Literatura japonesa,
A mimetista e o mimetista
Em mangá sobre uma gênia da imitação, Osamu Tezuka usa técnicas de outras estrelas do desenho dramático
01dez2022 | Edição #64Quando conhecemos Toshiko Tomura, ela está recebendo o Prêmio Akutagawa, uma das maiores honrarias literárias do Japão. Logo descobrimos que Tomura não só é uma escritora de renome: ela já foi designer, atriz e diretora de teatro. Conforme a trama avança, também a vemos como “assassina de aluguel anarquista”, esposa de um poderoso executivo e modelo de revista masculina. Em todas as funções, ela se destaca, é a melhor entre seus pares.
O livro dos insetos humanos, de Osamu Tezuka, foi serializado na Play Comic, revista para o mercado seinen (homens adultos), entre 1970 e 1971
Tomura é uma mimetista. O poder tem um toque de fantasioso, mas não é pintado como sobrenatural em O livro dos insetos humanos. Vem de muita ambição, certo narcisismo e uma dose do movimento feminista nos moldes de cinquenta anos atrás, quando o mangá foi publicado.
No rastro da mulher ambiciosa e independente, há a série de homens e mulheres que ela mimetizou — ou de quem sugou as habilidades. Na primeira cena do mangá, há três figuras que reagem ao momento em que Tomura recebe o prêmio literário: um jovem designer com expressão de tristeza; um homem albergado que ergue um copo de saquê para brindar à escritora; e uma mulher de quem só vemos os pés pendendo no ar, enforcada.
A suicida é a escritora que Tomura mimetizou para escrever seu livro premiado — que também se chama O livro dos insetos humanos. Um jornalista descobre a relação entre as duas mulheres e acusa Tomura tanto de plágio quanto de ter levado a outra ao suicídio. Rebatendo com uma justificativa que vai se repetir com todos que mimetiza, ela acusa a própria mimetizada de incompetência. Na mente de Tomura, ela copia as habilidades dos outros para cumprir o potencial que eles não cumprem.
Glamour setentista
O livro dos insetos humanos foi serializado na Play Comic, revista para o mercado seinen (homens adultos), entre 1970 e 1971. Osamu Tezuka, o chamado “Deus do Mangá”, já tinha enorme renome por seus quadrinhos para o público infantojuvenil, como Astro Boy, Kimba e A princesa e o cavaleiro. Em fins dos anos 60, motivado pelo movimento gekigá — “desenho dramático” —, decidiu produzir também quadrinhos para leitores adultos.
Insetos humanos tem todos os marcadores de quadrinho adulto: sexo, violência, morte, prêmios literários e personagens sinistros. Também é o suco do glamour dos anos 70. O movimento feminista da época provavelmente inspirou a protagonista que tudo pode e tudo consegue; a tiracolo, vem um certo grau de misoginia ou questionamento dos valores do movimento, ao tratar Tomura como uma narcisista que pisa nos outros para conseguir o que quer.
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A trama ainda tem conspiração política, os terroristas anarquistas ou comunistas que frequentavam o noticiário da época (Tomura torna-se uma), fotógrafos de moda, hard rock e intrigas do mundo empresarial, em um período em que o Japão estava em uma forte ascensão econômica.
O autor faz experimentos que remetem ao experimentalismo das artes gráficas da época e a outros gekigás. Imagens repetidas, estampas psicodélicas, enquadramentos ousados, variações em técnica de desenho e minimalismos são Tezuka explorando o arsenal narrativo do mangá para se comunicar com um público mais requintado.
‘O livro dos insetos humanos’ tem sexo, violência e prêmios literários e é o suco do glamour dos anos 70
Por outro lado, a caricatura típica do mangá infantojuvenil ainda é forte nos personagens de proporções exageradas ou em metáforas visuais que provocam mais riso do que peso dramático. Quando Tomura dá uma notícia bombástica a seu chefe, o homem dá um pulo e fica com os pés no teto. Porém, ao longo do volume, o cartunesco vai dando lugar a experimentos gráficos mais sofisticados. Tezuka estava começando no gekigá.
Em uma conexão entre o mundo adulto e o infantojuvenil, Tomura tem um retiro especial, a antiga casa de sua mãe, onde se recolhe entre uma aventura e outra. Lá ela se deita, nua e com uma chupeta na boca, no meio de brinquedos da infância. Sua mãe está presente como uma estátua de cera em quem Tomura tenta se amamentar. São imagens intrigantes, que Tezuka usa para pontuar cada metamorfose da personagem.
Entomólogo
Tezuka foi entomólogo amador e faz várias associações entre sua protagonista e os insetos. O nome real de Toshiko Tomura é Usuba Kagueri — referência a usubakaguerou, a formiga-leão que constrói armadilhas para capturar formigas e outros bichos quando está em fase larval.
Os títulos dos capítulos também são nomes de insetos: “Cigarrinha”, “Esperança”. Em uma sacada engraçadinha (talvez com colaboração do tradutor Luiz Claudio Bodanese), o capítulo em que Tomura seduz um poderoso executivo e jura derrubá-lo chama-se “Besouro serra-pau”.
A edição brasileira traz um ensaio inédito do crítico inglês Paul Gravett. Ele apresenta o contexto econômico e político do Japão quando Insetos humanos foi lançado e o momento da história dos mangás em que se insere. Tezuka estava se inspirando no movimento gekigá para lançar uma nova fase de sua carreira, observando o trabalho de autores como Yoshihiro Tatsumi e Shigeru Mizuki. Gravett aponta semelhanças entre o experimentalismo gráfico de Tezuka e os de outra estrela do gekigá, Shotaro Ishinomori — também pupilo de Tezuka.
Apesar de o crítico justificar que na história dos mangás há uma “longa tradição de que novatos comecem copiando” e que Tezuka “com certeza influenciou numerosos escritores de mangá” de sucesso, fica a impressão de que o grande mimetista deste mangá foi o próprio Tezuka.
Essa editoria tem apoio da Japan House São Paulo.
Editoria com apoio Japan House São Paulo
Desde 2019, a Japan House São Paulo realiza em parceria com a Quatro Cinco Um uma cobertura especial de literatura japonesa, um clube de leitura e eventos especiais.
Matéria publicada na edição impressa #64 em outubro de 2022.
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