Literatura infantojuvenil,

Tudo se perde — e nos transforma

Livros infantis sobre itens que desaparecem convidam a refletir sobre o caráter impermanente da vida

30maio2023 | Edição #71

Há de existir em cada aresta deste planeta um buraco negro de meias desquitadas, elásticos de cabelo exilados e chaves de casa fugitivas. Uma espécie de país das maravilhas, um mundo invertido acessível apenas ao santo dos três pulinhos — não importa o quanto você revire o sofá, olhe embaixo da cama ou verifique a geladeira (afinal, por que não?). O mistério universal dos objetos perdidos é tema central de dois livros infantojuvenis recém-chegados às livrarias brasileiras. Em Doutor Sumiço (Companhia das Letrinhas), o cartunista paulista Caco Galhardo dá vida a Lico, um garoto que tem o superpoder de fazer as coisas desaparecerem, mas acaba fazendo mau uso desse dom. Já em A costura (Pequena Zahar), a escritora e ilustradora argentina Isol nos conduz pela busca da menina Lila por itens perdidos, que ela crê terem caído em buracos pelo mundo, fissuras que decide procurar e costurar.

Em comum às duas histórias há o destaque à figura da avó, não só como porto seguro para os netos, mas também como detentora e guardiã de saberes ancestrais. “No livro, a avó traz o afeto, o amor e a compreensão, sem contar os bolinhos de queijo. E é na casa dela que estão todas as lendas dos nossos antepassados que vão ficando pelo caminho”, conta Galhardo, que dedica seu livro a São Longuinho. “Dizem que era baixinho, por isso encontrava as coisas perdidas no chão com facilidade. Sempre fui seu fiel devoto. É um dos casos em que ciência e religião se sincretizam!”

As coisas que somem nos convidam a aceitar o inexplicável como parte intrínseca da jornada

Para Isol, cuja própria avó tinha uma forte ligação com o sobrenatural, o fato de as pessoas mais velhas falarem sobre temas como magia, curas milagrosas e mau-olhado lhes confere uma aura fascinante para as crianças. “Os mitos e as superstições surgem como resposta a perguntas sobre fenômenos que não têm explicação racional e também para propor um encontro poético com o mundo, abrigando os medos e as coisas que não conseguimos entender”, diz. “Navegar pelas lendas é como navegar na alma de nossos antepassados.”

A anciã é também quem perpetua a prática do bordado em A costura, livro originalmente encomendado pelo Museu Palestino como parte de um projeto de valorização da cultura nacional. Inspirada por um intricado xale tradicional do país árabe, Isol escaneou o acessório para chegar não só às ilustrações, mas também ao conceito do “Lado de Trás”, para onde vão os objetos perdidos da trama. “Percebi que o lado da frente e o avesso eram dois mundos juntos, coexistindo, mas que não podiam ser vistos ao mesmo tempo: um mais organizado e controlado e outro mais selvagem e misterioso, com fios soltos e formas menos definidas”, conta ela, que ilustra detalhadamente ambos os lados.

Moral da história

Embora pouco afeitos a moralidades, os autores deixam esfumaçadas algumas lições valiosas. Na narrativa de Galhardo, o abuso de poder do protagonista ensina aos pequenos noções de liberdade e autoritarismo. “Parece metáfora de ex-presidente, mas fiz tudo para que minha história não se contaminasse com política. Prefiro livros sem moral e espero que o Doutor Sumiço seja um deles. Caso contrário, pedirei a ele que suma com ela!”, brinca.

No mesmo compasso, Isol — cujo livro convida a aceitar os buracos e as falhas como essenciais para o funcionamento harmônico do universo — diz não ter uma mensagem para passar ao mundo. “Não sei mais do que meus leitores, não me interesso por esse lugar didático. Proponho histórias, aponto certas situações estranhas ou ridículas e tento não naturalizar o maravilhoso ou a tragédia, mas sim apontá-los. Para isso, o humor me ajuda muito — a solenidade é inimiga da vitalidade”, diz.

Quando questionado sobre o que gostaria de fazer sumir, Galhardo responde, bem-humorado e cirúrgico: “Televisão em bar”. Já Isol adota um tom mais sóbrio: “As armas, o tráfico de drogas, a miséria, a ignorância, a violência. Não é muito original o que estou dizendo e, no entanto, parece uma ingenuidade ou uma utopia”. Seu livro é dedicado ao pai, que considera sua maior perda até o momento, lembrando-nos de que os desaparecimentos também podem servir para nos fazer apreciar com mais intensidade e presença o que ainda resta.

Por trás da sucessão de perdas que vivenciamos há uma bonita lição a ser aprendida sobre acolher a impermanência, a efemeridade, o fluxo incessante de chegadas e partidas que dão cadência à vida. As coisas que são deixadas para trás sem que se saiba onde também nos convidam a aceitar o inexplicável como parte intrínseca da jornada. Afinal, mistério sempre há de pintar por aí. 

Quem escreveu esse texto

Marília Kodic

Jornalista e tradutora, é co-autora de Moda ilustrada (Luste).

Matéria publicada na edição impressa #71 em maio de 2023.