Literatura japonesa,
Deformações ocas
‘Anamorfose’ impressiona pela criatividade improvável de Shintaro Kago, mas falta peso a acontecimentos e vida interior a personagens
01set2024 • Atualizado em: 30ago2024 | Edição #85Pensar e satirizar o imaginário e o psiquismo japonês diante de sua herança de guerras — e dos processos de ocidentalização derivados da industrialização — é uma das escolhas do projeto estético do quadrinista Shintaro Kago, um dos nomes mais expressivos e intelectualizados do ero guro nansensu, entrecruzamento do erótico, do grotesco e do bizarro.
Os universos criados por Kago em livros como Dementia 21 (Todavia), Pedacinhos e Anamorfose (DarkSide), este último em uma voltagem menor, são mundos desinvestidos da realidade tal qual a conhecemos. Ali, as ilustrações e linguagens do espaço urbano e das subjetividades dos personagens são calcadas em sintomas perturbadores de uma sociedade japonesa contemporânea desorbitada pelo excesso de regras e de hierarquias, e pela crueldade do capital e suas derivações, como o desamparo, as adições e as neuroses.
As imagens que surgem em qualquer busca sobre o autor causam impacto pela força da imaginação e precisão do traçado, delírios quase impossíveis de rostos e corpos desfeitos em espirais de vísceras e engrenagens que impressionam até os que não têm qualquer interesse em histórias de terror.
A capa de Anamorfose também provoca um efeito assim: sobre o fundo em rosa-bebê vemos o contorno da cabeça de uma moça que tem o rosto substituído por tentáculos de polvo sobrepostos, evocando a mitologia Cthulhu dos contos de horror do norte-americano H. P. Lovecraft ou imagens de shokushu zeme, em que mulheres são violentadas por tentáculos alienígenas ou marinhos nos hentais contemporâneos ou em xilogravuras japonesas a partir do século 18.
Mesmo com a excelência da técnica visual, atravessamos a história num distanciamento clínico
Nessa HQ, diferente do que anuncia a capa, é raro o espetáculo visceral. Ficamos como voyeurs da criatividade improvável do mangaká, capaz de dar diagramação eficaz e traços notáveis às suas ideias, mas pouco peso aos acontecimentos e pouca vida interior aos seus personagens, que sofrem feito bonecos que se desmontam em manchas finas e grossas de nanquim. A premissa de quase todas as histórias é de algum interesse e originalidade, porém, nas sendas possíveis de aproveitamento estético com esse gênero, o livro não satisfaz. As narrativas são pouco interessadas em esmiuçamentos metafóricos, históricos, sociológicos ou psicanalíticos em cima ou a fundo do que é conjurado pela imaginação notável de Kago: tudo é colocado numa velocidade que parece priorizar uma vontade de dar um registro compreensível dos acontecimentos, impressionante pela agilidade e eficácia, mas sem possibilidade de um adensamento filosófico. Os monstros e monstruosidades não são pensados como símbolo de nada externo a eles, são pontes circulares que dão vazão apenas a si próprios.
Shintaro Kago não poupa detalhes sórdidos e explora possibilidades do mangá ao se inserir em ‘Pedacinhos’
A violência explícita e as deformações ocas que vemos em Anamorfose ressoam como se no filme Alien, de Ridley Scott, tivessem removido todo subtexto sexual, tanto o formato fálico do crânio do monstro quanto o parto forçado do filhote que irrompe da barriga do tripulante e também o protagonismo feminino incomum, restando a premissa feita aos executivos de estúdio da época: um longa que seria “Tubarão no espaço”.
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Não é obrigatório que narrativas desse gênero tenham um substrato semelhante para ter algum valor, mas precisariam daí se sustentar de alguma outra forma, talvez pelo desenvolvimento do enredo, da ambientação ou dos personagens. Esse segundo caminho é o trilhado, por exemplo, pelo filme A coisa, de John Carpenter. Nele, não encontramos uma tensão metafórica tão palpável como no filme de
Scott, mas a narrativa se sustenta pelo suspense e paranoia tecidos pela ameaça do Doppelgänger alienígena, aliados ao espetáculo visceral das transformações do monstro que seguem uma lógica oposta à da cinematografia de sombras e mistério de Alien. É possível, como se sabe, aterrorizar de forma sugestionada ou escancarada, a depender da execução.
Pegadinha desastrosa
A primeira história de Anamorfose, mais longa e que dá título ao livro, narra uma pegadinha televisiva que termina em desastre. Um artista é dopado e colocado dentro de uma fantasia de monstro gigante (um kaiju, como o Godzilla) pisoteando uma maquete de cidade, no intuito de que ele acordasse e pensasse ter sofrido uma maldição e se transformado de verdade na criatura. Um funcionário aparece então vestido de herói tokusatsu (tipo Jaspion) para enfrentá-lo, desferindo um golpe que explode pequenos dispositivos de pólvora já instalados na fantasia. Por um excesso de explosivos, o artista acaba morrendo, a caveira semiexposta no que sobrou de seu rosto.
Segue desse início promissor uma espécie de reality show em que os participantes precisam durar 48 horas no espaço em que se faz uma reencenação espiritual de assassinatos, com reviravoltas surpreendentes a cada dúzia de páginas. A imaginação do autor segue impressionando. Porém, mesmo com tantos acontecimentos surpreendentes, não há possibilidade de envolvimento com os personagens e com o que acontece com eles. Mesmo com a excelência da técnica visual, atravessamos a história num distanciamento clínico.
Os contos curtos tensionam sofrimentos psíquicos e a precarização de espaços públicos, forjando uma bifurcação de matriz psicodélica que lida incansavelmente com mundos ora de escassa lucidez, ora delirantes. Em “Empurrão nas vendas”, a voltagem satírica atinge seu auge quando uma es-
pécie de coach tenta persuadir uma estudante, culpada por não ter conseguido impedir o suicídio de sua amiga, de que um fantasma de sumô é o seu espírito guardião. O matador de aluguel travestido de guru de vendas convence a estudante a trabalhar em sua empresa, já que seu guia fantasmático golpeia todos os personagens com ideação suicida. Dessa relação empregatícia criminosa se delineia uma espécie de jornada da heroína rumo ao expurgo de suas maldições.
É nessas narrativas breves, frenéticas como um Cronenberg num ritmo TikTok, que encontramos a melhor parte do livro, mesmo assim num saldo irregular, como é comum em coletâneas. É igualmente nelas que vemos o desabrochar mais nítido da linhagem ero guro, encharcada de deboche e de pulsões libidinais extremadas.
Editoria com apoio Japan House São Paulo
Desde 2019, a Japan House São Paulo realiza em parceria com a Quatro Cinco Um uma cobertura especial de literatura japonesa, um clube de leitura e eventos especiais.
Matéria publicada na edição impressa #85 em setembro de 2024.