Literatura japonesa,

Escrever as coisas como elas são

Pesquisador retraça o caminho de inovações tecnológicas de escrita que, no final do século 19, culminaram no romance japonês moderno

19nov2024 • Atualizado em: 27nov2024
Ilustração da série “Cem visões famosas de Edo”, de Utagawa Hiroshige (1857) (The MET/Reprodução)

Um dos narradores mais queridos da literatura japonesa é um gato — e não, este não é um texto sobre Murakami. Desde que apareceu pela primeira vez, em 1905, o felino sem nome que narra Eu sou um gato encanta leitores com suas observações perspicazes e sarcásticas sobre uma sociedade em rápida transformação. O romance de Natsume Soseki é um excelente retrato do Japão da era Meiji, como é conhecido o período que vai de 1868 — quando tem fim o xogunato Tokugawa e o poder é novamente centralizado na figura do imperador — a 1912.

É durante essas quatro décadas que o Japão deixa de ser um país semifeudal e fechado para o mundo e passa a potência industrializada. Novas tecnologias como as ferrovias, o telégrafo e o correio encurtam as distâncias e alteram a percepção do tempo. A própria palavra para “tempo” em japonês é trocada. Sai a concepção de uma temporalidade ancorada em conceitos espaciais que dialogavam com o passado idealizado do período Edo (1603-1868), o tempo dos xoguns, e entra o conceito sincronizado com mecanismos padronizados próprios de uma burocracia nacional-imperial.

Atento a essas transformações socioculturais, o gato de Soseki registra por meio da escrita o que vê e até o que seus amos pensam. É que ele também consegue ler pensamentos, basta se aninhar no colo de um humano e esfregar seu pelo contra a barriga que um “feixe de eletricidade” é gerado. Qualquer semelhança com a comunicação invisível via telégrafo sem fio seria mera coincidência? Não para Seth Jacobowitz, que enxerga no romance um ótimo exemplo do argumento que defende em A escrita no Japão da era Meiji: a literatura do período influenciou e foi influenciada pelas novas técnicas no campo da escrita, da comunicação e das artes.

Um dos méritos do professor de japonês na Universidade do Texas é lançar as redes de análise para além dos estudos literários, pois, segundo Jacobowitz, a história literária tem o péssimo hábito de esquecer tecnologias como a taquigrafia. Como explica o autor em sua introdução, o título “se estende no sentido tanto de caracterizar as condições materiais da escrita quanto de elucidar o processo autorreflexivo e generativo de escrever sobre tecnologia na literatura e na cultura visual”. Até pouco tempo atrás, gerações de estudiosos eram ensinadas a ler “em um grau puramente exegético, dando pouca importância ao empreendimento colossal de escavar a história da mídia”.

Um dos méritos de Jacobowitz é lançar as redes de análise para além dos estudos literários

Temos, assim, um livro que transita entre história literária e midiática, com o objetivo de reconstituir as mudanças nas práticas discursivas que remodelaram os regimes verbais, visuais e literários herdados do período Edo. Na segunda metade do século 19, o Japão criou um serviço postal nacional que passou a regular o envio de todas as mensagens escritas; patrocinou reformas nacionais de língua e escrita — incluindo sistemas experimentais como a notação taquigráfica, que buscava registrar a fala com maior precisão e velocidade — e novas categorias de realismo literário que iriam desembocar no romance moderno.

Nesse mergulho na era Meiji, o pesquisador realiza uma importante revisão bibliográfica que aponta as limitações de trabalhos anteriores, que enxergavam o Japão mais afastado do que de fato esteve dos desenvolvimentos tecnológicos que ocorriam no Ocidente — também sob profundas transformações decorrentes da industrialização e de movimentos de padronização temporais, espaciais e linguísticos. Foi especialmente profícuo o intercâmbio japonês com o mundo anglófono. Jacobowitz mostra como os reformadores da era Meiji estavam em constante diálogo — não correndo atrás do prejuízo — com seus homólogos dos Estados Unidos e da Inglaterra em campos como o estabelecimento de uma linguagem unificada ou experimentos de notação fonética.

Graham Bell

Um dos personagens dessa história é Alexander Melville Bell, que desenvolveu o método da Fala Visível. Ao contrário da taquigrafia, baseada em valores sonoros alfabéticos ou silábicos, era composta por “dez símbolos radicais”, que se combinavam para formar consoantes, vogais, semivogais, modificadores e tons. Embora não conseguisse superar a taquigrafia na velocidade, Bell defendia que seu método tinha maior precisão fonética. A Fala Visível ganhou um fã: o educador Shuji Isawa, que aprendeu a técnica com o filho do escocês, Alexander Graham Bell. Seu objetivo era usar o método para expandir a educação colonial e promover as políticas imperiais na recém-anexada ilha de Taiwan. Ao fim e ao cabo, a Fala Visível foi um experimento fracassado tanto em inglês como em japonês — Graham Bell teria mais sorte que o pai com sua outra invenção, o telefone. Mas Jacobowitz lembra que o método sobreviveu nos escritos de Isawa “como um modelo auxiliar para a extensão imperial da ‘língua nacional’ do Japão pelo Leste Asiático”.

Mais relevante para o surgimento de novos estilos literários e modos de realismo foi a taquigrafia, conhecida no Japão como fonografia ou “fotografia verbal”. Essa técnica manual de escrita trabalhava com as ideias de gravação e transmissão de alta fidelidade antes do advento da tecnologia mecânica de gravação de som. Foi fazendo uso dela que Kanzo Wakabayashi transcreveu as performances de rakugo (gênero teatral) de Encho Sanyutei e publicou, em 1884, uma série de libretos. A transcrição taquigráfica das peças de rakugo produziu as duas marcas da literatura japonesa moderna: transparência fonética e realismo mimético. Como impunha o grito de guerra dos literatos daqueles anos, era preciso “escrever as coisas tal como são”. Esse movimento, lembra Jacobowitz, também passa por duas outras obras do período: A essência do romance (1885), de Shoyo Tsubouchi, e Nuvens flutuantes (1887), de Shimei Futabatei. 

É a ideia de realismo como transcrição, indivisível do esforço de implementar um estilo unificado para a língua japonesa durante a era Meiji, que Jacobowitz planta como alicerce do romance japonês moderno. O último estudo de caso de sua análise é, justamente, a obra de Soseki sobre um gato que “escreve as coisas tal como são”. Romance complexo e polifônico, Eu sou um gato mostra como o artifício de uma nova linguagem literária pode ser usado por um narrador que é, ele próprio, um escriba e autor.

Editoria com apoio Japan House São Paulo

Desde 2019, a Japan House São Paulo realiza em parceria com a Quatro Cinco Um uma cobertura especial de literatura japonesa, um clube de leitura e eventos especiais.

Quem escreveu esse texto

Guilherme Magalhães

Jornalista, é editor de opinião do site Jota.