Literatura,

Um banquete de estranhezas

Com funcionários do submundo e mortos que vão ao mercado, contos de autor chinês celebrado por Kafka e Borges chegam ao Brasil

01mar2023 | Edição #67

Contos de fantasia chineses levou mais de quarenta anos para ser escrito e, uma vez pronto, precisou de cinquenta para ser publicado. Seus manuscritos foram passados de mão em mão com cuidado por um pequeno grupo de leitores, até finalmente sair em 1766. O autor havia morrido em 1715. Devemos a feliz existência dessa obra póstuma aos fracassos profissionais de Pu Songling: dos dezenove anos de idade em diante, ele prestou sucessivas vezes os concursos para se tornar um mandarim de alto escalão. De início, foi um prodígio aos olhos dos avaliadores e passou em primeiro lugar no exame imperial. Mas empacou no sucesso da juventude e foi só aos 72 que conseguiu a aprovação que de fato buscava. Morreu quatro anos depois.


Contos de fantasia chineses levou mais de quarenta anos para ser escrito

A despeito de todo o resto, ninguém pode tirar do fracassado o direito de inventar a própria história. É dele a prerrogativa de se afirmar em termos hiperbólicos — pelo menos isso, diante do pouco espaço que lhe é dado ocupar no mundo. Pu Songling, azarado na vida pública mas teimoso na sua imaginação, decidiu se autonomear “O historiador das estranhezas”, porque esse título o faria pertencer a uma tradição literária de alta respeitabilidade em sua época. Naquele momento, eram admirados autores conhecidos como “O historiador do amor” ou “O historiador das ilusões”. Pu Songling escolheu em que páreo se colocar. É como se um jovem escritor brasileiro hoje resolvesse chamar a si mesmo de “O bruxo da Santa Cecília” e, mais surpreendente, fosse bom escritor. Para fechar a comparação, o jovem precisaria, de fato, ser muito melhor que Machado de Assis, o Bruxo do Cosme Velho.

O sinófilo (entre outras coisas) Bertolt Brecht escreveu que, no nascimento de uma nova época, o ambiente fica cheio de possibilidades. O que as pessoas têm em mãos, em um momento como esse, é um material maleável, que aguenta torções e puxões enquanto as novas estruturas do mundo ainda não se fixaram. Pu Songling viveu num desses momentos.

Nasceu em 1640, quatro anos antes do fim de uma dinastia, a Ming, que estava no poder desde 1368. Ali teve início a última das dinastias chinesas, a Qing (1644-1912), liderada por uma minoria étnica vinda do norte, quase na divisa com a Sibéria. Foi esse o período na história da China que viu nascer dois dos maiores clássicos de sua literatura: de um lado, uma imensa epopeia onírica com mais de quatrocentos personagens (dos quais quarenta podem ser considerados protagonistas), O sonho do pavilhão vermelho, de Cao Xueqin, escrito ao longo do século 18; do outro, este Histórias estranhas de meu gabinete particular, tradução mais literal do título do que Contos de fantasia chineses. (Digressão: é também contemporâneo a Pu Songling o general Chen Wangting [1580-1660], que havia servido à dinastia suplantada e, por isso, se viu desempregado com o início de um novo governo. Sem função imediata a cumprir, se retirou para a vila natal e, com a experiência acumulada na guerra, criou a arte marcial do Tai Chi Chuan. Fecha parênteses.)

Pu Songling é discreto, talvez tenha ironia. Ou não. Às vezes é difícil saber se devemos rir quando alguém conta uma piada a sério

A China mudava em partes. Quando novas formas surgem, vem a reação daquelas que se apressam a ficar encruadas. O horizonte profissional disponível a alguém como Pu Songling continuava sendo — como tinha sido para as gerações anteriores e seria para muitas outras por vir — virar mandarim, ou seja, funcionário do governo. Ele passou a maior parte da vida no labirinto burocrático dos exames imperiais e sustentou a família trabalhando como tutor para famílias ricas. Entre aulas e concursos, Pu Songling foi se estabelecendo como estudante profissional. Pobre, portanto, mas frequentador da elite pelas beiradas, porque era culto. Tinha tempo de sobra para ler e escrever.

Meus arroubos irreprimíveis/ são êxtases desenfreados/ impossíveis de negar;/ minhas ideias voam longe,/ numa alegria sem controle/ que não cabe a ninguém recusar.

Assim descreveu seu processo em um poema que acompanha essas histórias, mas não consta nesta edição brasileira; traduzo a partir da versão de John Minford para o inglês. Esses Contos de fantasia chineses são a obra-prima de Pu Songling e aquela a que dedicou maior empenho. Por ela olhamos para outros mundos, para a China distante no tempo e para o que foi possível a um autor daquela China imperial, burocrática, imensa, imaginar.

Um olhar sóbrio

Os personagens de Pu Songling são em boa parte sobrenaturais: fantasmas, raposas encantadas, sereias, tigres que cultivam o amor filial. Mas não são esses os que protagonizam os contos. Se pusermos na balança, o rol de estudantes, oficiais, mandarins e concubinas é ainda maior. Vemos mulheres com pés enfaixados, algo ainda comum na época em que o livro foi escrito (uma criada é apresentada como tendo os pés enfiados em sapatos “pouco maiores do que um dedo”), e muitos monges em montanhas, além das práticas de alquimia taoísta e medicina tradicional. Ficamos sem saber o que nessas histórias é estranho porque era também para o autor — o que pertence, propriamente, ao campo da fantasia — e o que é estranho porque assim nos parece, vindo de uma cultura distante.

Ficamos sem saber o que é estranho porque era também para o autor e o que é estranho porque assim nos parece daqui

Numa das histórias, um homem mantém relações sexuais com uma fantasma em seus sonhos, e pede que ela mostre como são as cidades do submundo. Ela o leva para passear e cospe nos olhos dele para que possa ver melhor. O que ele enxerga são as pessoas do mundo dos mortos ocupadas com seus afazeres: elas vão ao mercado. Normal. Em seguida, ficamos sabendo que também entre os mortos existem prisões e tribunais, e que é possível inclusive subornar as figuras de autoridade ou, até mesmo, matá-las para escapar. Quer dizer, é possível matar um morto, mas as leis se aplicam: “Aqui no submundo, matar funcionários oficiais é um crime imperdoável!”. Terminado o turismo, o homem retorna à casa e conversa com a fantasma para arranjar sua ressurreição: ela lhe dá instruções práticas, com data e hora para acontecer, e tudo corre como o previsto, porque os passos são seguidos com objetividade. A história termina com o casamento dos dois, o homem e a ex-morta. O comentário do autor, ao final do conto, não diz respeito à ressurreição nem ao sexo com a fantasma (é dos atos mais recorrentes nessas histórias), ou ao que acontece com quem morre depois de morto. Pu Songling se preocupa em dizer: “Gostaria de sugerir ao governo que estabelecesse uma lei que diga o seguinte: ‘Quem mata um funcionário governamental deverá ser condenado a uma pena mais leve do que aquele que mata um homem comum’, porque, para mim, nenhum desses funcionários governamentais é indispensável”, e “além disso, não há nenhuma lei bem elaborada no submundo”. Normal. Estranho.

Não se trata de um realismo mágico. Não é que o mundo cotidiano seja infundido pelo sobrenatural e pelo absurdo. O movimento é o contrário: entramos num mundo de fantasia, e lá deparamos com circunstâncias perfeitamente mundanas. Vida, morte e ressurreição são precificadas, podem valer tantos taéis de prata. Fantasmas assinam contratos. É uma magia realista, talvez; cheia de detalhes e códigos sociais. O narrador mantém o olhar sóbrio, sem sobressaltos. Jorge Luis Borges escreveu que Pu Songling, diferente de um Edgar Allan Poe ou um E. T. A. Hoffmann, não se maravilha com as próprias maravilhas. De início, não o entendemos: a sensação é de estarmos diante de um autor-nenhum, a pura história acontecendo por si mesma, livre de ego. Pu Songling é discreto, talvez tenha alguma ironia. Ou não. Às vezes é difícil saber se devemos rir quando alguém conta uma piada a sério.

Leitura de gabinete

Pu Songling foi chamado por seus leitores de “O último dos imortais” ou “Eremita da fonte dos salgueiros” e entrou para o cânone da literatura chinesa como um de seus maiores autores de ficção. Esse seu livro, sintetizou Jorge Luis Borges, é tão importante na China quanto As mil e uma noites se tornou para nós. Borges o incluiu entre os 33 volumes indispensáveis que colocaria em sua Biblioteca de Babel.

São 491 histórias no total, das quais essa edição é uma amostra, com 55 contos. Foram escritas em chinês clássico, numa prosa refinada, elíptica e cheia de jogos de linguagem. A presente tradução não deixa isso claro. E chovem erros de revisão.

Pu Songling não tinha qualquer preocupação em se dirigir às massas. O que lhe interessava era entreter seus pares, que leriam esses “contos de gabinete” para distrair e preencher o ócio. É um banquete de variedades literárias: há histórias longas, médias, breves e brevíssimas. Um comentador chinês do começo do século 19 o descreveu como uma série de “miniaturas imensas”: são “densas e detalhadas”, “contêm todas as habilidades narrativas. Cada descrição é perfeita”.

Entre os críticos chineses, é frequente a visão de que Pu Songling seja um autor exigente — Lu Xun (1881-1936), o pai do modernismo na China, reclama do excesso de alusões literárias dos contos, que enroscam o andamento para o leitor comum. Adendo: não é um empecilho para o leitor comum brasileiro; qualquer referência chinesa obscura que possa haver passa batida. Então este, pelo menos, é o lado bom de ser um leitor comum e brasileiro de Pu Songling. Somos ignorantes em plenitude, sem o saber. Segundo adendo: os contos completos de Lu Xun também saíram recentemente no Brasil, em tradução direta, pela editora Carambaia. São, portanto, duas obras-primas da literatura chinesa publicadas no país no último ano. Ao leitor que quiser alguma referência de por onde começar, talvez dê para pensar que Pu Songling é um irmão Grimm recontado por Kafka. Lu Xun é Tchékhov.

Não é um realismo mágico, mas o contrário: entramos num mundo de fantasia e lá deparamos com coisas perfeitamente mundanas

Aliás, Kafka cultivou uma pequena obsessão por Pu Songling quando o leu nas traduções de Martin Buber e Richard Wilhelm e, sob essa influência, escreveu suas histórias orientais, como Na colônia penal e A muralha da China. Pu Songling deixou muitos descendentes na literatura do mundo. Kafka e Borges são dois dos nomes mais conhecidos; o greco-irlandês Lafcadio Hearn (1850-1904) é um terceiro, um pouco mais obscuro, que recontou as histórias desse livro em sua própria versão decadentista. Deu a elas um aspecto completamente ausente do original: o glamour. Pu Songling, diferente de Hearn, consegue narrar a morte e o sexo sem se sujar nem deliciar. E finalmente, para chegar a uma possível influência mais próxima a nós, na língua e no tempo, fica no ar a pergunta se Matilde Campilho não teria lido Pu Songling para compor as imensas miniaturas de seu Flecha (2022). Ou se é por lermos Matilde Campilho que a história literária troca de direção e, como descreveu Borges em seu ensaio sobre Kafka, Pu Songling se torna um de seus precursores.

Em Poison for Breakfast (Veneno no café da manhã, em tradução livre), romance mais recente de Lemony Snicket — famoso por Desventuras em Série —, Pu Songling aparece para uma conversa imaginária com o autor, e os dois discutem as três regras que existem para escrever um livro. A primeira é que toda história deve ter um elemento de surpresa; a segunda é que não se pode contar tudo. A terceira regra ninguém sabe o que é.

O que se perde

A tradução publicada pela Moinhos é assinada por alunos de pós-graduação e uma professora do curso de português da Universidade de Macau, como parte de um projeto maior e interessante de traduzir obras chinesas para o português. Resultou na publicação, também pela Moinhos, de Não acredito no eco dos trovões, de Bei Dao, poeta contemporâneo, e O além da montanha, volume de prosa de Yao Feng, professor que encabeçou o triplo lançamento. É uma figura curiosa, tradutor para o chinês de poetas modernos e contemporâneos do Brasil e de Portugal. Em uma entrevista, explicou que os versos “João amava Teresa que amava Raimundo que amava Maria[…]”, de Drummond, são mais divertidos em mandarim. O idioma não tem tempos verbais, então João ama e amou e amava e amará e amaria Teresa, ontem, hoje e amanhã, na eterna possibilidade futura ou já perdida.

É comum que algo se perca em traduções entre culturas tão distantes. Mas não só. É possível ter ganhos, como quando Drummond é colocado em um círculo taoísta, cultivando o vazio, pura maleabilidade e espanto. Yao Feng foi elusivo em sua brevíssima introdução à tradução de Pu Songling, e a edição não ajudou. A prosa ficou canhestra, e não há qualquer outro aparato que ajude a situar o livro em sua cultura ou na nossa ou explicar a seleção das 55 histórias. Sorte é que ainda sobraram 436.

Quem escreveu esse texto

Sofia Nestrovski

É mestre em Teoria Literária pela USP.

Matéria publicada na edição impressa #67 em fevereiro de 2023.