, os diálogos da versão original foram escritos em dialeto napolitano. É uma composição derivada do experimento do autor em Gomorra, em que transcreveu interceptações telefônicas às quais teve acesso. O resultado, de resto, serve para ressaltar a ótima tradução de Solange Pinheiro.

A partir da segunda parte do livro (são três), contudo, a leitura perde o ímpeto inicial — justamente pelo excesso de impetuosidade. A escalada das cenas de ação se acelera a ponto de enfadar, à medida que os meninos treinam com armamento pesado, dominam pontos de droga, fazem roubos de carga ou caçam imigrantes de forma obscena.

E, mesmo que as referências a filmes e séries (Donnie Brasco, Breaking Bad, Goodfellas) sejam calculadamente concebidas para desenhar as influências de um certo tipo social — o deslumbrado aspirante a mafioso —, elas podem revelar uma armadilha na criação do escritor: o espírito implacável de Marajá, potencializado no funeral catártico do desfecho, faz reforçar um estereótipo surrado. A continuação (prevista para o ano que vem) dificilmente poderá alterar essa percepção. 

Rio-Nápoles

Durante a turnê de lançamento de  Zero Zero (2014), Saviano disse que procura causar raiva e até nojo no leitor, como forma de denunciar a terra arrasada deixada pelo crime organizado. Seria algo análogo, por exemplo, ao que a italiana Letizia Battaglia fez com suas fotografias nos anos 1970/80, ao expor os cadáveres-escombros da Cosa Nostra em Palermo. 

À diferença do registro fotográfico, que documenta a violência consumada, Saviano elabora processos nauseantes, dos quais o ponto alto (ou baixo, a depender da análise) é a cena em que um traidor é violentado com uma máquina de solda. 

E os êxitos e as agruras (poucas) da paranza são narrados por uma voz profética e fatalista, uma entidade malandra que mapeia o destino daquela gente. O que gera um efeito oposto à “compreensão atônita” (a expressão é de Roberto Schwarz) que toma o leitor ao terminar Cidade de Deus

Os protagonistas de Roberto Saviano, alguém que pôs a vida em risco e que é porta-voz de sua causa em qualquer palanque, certamente são mais odiosos do que os de Paulo Lins. As causas podem ser as mais diversas, dos condicionamentos a que estão submetidos os personagens às aspirações que os movem. De todo modo, decodificar os pontos de fissura entre a marginalidade do Rio e a de Nápoles é trabalho antropológico ou sociológico. 

A denúncia formulada pelo escritor italiano em seu último romance, no entanto, provoca pouca reflexão. Talvez entretenimento — ou tão somente raiva, nojo.

Quem escreveu esse texto

Antonio Mammi

É editor do Nexo Jornal.

Matéria publicada na edição impressa #21 abr.2019 em março de 2019.