Literatura japonesa,
Aventura literária
Em atividade aos 83 anos, Leiko Gotoda abriu caminho para a literatura japonesa no Brasil ao traduzir, por conta própria, épico para os filhos
01ago2024 • Atualizado em: 02ago2024 | Edição #84Os dicionários online podem até dar uma ajuda de vez em quando, mas, se puder escolher, Leiko Gotoda prefere os volumes físicos que cobrem sua mesa de trabalho. A tradutora, pioneira em verter obras diretamente do japonês para o português no Brasil, é avessa às virtualidades — vale para livros e para entrevistas.
Nascida em São Paulo, em 1941, Gotoda traduziu até aqui dezoito livros e catorze contos de diferentes autores nipônicos. Aos 83 anos, segue trabalhando; acabou de traduzir A lanterna das memórias perdidas, romance da escritora Sanaka Hiiragi publicado pelo Grupo Editorial Record.
Sua primeira aventura literária nesse campo foi no início dos anos 90, quando começou a traduzir, por conta própria, o épico Musashi, de Eiji Yoshikawa. Aventura não é modo de dizer: uma das mais vendidas da história do Japão, a obra é um calhamaço de quase 2 mil páginas que nunca tinha sido traduzida integralmente no Brasil.
Musashi é o mais famoso samurai do Japão, um homem de quem se conhece muito pouco, ainda que haja um consenso de que é uma figura real. Ao que se sabe, viveu entre os séculos 14 e 15. Publicado em três volumes, o romance é inspirado em uma parte da vida do guerreiro histórico.
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Gotoda queria que os quatro filhos e outros brasileiros conhecessem a obra, que considerava uma introdução importante à cultura e à história de um Japão não ocidentalizado, que serviu de esteio à cultura nipônica moderna. Então tradutora recém-formada, ela já tinha trabalhado no primeiro tomo praticamente inteiro quando resolveu bater na porta de editoras para convencê-las a publicar.
‘A língua japonesa é particularmente pródiga em apresentar dificuldades para seus tradutores’
Foi um longo percurso até que encontrasse uma porta aberta. “As condições que me foram apresentadas não eram favoráveis, não faziam jus à importância da obra. Algumas editoras recusaram só de saber o tamanho do original”, lembra. A tradutora estava quase desistindo, quando foi apresentada ao editor da Estação Liberdade, naquele momento uma casa editorial de menor porte. “A editora não tinha o tamanho e a importância atuais, e o lançamento foi feito com alguma dificuldade”, conta ela.
A recepção, no entanto, surpreendeu e o interesse dos leitores pelo romance épico foi mantido ao longo dos últimos quase trinta anos, período em que ganhou diferentes edições na Estação Liberdade — só uma delas vendeu mais de 100 mil exemplares. “Extrapolou enormemente o público alvo de quatro leitores, meus filhos, a princípio imaginado por mim”, brinca a tradutora. “Tenho para mim que a acolhida à obra revelou a existência de um público receptivo à literatura nipônica, tão diversa do modo de ser ocidental.”
Para Gotoda, havia um desejo crescente dos brasileiros em conhecer mais a cultura “dos habitantes do outro lado do globo terrestre”, como ela diz. Em contraposição à primeira metade do século 20, quando japoneses e descendentes foram discriminados e perseguidos no Brasil, os anos recentes mostraram uma grande disponibilidade para mergulhar na cultura nipônica. A tradutora atribui também a isso o sucesso de Musashi, que foi o início de uma trajetória ascendente no interesse de leitores por textos japoneses.
Entre os elementos que atraíram o leitorado também estão marcas do trabalho da tradutora, como as notas detalhadas que permitem uma imersão em aspectos sociais e culturais do que aparece no enredo, explica a também tradutora Rita Kohl, que fez um estudo de caso da tradução brasileira de Musashi feita por Gotoda em sua pesquisa de mestrado na Universidade de Tóquio. “Ela é uma tradutora cuidadosa e trouxe um conteúdo grande de informações históricas, com contextos espirituais e filosóficos. Isso fez com que a obra fosse recebida aqui como um grande símbolo da cultura japonesa e samurai.”
Além de ganhar espaço entre os leitores, a obra inaugural da trajetória profissional de Gotoda também abriu caminho entre os editores e facilitou a ampliação das traduções diretas do japonês. “A Leiko foi fundamental para esse processo, assim como a Estação Liberdade”, avalia Kohl. “Ela tem um domínio muito bom tanto do japonês quanto do português.”
Mudança de norma
O bom domínio do idioma final do texto sempre foi um fator determinante na escolha de tradutores, mas os estudos da tradução sugerem uma mudança da norma a partir dos anos 2000. Antes, a boa tradução era aquela que, ainda que feita indiretamente, a partir do inglês ou do francês, tinha como autor um figurão do ecossistema literário local, fosse um tradutor já renomado ou um escritor com amplo domí-
nio do português. Mas a virada do século marca também o crescimento da ideia da boa tradução como a que é feita diretamente do idioma original.
A mudança ampliou o leque de autores e autoras nipônicos disponíveis nas estantes brasileiras. Se chegavam sobretudo os clássicos, como Yasunari Kawabata e Junichiro Tanizaki
(de quem Gotoda é sobrinha, apesar de nunca tê-lo conhecido), agora os contemporâneos também começavam a ser contemplados — igualmente com direito a traduções diretas, como o popular Haruki Murakami e autoras como Sayaka Murata e Yoko Ogawa.
Entre os que já traduziu, Gotoda destaca a dificuldade do Nobel de literatura Kenzaburo Oe, com seus parágrafos de estrutura complexa que se estendem por uma página inteira. Para ela, um grau acima da tarefa já árdua de transpor um texto japonês para o português. “A língua japonesa é particularmente pródiga em apresentar dificuldades para seus tradutores, a começar pelos ideogramas de difícil memorização, passando pela estrutura, tão diferente da portuguesa”, explica. “Em textos como Musashi, os diferentes níveis de linguagem existentes à época me pareceram intransponíveis. Resolvi parcialmente a questão atribuindo diferentes pronomes — vós, tu ou você — ao trato entre indivíduos das diferentes
camadas sociais.”
Em atividade contínua, Gotoda está frequentemente rodeada pela literatura. Nem sempre são os japoneses que ganham sua profunda atenção; os brasileiros também têm espaço em suas leituras. Guimarães Rosa, “com sua criatividade e engenhosidade”, é o favorito, mas ela revela apreço pelas obras de Milton Hatoum, Bernardo Carvalho e Rodrigo Lacerda, cuja prosa considera “interessantíssima”. Faz das visitas à linguagem dos autores do país em que nasceu um passeio prazeroso — desde que seja pelas páginas do papel, analógicas e concretas.
Editoria com apoio Japan House São Paulo
Desde 2019, a Japan House São Paulo realiza em parceria com a Quatro Cinco Um uma cobertura especial de literatura japonesa, um clube de leitura e eventos especiais.
Matéria publicada na edição impressa #84 em agosto de 2024.