Literatura,

O que precisa morrer para a vida acontecer?

Autismo, romance do português Valério Romão, versa sobre o efeito que a chegada de um filho produz num pai e numa mãe

20mar2023 | Edição #68

É urgente que a experiência da parentalidade possa ser dita em termos mais reais e menos idealizados. É urgente que a experiência do autismo possa ser dita sob perspectivas menos universais e mais singulares. Autismo, de Valério Romão, coloca em cena todos os elementos necessários para a atualização do debate que articula essas duas pontas, e o faz com o vigor que só a literatura é capaz de realizar. O romance, de 2012, chegou por aqui em uma muito bem-vinda edição da Tinta-da-China Brasil, em 2022.


Autismo, de Valério Romão

A trama, construída entre quatro narradores, tempos e gêneros diferentes, é muito potente e arma a complexidade da experiência de forma espetacular. Avós, pai, mãe e um narrador de cenas tão sensíveis quanto cruas contam uma história encadeada sob a lógica subjetiva do tempo, para a qual a cronologia é menos decisiva. A prosa impiedosa, com cartas, diálogos, testemunhos e notas de diário, faz desse romance um verdadeiro thriller.

Quem teve o filho que sonhou? De quem é a tarefa de lidar com esse desencontro?

É e não é um livro sobre autismo; não é a história de um autista. Versa sobre o efeito no pai, na mãe e no casal que a chegada de um filho invariavelmente produz. Não à toa, Paulo Scott lembrou de Valério Romão lendo o poema “Fera oculta”, de outro autor português, Vasco Gato, ao resenhar Autismo aqui, na revista dos livros. O poema é uma carta ao filho que vai nascer: o pai conta o que deseja desse encontro, fala sobre o que deseja ser para o filho que vai chegar. No romance de Romão esse encontro é o que, para Rogério, pai de Henrique, foi o avesso da sua paternidade. “Henrique não era especial no sentido que Rogério queria. Se bem que não soubesse exactamente o que Henrique era, sabia que era menos do que aquilo que desejara, quando soube que ia ser pai”.

Projetos e possibilidades

Na história, o efeito da chegada de uma criança sobre um casal se desenha por muitos caminhos. As incoerências entre projetos e possibilidades, os desejos descombinados de cada um consigo e com o outro (que também toma aquela criança como sua), os sonhos dormidos e acordados que capturam as expectativas e as frustrações. Tudo isso pega o leitor pela mão para uma conversa sincera consigo mesmo: quem teve o filho que sonhou? De quem é a tarefa de lidar com esse desencontro? Não precisamos todos, e cada um a seu modo, saber o que fazer com isso para que possa acontecer um encontro?

Autismo traz todas essas perguntas e é o primeiro romance da trilogia para a qual Romão deu o justo nome de Paternidade Falhada. Enquanto esperamos ansiosos pela chegada dos outros volumes, O da Joana e Cair para dentro, a pergunta sobre o valor daquilo a que comumente referimos como falha, e que deixamos cair na conta da parentalidade, nos interroga individual e coletivamente.

A questão é que os impasses, as dificuldades e as dores de Rogério, Marta e Henrique dizem respeito a todos nós, e isso acontece não só porque o encontro com o bebê sonhado é sempre, em alguma medida, um desencontro, mas também porque, ao mostrar o que essa família vive como impedimento, Autismo coloca em jogo as nossas formas de fazer laço.

Entre os tantos aspectos da cultura expostos por meio da vida que a família de Henrique leva e dos espaços sociais pelos quais eles circulam e não circulam, há um que se destaca pelas consequências que produz sobre a vida das pessoas: o do tratamento. Depois de uma difícil e delicada construção que permitiu aos pais procurar um suposto especialista, Henrique, aos dois anos e meio de idade, é diagnosticado pelo “Fabuloso Dr. Miguel Relvas”. Dr. Miguel observa Henrique rapidamente, faz quatro ou cinco perguntas aos pais e bate o martelo: é autismo. É autismo, mas está mais para Asperger (um nome que ele usa para se referir ao que, por muito tempo, foi chamado de autismo de alto rendimento). É autismo, mas, por enquanto, vamos chamar de pdd-nos, perturbação geral do desenvolvimento sem especificação adicional.

Ler o autismo como menos é tomá-lo como déficit. Não há menos no autismo, há outra condição

O encantador de pais, trader do mercado da esperança, sentencia: “O vosso filho precisa é de estímulos e de muito amor. Vai ficar bom, e quando estiver com seis anos nem se vai distinguir dos outros na escola. Precisa de trabalho, esse menino precisa é de trabalho”. O trabalho, obviamente, está à venda ali mesmo, na clínica — no próximo guichê os pais terão acesso às formas de terapia que são indicadas para todos os autistas.

O Dr. Miguel Relvas revelou-se mesmo fabuloso: conseguiu produzir um diagnóstico sem entrar em relação com Henrique, sem nem mesmo escutar a história que os pais teriam para lhe contar. Ficou fora da transferência, diriam os psicanalistas. Escolheu olhar para os fenômenos do comportamento, desinteressou-se pelos interesses específicos de Henrique e achou saídas tão protocolares quanto as lições de moral que os apressados encontram nas fábulas infantis. O diagnóstico malconduzido é o motor de um imenso estrago, e seu crime ético é opor autismo e normalidade.

Ler o autismo como menos é tomá-lo como déficit. Não há menos no autismo, há outra condição. Na atualidade, este entendimento produz consequências tão importantes que já permite à comunidade autista questionar, legitimamente, a indicação compulsória de tratamentos-padrão para o autismo. Nas situações em que o tratamento é indicado, como no caso do pequeno Henrique, isso não se faz para que um autista seja “menos autista” ou para “deixar de ser autista” e alcançar a suposta normalidade. Autismo evolui para autismo, diria o psicanalista francês Jean-Claude Maleval. Estamos diante de um funcionamento subjetivo particular, um, entre outros possíveis.

História de amores

A oportunidade de pensar tudo que aqui nos enreda na perspectiva do romance literário abre a escuta: essa é uma história de amor, de amores. Mas não o amor que o Dr. Fabuloso atribui naturalmente aos pais e que, quando não se desdobra em benevolência e prontidão para o cuidado ofertado pelo especialista, retorna como culpa sobre eles.

Somos levados por Romão à dimensão da novela familiar de Freud: uma história de amor e de não amor que conta um casal, seu filho, uma família. E aí, sim, porque não há vida que não seja experiência, é uma história de amores atravessados pelas quarenta horas semanais de tratamento, pela ideia de que estímulo é uma coisa em si, pela exclusão escolar, pela confusão neoliberal entre as ideias de independência e de emancipação.

As crianças e suas famílias não constituem uma comunidade apartada da dinâmicas sociais

Ao mesmo tempo que o leitor percebe que a família de Henrique foi circunscrita ao espaço privado da sua experiência, de que estão condenados uns aos outros, e que não há rede de proteção, em outra camada de tempo, imprescindível ao romance, Henrique sofre um acidente e é internado no hospital.

Na primeira dimensão do tempo, a ambiguidade do desejo faz a morte entrar em cena como desejo de libertação. Rogério é um homem apaixonado que, para salvar a vida, deseja matar o autismo e se angustia com a ideia de que não há Henrique sem autismo. Marta é uma mulher exausta, reduzida à maternidade, atravessada por protocolos de tratamento.

Economia de cuidado

Na emergência hospitalar estão todos em queda livre. A urgência pela vida do filho faz aparecer para o pai, para a mãe e também para o leitor a compreensão de que o autismo não é uma urgência, que ter tomado o diagnóstico como uma corrida contra o tempo deixou as pessoas para trás.

Da conversa corajosa com a morte que Valério Romão nos faz encarar resta uma pergunta fundamental: seria a morte do autismo que daria vida a essa família? Em cada experiência, o que tem que morrer para a vida acontecer? Rogério fez a sua versão singular de resposta. Fechado o livro, temos ainda a tarefa urgente de repensar a nossa economia de cuidado e a sua distribuição. Sob qualquer condição de existência, os filhos não são assuntos que seus familiares têm para resolver sozinhos. Minha aposta é que outra condição de participação no espaço público teria efeitos objetivos e subjetivos decisivos sobre Marta, Henrique e Rogério.

As crianças e as suas famílias não constituem uma comunidade apartada das dinâmicas sociais, mas, ao contrário, sua experiência no laço com os outros transforma as formas do viver: a sua e, ainda bem, também as dos espaços dos quais participam.

Nota do editor
A Tinta-da-China Brasil é o selo editorial da Associação Quatro Cinco Um, que publica a revista dos livros.

Quem escreveu esse texto

Ilana Katz

É psicanalista e pesquisadora do Latesfip da USP.

Matéria publicada na edição impressa #68 em março de 2023.