Literatura japonesa,

Inscrito no corpo

Mieko Kawakami fala sobre questões de gênero e autonomia corporal

01jul2023 | Edição #71

Qual é o corpo feminino idealizado por nós? Como uma criança se sente ao nascer? Se é difícil viver, por que gerar outro ser? Eis algumas das questões que permeiam Peitos e ovos, primeiro livro de Mieko Kawakami traduzido no Brasil, depois de grande repercussão no Japão e popularidade internacional imediata, sendo eleito um dos dez melhores livros de 2020 pela Time. A atenção é sustentada pelo tom inusitado do romance, que foge à visão estigmatizada do país asiático. “O fato de ele ser reconhecido no exterior me encorajou muito. Recebi vários comentários de leitores que disseram ter ficado surpresos porque aparecia uma realidade completamente diferente da imagem vaga que tinham do Japão passada pela literatura japonesa contemporânea”, diz Kawakami à Quatro Cinco Um.


Peitos e ovos, primeiro livro de Mieko Kawakami traduzido no Brasil, depois de grande repercussão no Japão e popularidade internacional imediata

Foi em um universo digital ainda sem redes sociais que a autora praticou a escrita que a conduziria à literatura. “Iniciei minha carreira artística como cantora e comecei a escrever um blog para divulgar minha música. Era uma espécie de diário no qual escrevia sobre tudo. Pude treinar vários estilos de escrita”, diz. Fazendo uma analogia com o corpo, ela conta que treinava “alongamento e corrida” todos os dias. “Aos poucos, à minha maneira, verificava a mobilidade do meu corpo e ia correndo uma distância cada vez maior.” Sua obra já foi vertida para mais de trinta idiomas e rendeu prêmios literários em seu país, como o Tanizaki, o Akutagawa e o Murasaki Shikibu, e ela foi finalista do Booker Prize de 2022 com Heaven (2009).

Romance feminista

Ainda que apresente Peitos e ovos como um microcosmo dos “mais variados problemas do ser humano”, homens são praticamente ausentes, deixando, entretanto, marcas permanentes em diversas situações, como na experiência de uma mãe solo e um caso de violência revelado pelo noticiário local: “Uma universitária que morava na região de Suginami, em Tóquio, fora esfaqueada no rosto, no pescoço, no peito, na barriga, ou seja, no corpo inteiro, perto de casa, por um homem”. 

Kawakami analisa o rótulo de “romance feminista” dado ao livro: “Em minha concepção, abordei problemas como desigualdade social, pobreza, antinatalismo e a ética relacionada à reprodução. Acho que quem o lê da perspectiva feminista simpatiza com as diferentes formas de pensar e de viver das personagens, e também com as escolhas que fazem ou não fazem.”.

Na última década, a chamada quarta onda feminista e movimentos globais direcionados à contundente denúncia da violência sexual e de gênero também impactaram a sociedade japonesa. Para a autora, contudo, os avanços não encobrem o caráter limitado dado ao tratamento do assunto. “Muitas vezes esses temas são discutidos apenas no restrito espaço do discurso. No dia a dia, os direitos das mulheres e das pessoas sem voz seguem violados.”

Em um Japão onde a educação sexual é “praticamente inexistente”, papéis de gênero e a autonomia corporal dão a tônica do livro. Ainda que questione uma aparente imposição social para a maternidade (“Alguém disse que, já que nasci mulher, com certeza quero ter filhos um dia. Como elas podem pensar dessa forma?”), a protagonista adolescente se inquieta com a primeira menstruação e procura entender como seria a aparência de óvulos não fecundados: “tipo ovas de salmão?”. 

A teia composta por Kawakami é densa, íntima e exige certo estado de dissecação

A teia composta por Kawakami é densa, íntima e exige certo estado de dissecação, perfurando uma camada fina de humor corrente na superfície das palavras que compõem cenas por vezes excêntricas, como quando uma personagem descobre que usava o absorvente com “a parte do adesivo virada para cima” e outra examina diferentes tipos de silicone e analisa corpos femininos em uma casa de banho. “Acho que a minha vivência influenciou o ritmo geral da minha escrita e a tonalidade da minha visão de mundo. Acho que isso está relacionado muito com o fato de eu ter nascido e crescido em Osaka. Por mais dura e difícil que seja uma situação, as pessoas de Osaka a encaram rindo. Acho que meu estilo de escrita recebeu grande influência desse biorritmo de chorar e rir na vida”, diz.

Sobre as influências, ressalta Ichiyo Higuchi (1872-1896), primeira mulher a se tornar escritora profissional no Japão e ainda pouco conhecida no Brasil. Na literatura moderna do Japão, na qual somente homens da elite se destacavam, ela escreveu em um estilo muito bonito e marcante. Abordava temas como a pobreza, as pressões exercidas sobre as mulheres e o fulgor da inocência da criança — e seu desaparecimento. Ela estava próxima à camada mais baixa da sociedade e observou as pessoas dessa perspectiva.”

Em um futuro próximo, Kawakami quer escrever um longo romance sobre “que tipo de religião é possível no Japão depois da seita Aum Shinrikyo [grupo responsável pelo ataque de gás sarin no metrô de Tóquio em março de 1995], ou que tipo de fé os japoneses conseguem ter”. Aos jovens, aconselha: “A melhor coisa a fazer é escrever o romance do jeito que você quer, pois os leitores vão lê-lo do jeito que querem. E, no início da carreira, você deve ter um espaço e um tempo em que consiga se dedicar à escrita sem ligar para a reação dos outros, sem ser incomodado. Esse espaço e tempo se tornarão uma preciosa e insubstituível força no futuro. Valorize o tempo em que fica a sós com o que você escreve”.

A editoria de Literatura japonesa tem o apoio da Japan House São Paulo.

Editoria com apoio Japan House São Paulo

Desde 2019, a Japan House São Paulo realiza em parceria com a Quatro Cinco Um uma cobertura especial de literatura japonesa, um clube de leitura e eventos especiais.

Quem escreveu esse texto

Milena Buarque

É jornalista, blogueira e atriz.

Matéria publicada na edição impressa #71 em maio de 2023.