Literatura japonesa,

Pelos olhos da areia

Ambientado em vilarejo tomado pelas dunas, romance de Kobo Abe discute o absurdo da vida e a transitoriedade das formas do mundo

01ago2021 | Edição #48

Um colecionador de insetos se embrenha por um areal em busca de cicindelas, besourinhos comedores de formigas-leão, que vivem em ambientes secos e arenosos. Movido mais pela curiosidade do que por método científico, durante a expedição de coleta ele vai dar num vilarejo litorâneo que já foi quase todo engolido pelas dunas. Em busca de abrigo por uma noite, ele desce até uma das casas, no fundo de uma cratera de vinte metros de profundidade, por uma escada de cordas que em pouco tempo não vai mais estar ali, deixando-o sem saída.

O homem — um professor que é referido pelo narrador quase sempre como “o homem” — se torna prisioneiro de uma mulher, a viúva que mora naquela casa, e passa a ser obrigado a realizar extenuantes tarefas domésticas, como limpar com uma pá a areia que cai do alto do buraco e extrair quantidades ínfimas de água da areia seca para as necessidades mais básicas.

Eis a trama desse clássico da literatura japonesa lançado em 1962 e que acaba de ganhar sua segunda tradução para o português brasileiro. Esta obra-prima ganhou fama mundial ainda cedo, com a adaptação para as telas de 1964, que levou o prêmio do júri no Festival de Cannes e chegou a indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro. Dirigido por Hiroshi Teshigahara, estrelado por Eiji Okada (de Hiroshima, mon amour) e com roteiro assinado pelo autor do livro, o filme foi lançado em dvd em 2000, com o título A mulher da areia, está disponível na íntegra no YouTube, com legendas em espanhol.

A mulher das dunas extrai sua força da fluidez ambígua da areia, matéria-prima tanto de paraísos como de desertos, fonte de relaxamento e de pesadelos. Kobo Abe parece dominar perfeitamente a materialidade e a simbologia da areia, instaurando o leitor na pele do protagonista em seus diferentes estágios de desespero, negação, ilusão e conformismo. Também somos levados a experimentar diferentes registros narrativos e perspectivas de leitura, como se da mesma areia fosse possível moldar muitos romances.

Um personagem diz, a certa altura, como quem define a empreitada de Kobo Abe em A mulher das dunas: “É a própria pessoa que precisa se tornar como a areia… Ver as coisas pelos olhos da areia”.

Uma vez preso no buraco, o homem vê suas certezas invariavelmente se esfarelarem

No início, entretanto, começamos a ver as coisas pelos olhos do homem. Ele gosta de analisar o comportamento dos demais personagens por meio de comparações com insetos e de pitadas de informações pseudocientíficas que funcionam como pontos de apoio. Ficamos sabendo que a areia é um “conjunto de partículas de rocha”, “magnetita, cassiterita ou, raramente, pepitas de ouro”, e que “possui diâmetro de 0,0625 a 2 milímetros”.

Uma vez preso no buraco, no entanto, o homem vê suas certezas invariavelmente se esfarelarem. O trabalho de retirar a areia que cai do topo do buraco parece inútil e ao mesmo tempo extremamente necessário para evitar a destruição total da casa. Os grãos de areia, afinal, como que pulverizam em milhões a pedra que Sísifo carrega todos os dias para o alto da montanha, e que rola novamente para baixo, devolvendo-o à estaca zero.

Textura

Se o livro tem uma forte dimensão filosófica, outro ponto que chama a atenção é a visualidade do texto e a atenção voltada à transitoriedade das coisas do mundo. Diz o narrador a certa altura: “Ao lado da areia, tudo aquilo que possui forma é vão… A única coisa certa é seu fluxo, refutador de todas as formas”.

A plasticidade da areia confere uma estrutura muito particular ao livro, verdadeiramente arenosa, própria dos castelos e buracos que fazemos na praia, que jamais se firmam e ao mesmo tempo parecem extrair força e imponência dessa precariedade. Um tipo de materialidade contraditoriamente frágil e avassaladora.

Pode parecer fácil enfrentar a areia e fugir. “Seu adversário não era apenas a areia?”, pergunta o narrador. “Não tinha de quebrar grades de ferro ou nada do tipo.” Mas a dificuldade está justamente na falta de solidez, que não permite que nada se escore em nada, que cada passo ou tentativa de se agarrar para escalar o paredão e fugir dali resulte apenas em mais desmoronamentos e isolamento. Afinal, conta o narrador, aquela mesma areia “já destruíra e engolira prósperas cidades e impérios”. A areia, afinal, é a ruína das ruínas, o produto final da moagem dos tempos.

O mundo externo comparece naquele buraco na forma de um jornal, muito desejado e por fim obtido pelo prisioneiro. Esses fragmentos de notícias estão entre os poucos elementos que permitem ancorar o romance, marcado por uma temporalidade mitológica, na dimensão histórica. Estamos nos anos 1960 dos primeiros Jogos Olímpicos de Tóquio, mencionados en passant, momento em que o país vivia um intenso processo de modernização e industrialização que não passou despercebido para Abe, militante que saiu do Partido Comunista japonês após se decepcionar com a intervenção soviética na Hungria. Esquecido, miserável e em processo de destruição, é como se o povoado estivesse sendo varrido para debaixo do tapete do progresso.

A areia invade os olhos, a boca, o sexo, impregna a pele, os cabelos, a comida, se mistura à saliva, ao suor, à urina. “Ainda que a mulher salpicada de areia fosse um atrativo visual, seria difícil considerá-la um atrativo tátil.” E penetra o núcleo do romance, a relação do homem com a mulher do título, a anfitriã que o acolhe para uma noite de repouso e logo se torna sua carcereira, amante e algoz.

Essa relação, ambígua e fluida como as formas da areia, traz uma nova dimensão para A mulher das dunas, uma tensão dramática que é lentamente sedimentada ao longo da leitura e muito bem resolvida no desconcertante desenlace.

Este texto foi realizado com o apoio da Japan House São Paulo.

Editoria com apoio Japan House São Paulo

Desde 2019, a Japan House São Paulo realiza em parceria com a Quatro Cinco Um uma cobertura especial de literatura japonesa, um clube de leitura e eventos especiais.

Quem escreveu esse texto

Paulo Werneck

É editor da revista Quatro Cinco Um.

Matéria publicada na edição impressa #48 em junho de 2021.